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sábado, 26 de outubro de 2013

A REVOLUÇÃO BOLIVARIANA ANUNCIA O CAMINHO PARA A “SUPREMA FELICIDADE”. Ou: Seria a Felicidade o Estágio Superior do Socialismo do Século XXI?



A REVOLUÇÃO BOLIVARIANA ANUNCIA O CAMINHO PARA A “SUPREMA FELICIDADE”.  Ou: Seria a Felicidade o Estágio Superior do Socialismo do Século XXI?




Enquanto certos intelectuais da esquerda sul-americana (como Gilberto Maringoni) fazem verdadeiros malabarismos teóricos e semânticos para sustentar que o regime venezuelano é democrático, Nicolás Maduro parece esforçar-se para demonstrar o contrário. É constrangedor. É tão constrangedor que Gilberto Maringoni escreveu um texto no Opera Mundi afirmando que a Venezuela é democrática e não citou uma única vez o nome de Maduro. Citou Chávez duas vezes, citou os Estados Unidos, Snowden, mas não citou Maduro (Para afirmar a existência de democracia na Venezuela é preciso, antes, dizer que o sistema político norte americano “é pouco democrático”?). 

Uma ligeira digressão psicanalítica sobre o texto de Maringoni. Não acredito, neste caso, numa casualidade. A ausência do nome do atual presidente é significativa. É o lapso freudiano, conhecido por aqui como “ato falho” (Erros ou esquecimentos triviais na aparência podem comportar significados profundos). Os atos falhos manifestam desejos do inconsciente.  

A coleção de bravatas e gestos populistas baratos que Maduro acumula é formidável. Mas a situação começou a ficar realmente grave quando declarou que às vezes dorme junto ao túmulo de Hugo Chávez, onde consegue "ponderar calmamente" as suas ações. "Por vezes, disse Maduro, vou lá durante a noite e, na maior parte das vezes acabo por dormir lá". A devoção de Maduro por Chávez é conhecida, mas desta vez parece que foi longe demais. Claro. O homem não é bobo. Sabe que Chávez, mesmo morto, é o fiador do seu governo. As visitas ao túmulo do comandante, neste sentido, são calculadas e habilmente exploradas na mídia oficial.


De qualquer maneira, a declaração, embora excessivamente apelativa, não surpreende. Na campanha eleitoral Maduro afirmou que o presidente Chávez, recém falecido, apareceu na forma de um pássaro e voou à sua volta. Tínhamos ali um forte indício do caminho que o homem trilharia. Será que alguma cartilha bolivariana seria capaz de explicar, à luz do socialismo do século XXI, esta extraordinária aparição? 

O que esperar depois disso? Não duvidem do estafeta do chavismo, ele se supera a cada gesto. A Venezuela, claro, vai a reboque. A cada declaração, o país parece distanciar-se cada vez mais de qualquer definição de democracia. Menos para Gilberto Maringoni, para quem a combinação de progresso social com efervescência participativa é que solidifica a democracia venezuelana”. Maringoni só esqueceu o nome do atual presidente. 

Na quinta feira, em meio à grave crise econômica e de abastecimento, Maduro anunciou a criação de um vice-ministério para supervisionar os programas sociais do governo nas áreas da saúde, do esporte, da ajuda financeira aos mais pobres e de moradias populares. Os projetos do governo nestas áreas não são previstos na proposta de orçamento e estão fora do controle e da fiscalização do legislativo. O vice-ministério foi batizado de “Ministério da Suprema Felicidade Social”. O objetivo, segundo Maduro, é que as pessoas sejam "atendidas da forma mais sublime, sensível, delicada e amável por pessoas que se dizem cristãs, revolucionárias e chavistas". E num adendo místico complementou dizendo que é preciso chegar ao céu, onde está o ex-presidente Hugo Chávez. Entenderam? O vice-ministério, além de promover a felicidade na terra, seria uma espécie de condutor espiritual do povo ao paraíso, ao céu, onde o comandante descansa e zela pela revolução.

O novo ministério lembra os quatro ministérios da Oceania (de Orwell): Ministério da Verdade, da Paz, do Amor e Fartura. A diferença é que Maduro leva a sua criação a sério. 

O “Ministério da Suprema Felicidade” é de dar inveja em muitos ditadores. Kim Jong-il deve estar se perguntando: “Como é que eu não pensei nisso antes?” Pois é Kim, na Venezuela agora a felicidade é uma questão de estado. O estado é o demiurgo do milagre social da felicidade. E não é qualquer felicidade: é a “felicidade suprema”. Deve ser o estágio superior do socialismo do século XXI.

No mesmo ato de lançamento do vice-ministério, Maduro instituiu também o “Dia de Lealdade ao Legado de Chávez e do Amor à Pátria”. O dia escolhido para homenagear o comandante foi 8 de dezembro. “El 8 de diciembre, disse Maduro, será a partir de este momento el día de la lealtad y amor a Hugo Chávez, porque ese día vino a despedirse de su pueblo, aún con su dolencia vino con mucha serenidad y fuerza a despedirse de su patria". 8 de dezembro foi o dia da última aparição pública de Chávez. Na ocasião, designou Maduro como o seu sucessor. Mas é também, coincidentemente, o dia das eleições municipais, na Venezuela. A partir do próximo dia 8 de dezembro as eleições e a lealdade à Chávez serão inseparáveis. 8 de dezembro será um dia de “lealdade mobilizadora, quando o amor se expressará” na ação do povo que jamais faltará a Chávez, disse Maduro. Será que é esta forma de mobilização e lealdade que Maringoni chama de “efervescência participativa”? É possível considerar este tipo de mobilização mística da população, como vem ocorrendo desde os tempos de Chávez, como democrática?  


O 8 de dezembro se juntará às outras datas comemorativas do calendário bolivariano, como 28 de julho (aniversário de Chávez), 8 de agosto (data de sua entrada à Academia Militar) e 4 de fevereiro (dia do golpe contra Carlos Andrés Perez). A figura de Chávez se impõe de diferentes maneiras na cultura política venezuelana. A ocupação do calendário comemorativo é uma forma de manter viva a memória do comandante, do seu suposto legado e usá-lo como elemento de coesão e mobilização social para exorcizar os problemas e intimidar os inimigos.

O vice–ministério - a piada política pronta de Maduro - já caiu no gosto popular. O humor das ruas se encarregou de colocar a “coisa” no seu devido lugar. Victor Rey, vendedor ambulante de bananas, exprimiu, do seu modo, o lado folclórico da situação: 

"Só espero que um dia Maduro lance o vice-ministério da Cerveja para que eu e todos os bêbados fiquemos felizes".


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

“MARIA ANTONIETA” E “ADEUS, MINHA RAINHA”: DOIS OLHARES SOBRE A CONTROVERTIDA RAINHA FRANCESA.



“MARIA ANTONIETA” E “ADEUS, MINHA RAINHA”: DOIS OLHARES SOBRE A CONTROVERTIDA RAINHA FRANCESA.  
  

“Maria Antonieta não foi a grande santa da realeza, tampouco a prostituta, a grue da revolução, e sim um caráter medíocre, na verdade uma mulher comum, não particularmente esperta, não especificamente insensata, nem fogo nem gelo, sem especial inclinação para a bondade e sem nenhum apego ao mal, a mulher mediana de ontem, hoje e amanhã, sem pendor para o demoníaco, sem ânsia pelo heróico e, talvez por isso, tema pouco adequado a uma tragédia.” (Stefan Sweig). 

Dois filmes recentes, um francês e um norte-americano, revisitaram a corte francesa às vésperas da revolução de 1789 e, cada um a sua maneira, nos ofereceram duas provocativas releituras histórico-cinematográficas da rainha insensível que, num momento difícil, teria zombado da miséria que assombrava a França e sugerido ao povo que, na falta de pão, comesse brioches. Maria Antonieta foi esta criatura odiosa e insensível que não se importava com a desgraça dos seus súditos ou isso não passa de uma caricatura habilmente difundida pelos adversários, que lhe custou a vida? As respostas não são fáceis. E o mérito das duas cinebiografias é justamente não apresentar respostas simples que reduzam a imagem da rainha a uma coisa ou outra. Antonieta era uma figura complexa e heterodoxa. Inventou um estilo de vida extravagante que atraiu para si a admiração e o ódio. Cultivou inimigos importantes e antipatias ressentidas. Tornou-se impopular, e foi atropelada pelo curso da revolução que varreu o absolutismo da França.


Vamos aos filmes? 

 “Adeus, minha rainha”, o belo filme francês de 2012, dirigido por Benoît Jacquot, narra os primeiros dias da revolução francesa vistos do palácio de Versalhes. O ponto de partida são os acontecimentos em Paris que levaram a tomada da famosa prisão-símbolo do “antigo regime”. A partir daí a narrativa explora os efeitos dos acontecimentos no palácio real da perspectiva da criadagem, da nobreza e da rainha, que vive um drama amoroso. Maria Antonieta (Diane Kruger), sob forte pressão, dividi-se entre as notícias perturbadoras que chegam de Paris e a eminente separação de sua amada, Gabrielle de Polignac. A cabeça de Gabrielle, por sua ligação com a rainha, é pedida nas ruas de Paris. Temendo pela vida da amada, Maria Antonieta, dilacerada, pede que ela deixe a França. O drama amoroso é tocante e ocupa um lugar de destaque no filme, mas a personagem central é Sidonie Laborde (Léa Seydoux), a fiel serva que dedica seus dias a ler para a rainha. É pelos olhos dela, cheios de admiração e paixão por Antonieta, que assistimos o desenrolar dos acontecimentos em Versalhes. O filme reconstrói o início das revoltas da perspectiva da serva e da relação que ela estabelece com a rainha. Pela subjetividade de Laborde somos conduzidos pelos labirínticos corredores do palácio que levam aos aposentos e aos dramas pessoais de Maria Antonieta deflagrados pela queda da Bastilha. O recorte temático e subjetivo do filme nos apresenta, portanto, os momentos iniciais da revolução vistos dos luxuosos aposentos da rainha. 
Felizmente, vivemos num tempo em que o passado pode também ser construído e narrado da perspectiva da rainha, de Versalhes, das elites, dos senhores de escravos e dos patrões, sem que isso soe elitista, reacionário ou tradicional. Quando a história era escrita somente do ponto de vista das “classes altas”, com total desinteresse pelas “classes populares”, havia um sentido conservador, misto de preconceitos cultivados e de uma concepção elitista da história. O que se convencionou chamar de “história vista de baixo”, e as diferentes formas de abordagem popular do passado, abriram o campo da história para os diferentes grupos sociais e personagens socialmente menos favorecidos, arrancando a escrita da história dos domínios exclusivamente conservadores. O lado negativo disso foi a emergência de certa visão redentora/popular/messiânica da história e dos inequívocos populismos historiográficos. Nas décadas de afirmação e consagração da dita “história vista de baixo” qualquer tentativa de se olhar o passado pela ótica das “classes altas” era taxada de reacionária. Só se escrevia sobre as elites para criticar suas condutas e revelar os seus preconceitos de classe. O que era perfeitamente compreensível. Hoje a situação é bem diferente. A história das “classes populares” não só está consagrada, como ocupa o centro das preocupações dos historiadores. Escrever sobre as elites hoje, diferentemente do que ocorria antes, traduz um esforço de compreensão do passado a partir de diferentes perspectivas. Afinal, os ricos também faziam parte das tramas do passado. E, convenhamos, as ditas elites não são portadoras de todos os defeitos, assim como as classes populares não carregam toda a decência e a dignidade do mundo nas costas.


Então vamos, sem culpas e julgamentos axiomáticos, nos deliciar com as narrativas palacianas, com as histórias íntimas, com os amores fictícios da rainha e nos exercitarmos no voyeurismo cinematográfico de quem espia as intimidades do passado de dentro de uma sala escura de cinema. Deixe os seus preconceitos de classe e de rigoroso estudioso do passado de lado e se entregue aos deleites de uma bela construção anacrônica que, entre outras coisas, nos faz interrogar sobre a imagem da rainha pintada pelos seus inimigos. Maria Antonieta foi julgada por traição e guilhotinada em 1793. Toda revolução tem os seus justiceiros, que se auto-atribuem o direito de falar a agir em nome do povo e decidir sobre a vida e a morte. O legado de Robespierre foi fecundo. Maria Antonieta era grande coisa? Não sei. Mas sempre desconfiei da imagem dela construída e fixada pela tradição revolucionária e republicana francesa. As biografias históricas recentes e algumas narrativas cinematográficas têm nos ajudado a questionar estas imagens. Não estamos falando numa reabilitação da figura de Maria Antonieta, mas no necessário questionamento dos julgamentos históricos e das imagens herdadas do passado e consagradas pelas narrativas históricas. Maria Antonieta e os filmes, neste caso, são pretextos para examinarmos os possíveis equívocos e abusos que marcaram a gênese da república liberal. 

Para além das questões políticas e sociais envolvidas (como se eu precisasse me explicar), a exuberante e exagerada figura de Antonieta sempre me atraiu. Ela era a alteridade austríaca a desafiar a esnobe corte francesa. Gostava de bailes de máscara – e da oportunidade de se misturar aos plebeus -, freqüentava a ópera e o teatro (atuava em peças, no papel de burguesas e camareiras, no seu petit trianon, ao lado da sua troupe de seigneurs), e usou e abusou da moda para se impor à corte que a rejeitava. Para Caroline Weber, especialista norte-americana na literatura francesa do século XVII e em revolução francesa (autora do livro “Queen of Fashion: What Marie Antoinette Wore to the Revolution”), “Maria Antonieta entendeu que ser uma rainha significava essencialmente interpretar um papel. Mais que isso, ela logo descobriu que, por meio de mudanças na moda, ela podia modificar esse papel e até fugir dele”. Caroline Weber comparou o estilo provocador e multifacetado de Antonieta a Madona: “A rainha mudava constantemente sua aparência, ia dos penteados extravagantes aos rústicos camisetes que usava em seu retiro particular, passando pelas andróginas silhuetas masculinas de montaria. Ela se reinventava constantemente, uma maneira de manter o público curioso sobre sua próxima faceta. Também como Madonna, a rainha acendeu os debates nacionais sobre a sexualidade feminina.” O estilo heterodoxo de Antonieta descontentou muita gente e deu margem às intrigas e aos falatórios que extravasaram o círculo da nobreza e caíram na boca do “povo”.


O filme de Benoît, adaptação do romance histórico de Chantal Thomas (“O adeus à rainha”), apresenta uma Maria Antonieta mais humanizada e frágil, capaz de gestos de gratidão e sacrifícios pela pessoa amada. Chantal Thomas, filósofa, ensaísta e especialista no século XVIII francês, que já se debruçou sobre as vidas de Sade, Casanova e Thomas Bernhard, dirigiu seu olhar feminino e detalhista para Maria Antonieta. O livro explora os acontecimentos, históricos e fictícios, que ocorreram entre dias 14 e 16 de julho de 1789. Mostra o pânico que tomou conta de Versalhes, a fuga dos nobres e o abandono do casal real.


A imagem que Chantal e Benoît nos oferecem sobre Maria Antonieta é bem diferente daquela que nos acostumamos a ver e ler nos livros e nos filmes, que sugerem uma rainha fútil, esbanjadora (a rainha do déficit), desumana e perversamente elitista, que dilapidava o tesouro francês com jóias, vestidos caros, festas de arromba e sofisticados arranjos de cabelo e maquiagem. A estrangeira moralmente devassa se tornou o símbolo do luxo excessivo e desregrado da monarquia francesa e foi convertida no emblema de tudo o que era desprezível no “antigo regime”. A perversa e insensível rainha, com a arrogância acumulada dos Bourbon e dos Habsburgo, teria dito, quando informada de que o povo das províncias passava fome: “se não tem pão, que comam brioches”. Esta imagem amplamente difundida de Maria Antonieta a fez merecedora da pena de morte. A historiadora inglesa Antonia Fraser, que escreveu uma biografia da rainha francesa, contesta esta visão. Sustenta, ou suspeita, que a famosa frase jamais foi dita por Maria Antonieta. Um século antes a frase fora atribuída a uma princesa espanhola que se casou com Luis XIV e depois da morte de Maria Antonieta continuou sendo emprestada a outras princesas. Uma passagem de Rousseau, no livro Confissões, reforça a suspeita da historiadora: “Recordo-me de uma grande princesa a quem se dizia que os camponeses não tinham pão, e que respondeu: ‘Pois que comam brioche’.” E numa carta endereçada à mãe, escrita na época da coroação, Maria Antonieta demonstra sensibilidade em relação à condição de vida dos menos favorecidos: “Tendo visto as pessoas nos tratarem tão bem, apesar de suas desgraças, estamos ainda mais obrigados a trabalhar pela felicidade deles”. São pistas que, colhidas aqui e ali, ajudam a construir uma nova imagem da rainha.  


Embora a biografia escorregue em alguns momentos para a narrativa hagiográfica, a historiadora questiona com competência a imagem de rainha socialmente insensível e sexualmente devassa que abundava nos panfletos pornográficos do século XVIII. O empenho para recuperar a imagem da rainha é assumido, e às vezes excessivo. Todavia, o valor da obra reside no esforço histórico, bem documentado, de problematizar uma imagem negativa herdada sem maiores questionamentos diretamente das tensões do século XVIII.


“Maria Antonieta” (2006), o bonito filme de Sofia Coppola inspirado na obra de Antonia Fraser, embora por outros caminhos, também nos leva a questionar a imagem tradicionalmente aceita da personagem em tela. A escolha de Kirsten Dunst para o papel da rainha não foi mera casualidade. A atriz norte americana revelada na última década, conhecida do público por filmes como Entrevista com o Vampiro e O Homem Aranha, empresta leveza e graça, desfazendo a atmosfera severa e pesada que envolve a personagem. Sofia narra, numa linguagem ousadamente contemporânea, os episódios marcantes da vida de Maria Antonieta desde a saída da Áustria, aos quatorze anos, para se casar com Luis Augusto, até a explosão das revoltas em Paris em julho de 1789. A diretora deixa evidente que a releitura que faz da vida da rainha francesa é muito particular, embora amparada nas narrativas e em biografias históricas recentes. A trilha sonora escolhida a dedo não deixa dúvidas. Os dias de tédio, de amor, de dor, de futilidade, de esbanjamento e de solidão e desespero da rainha são embalados com canções do The Cure, Sioux and The Banshees, The Stroukes, New Order, Bow Wow Wow. A coroação da rainha ao som de Plainsong, do Cure, é de tirar o fôlego. O título do filme, escrito numa faixa rosa, faz clara referência ao disco Never Mind the Bollocks, dos Sex Pistols. As referências são inúmeras. São as digitais de Sofia Coppola plantadas no filme.

Mas é o par de all star azul entre os calçados da rainha que evidencia a assinatura da diretora. Embora se reporte historicamente às décadas de 1770, a leitura inspira-se na década de 1980. Maria Antonieta parece uma garota dos nossos dias, deslocada, mal compreendida, desligada das questões políticas, que sonha com sapatos e suspira pelo conde Ferson ao som da banda The Stroukes (Ever Happened). (Vale lembrar que Sofia Coppola inspirou-se no cantor Adam Ant para criar a identidade visual do conde Ferson). Na cena em que o converse all star aparece jogado displicentemente no ambiente rococó entre os sapatos da rainha, a música de fundo é “I want candy”, da banda Blow Wou Wou. Numa outra seqüência, uma cena emblemática: uma criada calça Maria Antonieta, que come bolos, e esta cercada de doces coloridos, ao som de “Natural’s Not in It”, da banda Gang of Four:

 “The problem of leisure
What to do for pleasure
Ideal love a new purchase
A market of the senses
Dream of the perfect life
Economic circumstances
The body is good business
Sell out, maintain the interest
Remember Lot's wife
Renounce all sin and vice
Dream of the perfect life
This heaven gives me migraine
The problem of leisure
What to do for pleasure (…)”.


A Maria Antonieta de Sofia Coppola não era uma rainha frívola, insensível e esbanjadora. Era, antes, a jovem filha da rainha Maria Teresa, que da noite para o dia foi afastada do convívio familiar, do palácio Imperial de Hofburg na Áustria, do cãozinho de estimação e das damas de companhia. Aos quatorze anos mudou-se para a França, virou delfina e logo em seguida rainha. Ao invés de reproduzir a imagem conhecida de Maria Antonieta e caracterizá-la como fútil e insensível, o filme, sem julgar antecipadamente, mostra as circunstâncias da futilidade, dos gastos desmedidos e da propalada insensibilidade. Maria Antonieta era uma jovem estrangeira (era chamada na corte de L'Autre-chienne, uma paronomásia com as palavras autrichienne e autre-chienne), com hábitos e maneiras distintas, que foi jogada pela mãe no ninho de cobras da nobreza francesa para celebrar uma aliança entre as inimigas Áustria e França. Seguindo os passos de Antonia Fraser, Sofia Coppola explora a situação de estrangeira deslocada da arquiduquesa austríaca, vista como espiã, e dos embaraços em torno da não consumação do casamento (Maria Antonieta e Luis XVI levaram sete anos para levar o casamento as vias de fato. Todos os dias, pela manhã, as roupas de cama do casal eram vistoriadas em busca de sinais da consumação). Os comentários maldosos, as comparações e a pressão da mãe, que lembrava o tempo todo da instabilidade da aliança sem um herdeiro, eram humilhantes. Os excessos, ou fugas, da jovem rainha seriam decorrentes das enormes pressões e da relativa solidão em que vivia. Ou ainda, o estilo de vida de Maria Antonieta seria uma resposta ao pesado ambiente cerimonial que a cercava, ao excesso de formalismo e a etiqueta sufocante da corte. A rainha pop de Sofia Coppola criou um mundo próprio – expresso numa palheta de cores vibrantes -, elegeu suas companhias de ocasião e driblou como pode o tédio, a falta de privacidade, a tristeza e a indiferença do marido. A menina austríaca que se tornou rainha da França foi uma vítima das circunstâncias, das ambições da mãe e do veneno da corte francesa? Nada disso. Ela jogou o jogo, exerceu o poder à sua maneira e tentou fazer as circunstâncias correrem a seu favor. Stefan Zweig, escritor austríaco que lhe dedicou importante biografia, descreveu Maria Antonieta como uma mulher comum, de talentos medianos. Por minha conta, acrescento que a revolução, ao transformá-la, para fins demagógicos, no símbolo da devassidão e do aviltamento moral de uma época, comparando-a as mulheres mais dissolutas do passado (Messalina, Agripina e Fredegunda), agigantou sua figura e lhe permitiu oferecer-se ao “martírio”, vestida de branco, em nome da monarquia.  A revolução, no afã de construir um inimigo à altura dos seus ideais, criou um mito.  Fez de Antonieta uma mulher incomum. 

Os dois filmes – que declaradamente não primam pelo rigor histórico - parecem desejar libertar Maria Antonieta do julgamento que a transformou numa das mais famosas e odiadas vilãs da história. A intenção é legítima. Pairam muitas dúvidas sobre o julgamento da rainha. O Tribunal Revolucionário jogou sobre ela a culpa por todos os males que assolavam a França e a condenou por alta traição, baseado em três acusações: esgotamento do tesouro nacional, negociações e trocas de correspondências secretas com a Áustria e com os monarquistas e conspiração contra a segurança nacional e as relações externas da França. Maria Antonieta se defendeu das acusações e disse que apenas defendia os interesses da monarquia. Mas o veredicto já estava dado, antes mesmo dela tentar se defender. O idealismo liberal deu lugar à paranóia, que via conspiração em toda parte, e a implacável ditadura que instituiu o terror para salvar a revolução. O triunfo da república jacobina exigia a cabeça da monarquia. A cabeça de Maria Antonieta ostentou penteados exuberantes que escandalizavam a sobriedade espartana da república. A cabeça da rainha era o troféu moral dos guardiões da coisa pública. O julgamento era uma mera formalidade. Mas Antonieta não se dobrou. Escolheu encarar a guilhotina vestindo um impecável vestido branco. Caroline Weber explica: “A escolha foi intencional. Era uma forma de se declarar, de maneira corajosa, como mártir e leal guardiã da monarquia. Com sua roupa, ela dizia aos revolucionários que eles haviam tomado a coroa, mas jamais quebrariam seu espírito.” Não vamos confundir o gesto da rainha com heroísmo, muito menos com martírio. Ela estava apenas defendendo aquilo que julgava certo.


A revisão da imagem de Maria Antonieta não é um caso isolado. Nos últimos anos surgiram varias releituras de figuras históricas femininas ligadas a nobreza, na Europa e no Brasil, que se contrapõem as imagens negativas fixadas pela memória e pelas historiografias republicanas. Princesa Isabel, Carlota Joaquina (Me vem a lembrança a intragável Carlota do filme de Carla Camurati) e Dona Leopoldina, por exemplo, receberam novas leituras, baseadas em documentos antes negligenciados ou desconhecidos. As novas interpretações, pelo menos as que valem a pena, não lhe são simpáticas nem antipáticas. Tentam compreender a personagem e a mulher, e as relações nas quais estavam envolvidas, para além das caricaturas e das apologias.  

O léxico simplificador, como diria Alfredo Bosi, e os conceitos que empregamos para descrever ou situar socialmente homens e mulheres do passado, devoram, em parte, as suas subjetividades e intersubjetividades. É o caso do substantivo genérico “nobreza”, uma categoria tão significativa para os historiadores e, ao mesmo tempo, tão rasa e vazia para descrever os sentimentos, as relações, as vulnerabilidades, as virtudes e os amores das pessoas definidas como nobres. Do ponto de vista histórico, o conceito é esclarecedor. Permite a definição de uma identidade coletiva e, conseqüentemente, explicar as posições e as diferenças sociais, os privilégios, etc. Do ponto de vista dos indivíduos, o conceito é generalizante. O qualificativo nobre se impõe sobre a individualidade e sugere um coletivo homogêneo e simplificador. Isto poderia valer aos propósitos dos revolucionários ou dos republicanos que tinham na nobreza o inimigo histórico a ser vencido, “superado”. Mas para nós historiadores, situados a uma distância suficientemente segura para não aceitarmos sem questionamentos os estereótipos e os pré-conceitos revolucionários, não é bem assim. 



 “Maria Antonieta”, de Sofia Coppola, recria a famosa personagem à semelhança das patricinhas consumistas e hedonistas dos nossos dias. A projeção de uma estética da década de 1980 para o passado, com exageros calculados e riscos assumidos, nos lembra o quanto nós historiadores projetamos os dramas e as tramas do presente no passado. O all star azul de Maria Antonieta é uma invasão simbólica e intempestiva, ou simplesmente um modo criativo de dizer sobre o lugar de onde se olha o passado.

“Adeus, minha Rainha” observa a tomada da Bastilha dos aposentos de Maria Antonieta, mas não é um filme reacionário ou elitista. É um retrato íntimo da rainha pintado por sua fiel leitora enquanto o mundo ao redor de Versalhes desabava. O filme não julga a revolução francesa nem a população que toma o presídio. As revoltas compõem a moldura social que encerra o drama pessoal. As diversas personagens populares que cercam a rainha assumem papeis relevantes na trama e expressam de diferentes maneiras seus pontos de vistas. O ponto alto do filme é justamente o jogo de olhares sobre os acontecimentos. A leitora da rainha, a camareira, as damas de companhia, o bibliotecário, a nobreza que vive em Versalhes, o barqueiro, a rainha, a rebelião popular em Paris afeta a todos. A visão de todos é relevante. Desde Nietzsche, e sua concepção perspectivista do conhecimento, sabemos que não conhecemos a realidade em si. Existem interpretações, decorrentes dos distintos ângulos de observação assumidos. Ao contrário do que propunha a noção clássica de perspectiva, não existe ângulo privilegiada sobre os acontecimentos. O filme leva esta máxima a sério. Benoît Jacquot elegeu o seu ângulo.

A construção/imaginação cinematográfica do passado, descompromissada com os códigos e as relações que regem academicamente a construção do conhecimento histórico, oferece insights criativos aos historiadores que buscam novos ângulos de observação do passado.