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sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

HANNAH ARENDT EM CUBA.



HANNAH ARENDT EM CUBA.

“Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos mas atraentes”.

Esta é a imagem com a qual Winston Smith se deparou quando adentrou o saguão da Mansão Vitória para fugir do vento que castigava a tarde de abril. Estamos apenas no segundo parágrafo de 1984. Os cartazes espalhados pela cidade, como que a vigiar a vida e o vai e vem dos cidadãos, acompanharão Winston ao longo de toda a narrativa de Orwell. Winston era funcionário do Ministério da Verdade e sua função era falsificar documentos públicos para facilitar a propaganda do governo.

“(...) salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuram os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz rasgado num canto, drapejava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC (socialismo inglês).”

Não havia como fugir dos cartazes e do olhar paternal e autoritário do BIG BROTHER. Eles estavam por toda parte, nos prédios, nas ruas, como que a dizer o caminho a ser seguido. 


Cuba é o país dos cartazes e dos outdoors. A presença das placas modulares nos espaços públicos é onipresente e massacrante. Elas estão por toda parte a exibir a propaganda oficial do governo e a martelar na cabeça dos cubanos o blá blá blá ideológico da revolução. Os outdoors contam a história da revolução e relembram, a cada esquina, os feitos heroicos dos salvadores da pátria. Imagino o efeito disso sobre quem nasce, cresce e envelhece sob esta forma de doutrinação política. Pode levar ao fanatismo (os autômatos), a indignação (os dissidentes) ou a total indiferença (Creio que muita gente já nem vê mais os outdoors. De tão presentes tornaram-se invisíveis).


Não vamos, por favor, comparar a propaganda cubana com a publicidade, igualmente massacrante, com a qual convivemos. São coisas diferentes, embora a propaganda dos regimes totalitários tenha se inspirado, nas suas origens, na publicidade norte americana. Adolf Hitler reconheceu isso no seu livro famoso. Hannah Arendt confirmou. Mas não vamos justificar uma coisa com outra. A publicidade é, em certo sentido, exagerada, mas nós temos escolhas, opções. Podemos inclusive denunciar (No Brasil é só entrar em contato com o CONAR). A propaganda totalitária não admite alternativas, muito menos críticas. Ela martela uma verdade única. É a pedagogia “revolucionária”, no caso dos cartazes e outdoors, entrando pelos olhos.


Mas qual a razão de uma propaganda insistente e onipresente, que lembra diuturnamente aos cubanos a importância da revolução, as artimanhas e a maldade do inimigo e a necessidade de manter a coesão social? Hannah Arendt nos ajuda a entender: “Por existirem em um mundo que não é totalitário, os movimentos totalitários são forçados a recorrer a propaganda. Mas essa propaganda é sempre dirigida a um público de fora, sejam as camadas não-totalitárias da população do próprio país, sejam os países não-totalitários do exterior. (...) Em outras palavras a propaganda é um instrumento do totalitarismo, possivelmente o mais importante, para enfrentar o mundo não-totalitário.”


Cuba não é um regime totalitário como foram o stalinismo e o nazismo. O terror, elemento central na definição do totalitarismo, não está presente em Cuba. É certo que ele foi empregado nos primeiros anos da revolução, com o paredón. Hoje não poderíamos falar em terror, mas numa guerra psicológica, numa pressão sobre os indivíduos por meio de um estado provedor, policial e vigilante. Entretanto, alguns elementos do totalitarismo são visíveis. Cuba é uma sociedade relativamente fechada, governada pelo mesmo grupo há cinquenta anos, que controla o fluxo e o contato com o exterior, que exerce controle sobre os meios de comunicação e a informação, que não admite oposição política e mantém o “povo” sob um regime intensivo de educação política por meio da propaganda oficial. Embora existam eleições e a divisão dos poderes, as instituições são decorativas e ficam à margem do poder de fato. Uma sociedade com estas características (é assim que vejo Cuba) é uma sociedade que, com o devido cuidado, pode ser descrita como totalitária. Os traços mais evidentes do totalitarismo, insisto, estão relacionados justamente a forma e aos temas da propaganda oficial, cuja finalidade é exaltar a figura do líder e engrandecer a obra da revolução.



Hannah Arendt nos ensina que a finalidade da propaganda política é conquistar, dominar e conduzir as “massas”. Claro que precisamos sempre tomar cuidado com estes conceitos, sobretudo se levarmos em consideração o momento em que foram criados. Os conceitos devem ser relativizados, sobretudo a noção de “massa”, usada aqui não para definir uma coletividade, mas para pensar a perspectiva do estado e suas ambições totalitárias. Não vamos jogar as categorias usadas por Hannah sobre Cuba e achar que está tudo resolvido. Não. Hannah é uma companheira de viagem. Observar Cuba com as intuições da filósofa é um livre exercício interpretativo. 

Por meio da propaganda cria-se um mundo a parte, ideal, com sua própria lógica e coerência, que se confronta com o mundo externo. Em comparação com o resto do mundo a propaganda cubana destaca as vantagens de se viver neste paraíso social criado pela revolução.


Os temas recorrentes que destacaria na propaganda cubana são:

Culto à personalidade: Fidel é a alma da propaganda cubana. As referências diretas e indiretas ao chefe dominam a paisagem oficial. Fidel é o líder, o caminho, a verdade, é o espírito invencível da revolução. Sua figura nos cartazes e outdoors impõe-se aos cubanos como o guia infalível que conduz seu povo no caminho da vitória.

O exemplo do Che: Che é o garoto propaganda de Cuba. Ele encarna o exemplo de coragem e lealdade aos princípios, que se espera dos cubanos. Afinal, Che morreu pela causa. É o ideal do revolucionário que deve ser cultivado e imitado. É uma espécie de santo protetor do regime.

O Bloqueio americano: As menções ao bloqueio estão por toda parte. Cuba só não é melhor do que está devido ao famigerado bloqueio. As carências e as deficiências do país são atribuídas a ele. É o perfeito bode expiatório do regime. A insistência da propaganda anti-bloqueio lembra o tempo todo aos cubanos do inimigo cruel que ronda a ilha a espera de uma brecha para destruir a obra da revolução.

Os feitos da revolução: Graças à revolução os cubanos vivem num país sem injustiças sociais, sem miséria e sem analfabetismo (mazelas do mundo capitalista). 

Winston sentiria certa familiaridade se percorresse as ruas de Havana.


De acordo com os estudiosos da propaganda em Cuba, a técnica de comunicação com as “massas” é controlada pelo partido, e visa a edificação do socialismo e a educação do novo homem. Além disso, procura despertar nos cubanos o orgulho pela singularidade do país e das derrotas que impôs ao imperialismo.

O pensamento cubano sobre publicidade e propaganda, embora busque um espaço de reflexão, segue a linha ditada pelo regime. Mirta Muñiz, o grande nome da área em Cuba, escreveu em seu livro “La Publicidad en Cuba: mito y realidad” que a propaganda em seu país deve ser analisada a luz do marxismo-leninismo e observando as condições concretas do sistema social cubano. Esta é a armadura teórica inexpugnável que envolve e dita o conteúdo da propaganda. Mirta já era da área da publicidade antes de 1959. Depois da revolução aderiu ao novo regime. Nos anos 50 trabalhava para a agência internacional McCann-Erickson e fez cursos em Nova York. Como ela mesma diz: “aprendimos de la técnica de los Estados Unidos, pero producíamos cosas muy particulares cubanas”.
O caso de Mirta espelha, de alguma maneira, a trajetória da publicidade e da propaganda em Cuba antes e depois da revolução. Deixemos que ela nos conte:

“En lo que se refiere a la publicidad, su desenvolvimiento en Cuba no ha sido fácil tras el triunfo revolucionario de enero de 1959. Cuando en los años sesenta hubo necesidad de intervenir las agencias de publicidad (yo trabajaba en la transnacional publicitaria McCann-Erickson, relacionada con anuncios como los de la Coca Cola), los escasos renglones de productos y servicios con que contábamos no permitían satisfacer las crecientes demandas de la población. Todo lo que se producía, se consumía. No existía excedente alguno. Por tanto, la publicidad realmente no tenía razón de ser; al igual que tampoco existía mucho espacio para ella.”


Com o “triunfo” da revolução a publicidade foi desaparecendo e, na razão inversa, a propaganda ideológica foi assumindo um papel cada vez mais importante. Mirta justifica isto e aponta qual é, na sua percepção, a finalidade da propaganda:

“A mi entender la propaganda tiene dos grandes objetivos: uno, doctrinario; y otro, político. Para cumplirlos, habría que agruparlos en tres grandes direcciones. Una, la estabilidad política, o lo que es igual: la comunicación en función de la estabilidad política para cumplir un amplio espectro en la vida del país. La otra dirección es el desarrollo económico y social. En una sociedad como la nuestra, cuyo objetivo fundamental es el desarrollo en general, hemos utilizado la comunicación de modo que ella pueda contribuir a que los avances en todos los órdenes sean más rápidos y abarcadores en cualquier rama o sector. Y como último aspecto está la solidaridad. En Cuba constituye una vertiente de la propaganda, que antes del triunfo de la Revolución, era inexistente. Nació durante la década del sesenta del siglo pasado; y a ella se sumaron no sólo políticos, sino también historiadores, periodistas, diseñadores, fotógrafos.”

A publicitária e propagandista é cuidadosa com as palavras. Será que leu Hannah Arendt? Lendo ou não, ela embarcou na revolução, vestiu a camisa do regime, mas busca uma margem de autonomia para pensar a publicidade para além das exigências do socialismo e diferenciar a publicidade da propaganda revolucionária (Tema do livro que está escrevendo: Acciones y contradicciones de un proceso. Propaganda y publicidad en Cuba”. Não sei se já publicou). Tarefa difícil.

De um modo geral, a reflexão sobre a propaganda em Cuba é doutrinária e procura diferenciar a “propaganda revolucionária” – que tem a verdade como princípio fundamental em função de um homem harmônico e integral - da “propaganda imperialista” – que é sinônimo de mentira e manipulação - conforme podemos ler em diversos textos de autores cubanos. A propaganda cubana é revolucionária porque tem como objetivo levar às “massas” as novas ideias e uma nova maneira de pensar, com vistas à construção do socialismo. E também porque combate a ideologia do inimigo em todas as suas manifestações. (Ver “La propaganda política. Surgimiento y desarollo em Cuba”, de Miguel Guzmán Rojas). Bem, Stalin, que tinha seu retrato pregado em toda parte, inclusive em livros de receita de bolo, também considerava a propaganda soviética revolucionária. Eu fico com Hannah Arendt. Sempre que leio suas considerações sobre a propaganda totalitária imediatamente penso em Cuba.

Se um dia for a Cuba, convide Hannah para ir junto. Andar pelas ruas e pelas estradas é uma aula de propaganda ideológica. Na companhia de Hannah, então, torna-se um fascinante exercício de interpretação da relação do regime com o “povo”. Da relação do líder que acredita interpretar os desejos e as necessidades de seu “povo” com o “povo” que vê a imagem do seu líder obsessivamente pregada diante de seus olhos. Fidel acredita que é um país. A propaganda torna isso verdade.





4 comentários:

  1. A relação com o livro 1985 encaixou bem. Arendt é um bom farol. Lembro do nosso grupo de estudo, quando analisamos o capítulo do livro de Hitler, "A propaganda de Guerra".

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  2. Alou Paulo, há um ano estive em Cuba e sou testemunho dessa propaganda, que se repete nas livrarias e, ainda que sutilmente, no cinema. Mas, quem puder, não deixe de visitar esse país maravilhoso. Abraço!

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    1. Fala, Ricardo.
      É isso mesmo. Uma coisa é o regime e a propaganda. Outra coisa é o país, a cultura e o povo cubano.
      Abraço.

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