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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

PROFESSOR LUDOVICO ENSINA A TEORIA MARXISTA DO IMPERIALISMO NUM CONTEXTO ANTICOMUNISTA.



PROFESSOR LUDOVICO ENSINA A TEORIA MARXISTA DO IMPERIALISMO NUM CONTEXTO ANTICOMUNISTA.

A releitura das histórias em quadrinhos das décadas de 1960 e 1970 nos reserva grandes surpresas. Estava lendo parte da Enciclopédia Disney, de 1973, volume 8, para incrementar uma aula sobre a guerra fria quando me deparei com um episódio que não havia me chamado tanto a atenção quando li pela primeira vez. 

O que poderia haver em comum entre Karl Marx, Rosa Luxemburg, Vladimir Ilyich Ulyanov (Lênin) e o professor Ludovico Von Pato? A resposta parece óbvia: nada. O que poderia unir o mundo dos quadrinhos de Walt Disney e a teoria marxista? A resposta continua a mesma. Ludovico é o estranho no ninho. 

Mas por mais estranho que possa parecer, um acontecimento da indústria do entretenimento os aproximou. Uma palavra vai nos ajudar a descobrir a improvável relação entre Ludovico e a teoria marxista: IMPERIALISMO.

1.      O Imperialismo segundo Lênin (ou não).


Alguns conceitos tornam-se maiores que seus criadores e de tanto circular pelo mundo distanciam-se de suas origens e passam a ter uma existência autônoma. Tornam-se entidades abstratas e desgarradas que vagam pelo mundo das ideias a procura de uma superfície que as acolha. É o caso do conceito de imperialismo desenvolvido por Lênin. Diversos livros, textos e revistas (superfícies acolhedoras) que tratam do tema fazem uso da teoria leninista sem necessariamente reconhecer a paternidade. 

Apesar da noção de imperialismo estar associada ao nome de Lênin, ele pouco contribuiu para o desenvolvimento da teoria. Autores como John Hobson, Rosa Luxemburg e Rudolph Hilferding foram bem mais importantes. As teses de Hilferding sobre os bancos, que de adjuntos do processo produtivo passaram a ocupar o centro do capitalismo, rapidamente ganharam adeptos marxistas de peso e foram aperfeiçoadas por autores como Kautsky, Bukharin e Lênin. Qual era a teoria de Hilferding? Os bancos detinham o controle das fontes de crédito e, por esta razão, tornaram-se capazes de determinar o desenvolvimento industrial e promover fusões e monopólios, sobre os quais exerciam forte domínio. Progressivamente foram ocupando o lugar antes ocupado pelos grandes capitalistas. O capitalismo, antes definido como monopolista, avança então a um novo estágio denominado capitalismo financeiro (“capital controlado pelos bancos e utilizado pelos industriais”). Os bancos buscavam taxas de lucros cada vez mais elevadas sobre o seu capital. A tendência ao declínio das taxas na Europa levou o capital financeiro a procurar no exterior melhores oportunidades para aplicação do capital excedente. Nascia assim o imperialismo.

As ideias de Hilferding tornaram-se a nova ortodoxia no interior do marxismo. Lênin, a despeito das ligeiras críticas a obra, baseou-se quase inteiramente em Hilferding para apresentar a sua análise sobre o fenômeno. Em 1916 publicou “Imperialismo, o estágio mais avançado do capitalismo”. Em poucas linhas sintetizou sua abordagem, que pode ser resumida nos seguintes pontos:

“1. A concentração da produção e do capital desenvolveu-se num grau tão elevado que criou monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica. 2. A fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, com base nesse “capital financeiro”, de uma oligarquia financeira. 3. A exportação de capital, enquanto distinta da exportação de mercadorias, adquire importância excepcional. 4. A formação de consórcios capitalistas monopolistas internacionais que partilham entre si o mundo. 5. A divisão territorial de todo o mundo entre as maiores potências capitalistas está completada.”

A dívida com Hilferding é enorme. Mas porque Lênin tornou-se a grande autoridade quando o assunto é imperialismo, e não Hilferding? Duas linhas argumentativas ajudam a entender:

1.      Se Lênin não foi muito original na elaboração da teoria, ele foi bastante convincente na exposição do tema. Teórico hábil e com raro talento para a síntese e para a polêmica, soube extrair dos outros autores o essencial e formular uma teoria bastante eficaz. O livro de Lênin não tinha o formato e nem a concepção de um tratado científico (Está disponível na net para quem quiser dar uma olhada). O objetivo era prático. Lênin não dissociava a ação da teoria. Visava educar os marxistas para a compreensão do imperialismo e sobre as atitudes teóricas e táticas a serem tomadas em relação ao fenômeno.

2.      Os conflitos no interior do movimento socialista internacional apagaram o brilho de autores como Hilferding e Kautsky, denunciados pela ortodoxia como “direitistas” e “revisionistas”. Suas obras foram deixadas de lado e foram afastadas do centro dos debates. A obra de Lênin ganhou espaço e tornou-se a visão dominante sobre o imperialismo. O sucesso da revolução bolchevique destacaria ainda mais a obra de Lênin. Nas décadas seguintes o tempo apagou a memória dos conflitos e a obra de Lênin se impôs como verdadeira doutrina, como a última palavra a determinar o rumo dos debates mundo a fora.

Com Lênin a teoria do imperialismo deixou de ser uma teoria e transformou-se numa doutrina. A sua tese de que o imperialismo era um estágio necessário do desenvolvimento capitalista transformou-se num oráculo. Hilferding e Kautsky (ligados a social democracia alemã), por exemplo, não concordavam com esta tese. Mas não era um bom momento para enfrentar Lênin teoricamente. As discordâncias, teóricas e políticas, custaram-lhes caro. Atraíram para si os rótulos desqualificadores de “direitistas” e “revisionistas” (Qualquer semelhança com as estratégias atuais de desqualificação da companheirada – se não concorda conosco é direitista - não é mera coincidência, é uma questão de método). Lênin era a última palavra sobre o tema. Outra interpretação que ousasse desviar da doutrina era vista como heresia teórica. Dá desqualificação teórica aos expurgos praticados por Stálin foi um pulo. Bukharin, que teve importante contribuição para a evolução da teoria, foi expurgado e eliminado dos debates. 

Mas eis que quarenta anos depois, onde menos se esperava, surgiu um novo “teórico” do imperialismo. Criado em ambiente liberal, imperialista para alguns, o professor Ludovico, tio do pato Donald, foi beber no marxismo para ensinar aos seus sobrinhos as lições do imperialismo. Se algumas das teses de Hilferding e Kautsky foram vistas como heresias, o que dizer da apropriação da teoria leninista pela Walt Disney?

2.      O Imperialismo segundo Ludovico.



O camarada Lênin não podia imaginar que um dia a sua teoria do imperialismo, inspirada em algumas heresias camaradas, seria utilizada pela corporação de entretenimento Walt Disney para educar o público infanto-juvenil dentro dos valores liberais. E mais, não lhe dariam os créditos.

Isso de fato aconteceu em 1973 na Enciclopédia Disney, voltada para as áreas da história, geologia, astrônoma, botânica. A edição de luxo foi lançada aqui no Brasil também (A obra é rara, mas pode ser encontrada na Estante Virtual ou no Mercado Livre). O lançamento dos produtos Disney no Brasil contava com a parceria da Editora Abril, que desde 1950 havia comprado os diretos para lançar por aqui a revista do Pato Donald. O mercado editorial brasileiro estava em expansão na década de 1970, facilitado pelas políticas públicas e incentivos governamentais e pela evolução das tecnologias de impressão, como o off-set. Até aí, tudo bem. As ligações entre a Editora Abril, a Walt Disney e o regime militar são presumíveis. Mas o uso da teoria marxista do imperialismo numa Enciclopédia norte americana destinada ao público infanto-juvenil, impressa no Brasil em plena ditadura?

Vamos tentar entender. Na edição do Almanaque de 1973, pato Donald, tio Patinhas, Margarida e os sobrinhos Luizinho, Huguinho e Zezinho, viajaram a França em busca de um misterioso frasco, esquecido num antigo campo de batalha da primeira guerra mundial, que conteria um valioso segredo: a fórmula secreta de um inseticida. Tio Patinhas queria a fórmula para desbancar seus concorrentes. Em meio às buscas surge o tema da guerra. O professor Ludovico aproveita o ensejo para compartilhar seus vastos conhecimentos. Diante de um público atento o professor se esforça para explicar as causas da primeira guerra:

“- Por volta de 1870, no Ocidente, com a utilização do petróleo e da energia elétrica, a indústria desenvolveu-se como nunca até então. Foi a chamada Segunda Revolução Industrial. Os países adiantados passaram a produzir muito mais mercadorias do que podiam consumir.
– E aí, então... – ajudou Margarida.
– Aí, os industriais pensaram em vender seus produtos excedentes para outros países civilizados, como vinham fazendo desde o começo da Revolução Industrial. Só que agora a situação era outra. As indústrias haviam se expandido muito em toda Europa e nos Estados Unidos. Cada um daqueles países tinha suas próprias fábricas, e seus estoquezinhos encalhados. Nações como a Alemanha e os Estados Unidos lançavam impostos pesados sobre a importação de produtos estrangeiros, para vender melhor os seus próprios. E havia ainda outro excedente, outra coisa sobrando. Imaginem só o que era?
– O... o... – gaguejou Margarida apanhada de surpresa...
– Capital! Dinheiro! – exclamou Ludovico entusiasmado. – Havia dinheiro sobrando na Europa, graças ao aumento da produção das empresas Os lucros eram enormes. E este capital precisava ser aplicado, senão iria perdendo o valor.”

Professor Ludovico transforma-se num verdadeiro marxista para explicar as causas da guerra. Explora as relações entre a revolução industrial e os excedentes, e arremata com a vital necessidade dos capitalistas de reinvestir o capital em outras áreas do planeta para não perder o valor. Qualquer manual do pensamento marxista estabeleceria estas relações, mas a Enciclopédia Disney? Mas a aula de história fica ainda mais curiosa quando Ludovico aborda os interesses capitalistas - as contradições do capitalismo diria um bom marxista – e o surgimento do imperialismo:

“– Então era isso? – admirou-se Zezinho. – Mas não havia escolas a construir, hospitais, estradas? Não podiam aumentar os salários?
– É claro que havia muita coisa a fazer pelo bem de todos. Mas não eram investimentos rentáveis. Que empresário ia querer se arruinar. Por mais bem intencionado que fosse?
– E que fizeram, então?
– Tanto para vender excedentes, como para investir os capitais a solução foi obter mais territórios na África e na Ásia. Conquistar colônias trazia duas vantagens: elas possuíam ferro, cobre, petróleo, manganês, borracha, açúcar, algodão, tudo que a indústria precisava, nos países adiantados, para manter a produção em larga escala. Por outro lado, aquelas regiões atrasadas poderiam ser obrigadas a comprar todos os excedentes da produção européia; era só forçá-las um pouquinho, submetendo-as à administração européia. Ai elas teriam que comprar, por bem ou por mal. Quem é que resistia ao poder dos europeus, naquela época?
– Interessantíssimo! – exclamou Margarida...
– E o capital a investir? – perguntou Luisinho. – Como é que as colônias entravam nisto?
– Pois esta era a peça mais importante deste novo sistema colonial, que passou a ser conhecido como "imperialismo”. Em primeiro lugar, a própria exploração de minas e plantações nas colônias exigia que fossem construídas estradas de ferro para transportar as mercadorias, e eletricidade, gás, rodovias. etc. E depois, à medida que iam comprando produtos da indústria européia os países coloniais precisavam criar serviços básicos para poder usar esses artigos.
- Quem comprou uma lâmpada elétrica precisa de eletricidade para acendê-la não é isso? - sugeriu Zezinho.
- Exatamente. Aí vinha o industrial europeu, oferecia-se para construir a usina de eletricidade, construía, cobrava a eletricidade e levava o lucro para casa.”

Ludovico parece versado e interado das teorias marxistas sobre o imperialismo. Aparece na sua fala a teoria de Rosa Luxemburg sobre o papel das colônias na absorção dos excedentes europeus combinada as teses de Lênin e de Marx, respectivamente sobre a concorrência e a necessidade de reinvestimento dos lucros para garantir a acumulação de capitais.

Lênin escreveu para educar os marxistas, no contexto da primeira guerra e da revolução bolchevique. Ludovico, com o mesmo espírito prático de Lênin, ensinava para educar seus sobrinhos, no contexto da guerra fria e da luta anticomunista. Mas porque educar os sobrinhos com teses marxistas? Não poderia usar um bom liberal, como Raymond Aron, que tem uma abordagem do imperialismo mais voltada para a política e mais próxima do realismo político norte-americano? E como explicar a Editora Abril bancando uma publicação como esta voltada para um amplo público infantil num contexto político marcado, no Brasil, por um anticomunismo feroz?

Para quem esta levando este texto na esportiva, vamos às especulações? 

1.      Quem escreveu o episódio para a Enciclopédia não tinha noção dos autores nem da trajetória das teorias. Usou um Manuel qualquer sobre a primeira guerra, daqueles que não identificam autores, e adaptou à sua história. Tudo não passou de um tremendo descuido editorial da Disney, fruto da total ignorância sobre as teorias do imperialismo.

2.      O autor da história tinha conhecimento da origem marxista das teorias. Neste caso, como a teoria era de domínio público, usou sem precisar apresentar as referências. Afinal, apesar da origem, a teoria é convincente. De qualquer maneira, uma coisa é certa, a teoria do imperialismo, sobretudo a de Lênin, tornou-se tão popular que se descolou da figura do seu criador. Uma teoria convincente sobre as origens da guerra, de uma guerra distante, cuja filiação marxista não estava clara, que não tem maiores implicações nas relações internacionais da guerra fria, pôde ser usada num veículo de orientação liberal sem aparentar contradição.

Poderia arriscar uma ligação entre a Disney e o engajamento norte americano da luta pela descolonização de Angola, entre 1974 e 76. Mas não seria defensável. Não creio que houvesse, neste momento, um entrelaçamento tão forte e criativo entre a política externa americana e a Disney. E também porque não pretendo transformar Ludovico num agente americano.

E a Editora Abril? Essa eu deixo para a imaginação de vocês...

3.      A Lição de Ludovico.

Se me permitem, diria a que lição mais valiosa de Ludovico não foi para os sobrinhos. Sem ter a intenção o professor nos deu uma grande lição. Por vezes, a teoria se sobrepõe aos fenômenos que procura compreender e se confunde com eles. A teoria leninista deixou de ser uma interpretação possível do fenômeno, entre tantas outras, para se transformar no próprio fenômeno. Este é o momento em que a teoria converte-se em teologia. É mais ou menos o que acontece com um determinado produto e uma marca, quando a marca se confunde com o produto na cabeça dos consumidores. O caso da esponja de aço e a marca Bombril é o melhor exemplo que conheço. Bombril deixou de ser uma marca, Bombril é a própria esponja de aço. O uso da teoria de Lênin na Enciclopédia Disney é revelador. A teoria é de tal forma identificada com o fenômeno que deixou de ser uma teoria. Ludovico pôde dispor dela como quem vai ao supermercado comprar Bombril. A teoria virou mercadoria (no sentido ordinário da expressão).




Um comentário:

  1. Surpreendente. Acho que a partir destes teus textos do blog tens que pensar na produção de um livro.

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