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sexta-feira, 10 de julho de 2015

O JESUÍTA LASCIVO DE ANAÏS NIN: um conto erótico freudiano sobre os colégios jesuíticos do Brasil colonial.

O JESUÍTA LASCIVO DE ANAÏS NIN: um conto erótico freudiano sobre os colégios jesuíticos do Brasil colonial.

Para Vivian, que me ensinou a ler Anaïs Nin.




Anaïs Nin, à sua maneira, abriu uma janela erótica para os tempos coloniais ao explorar, no conto O Internato, um ambiente de sedução, desejo e sexualidade nos colégios jesuíticos do Brasil antigo. Quem já não imaginou que por trás da aparência austera e severa dos jesuítas e das tradicionais escolas frequentadas por meninos de famílias de boa linhagem, o sexo pulsava, gritava, enrijecia? Se nas narrativas históricas e hagiográficas, protagonizadas por Nóbrega, Anchieta, Vieira, Benci e Antonil, os jesuítas são sujeitos históricos assexuados ligados à colonização, a educação e a evangelização, na ficção erótica de Anaïs eles perdem a aura de santidade e o escudo protetor da ordem de santo Inácio e se convertem em homens comuns, tentados pelo desejo, pela beleza e pelo frescor dos corpos dos meninos deixados sob sua orientação.

O conto foi escrito no início da década 1940, quando Anaïs Nin, incentivada por Henry Miller, escrevia pequenas histórias eróticas para um cliente desconhecido, a um dólar a página, para sobreviver. O que poderia parecer uma promiscuidade literária (escrever histórias eróticas por dinheiro para satisfazer os caprichos de um cliente misterioso) foi, na verdade, uma oportunidade para Anaïs pensar as particularidades de uma escrita feminina sobre o sexo, numa época em que só os homens escreviam sobre o assunto. O exercício lhe permitiu também jogar com as descobertas psicanalíticas nos domínios da sexualidade, explorando, por vezes de maneira caricatural e exagerada (rabelaisiana eu diria), diversas parafilias e narrativas de experiências sexuais que circulavam ao seu redor. Anaïs era entusiasta das teorias freudianas sobre a sexualidade e fora assistente e amante de Otto Rank, discípulo de Freud. A psicanálise, diluída nas entrelinhas, já que o cliente dispensava análises e poesia, atravessa os contos de ponta a ponta.

O conto desvela o cotidiano mundano de uma escola da Companhia de Jesus e o voyeurismo de um professor jesuíta (padre Dobo) de sangue indígena, olhos penetrantes e lábios licenciosos, que zelava pela boa educação dos meninos, vigiando seus corpos antes de dormir e policiando suas mentes no confessionário. Frequentemente os meninos notavam, inocentes ou maliciosos, uma saliência que teimava em aparecer sob a batina marrom do professor. A ereção vinha nas horas mais improváveis, lendo Cervantes, por exemplo, ou quando observava os meninos. Um deles em particular, loiro e “com olhos e pele de uma menina”, mexia com as saliências do padre.  A coleção particular de livros era um pretexto para Dobo ficar a sós com o menino preferido e mostrar-lhe as reproduções de cerâmica inca com homens se enfrentando. Em algumas representações “um membro comprido saia do meio de um homem e penetrava o outro por trás”. Embora Anaïs não dê detalhes, e nisto reside a eficácia erótica dos contos, a situação toda é poderosamente sugestiva. Como não imaginar o deleite e o prazer do padre acompanhando as reações do delicado menino às sugestões das imagens? Mas não era só este menino que despertava a lascívia do padre. Havia outro, rebelde, corpo esbelto, à semelhança de um “príncipe mouro”, que se recusava a dormir de camisola. Todas as noites, depois de se meter embaixo das cobertas, tirava secretamente a roupa e dormia nu. Padre Dobo, que fazia vigílias noturnas diárias para ver se os meninos não estavam se masturbando, quando chegava à cama do “príncipe mouro”, erguia as cobertas lentamente para espiar as feições do corpo. Se o garoto acordasse, o padre ralhava: “Vim ver se você estava dormindo sem o camisolão de novo”. Mas se não acordasse, olhava demoradamente o belo corpo adormecido.

Anaïs poderia eleger como protagonista do conto um dos padres seculares dos tempos coloniais, conhecidos pela “libertinagem” e pelo gosto por “sacanagens”. Não faltariam exemplos. Padre Nóbrega, já na chegada à colônia em 1549, escandalizou-se com o comportamento do clero “baiano” e “pernambucano”. Em carta a um companheiro, escreveu: “A evitar pecados esse clero não veio”. Os padres, não todos, viviam soltos, amancebados com as índias, tentando as mulheres casadas ou cometendo “tocamentos torpes” e “jogando as punhetas” com rapazes (Ver Ronaldo Vainfas. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997). As crônicas coloniais e as cartas jesuíticas ofereceriam um variado banquete à Anaïs sobre a vida sexual do clero colonial. Todavia, criar uma história erótica com personagens de conhecida má reputação sexual talvez não fosse a melhor maneira de mexer com as fantasias eróticas do seu cliente. Por mais que o sujeito exigisse histórias cruas, sem adornos poéticos e filosofias, Anaïs não se satisfazia com obviedades e lugares comuns. Emprestava certa delicadeza, um toque feminino e muita inventividade, segundo ela própria, às suas histórias. A sacada no conto foi erotizar a figura do jesuíta, cercada por uma aura de santidade, lendária pela rigidez moral e pela sublimação dos prazeres do corpo.

O jesuíta de Anais, diferentemente dos “donzelões intransigentes” e carolas pintados por Gilberto Freyre, é um homem com o sexo vivo, saliente por baixo da batina, e que usa o confessionário para estimular e se deliciar com as narrativas e sonhos eróticos dos meninos. Padre Dobo criou táticas para exercitar seu voyeurismo no interior de uma instituição moralmente rígida sem chamar muito a atenção. Usava o poder que o colégio lhe conferia como educador e as cerimônias e sacramentos católicos para tirar uma casquinha dos meninos e viver secretamente os seus desejos. Numa verdadeira subversão das práticas católicas, o confessionário se convertia em esconderijo e refúgio, espécie de cantinho escuro dos prazeres, para manter os segredos íntimos do padre longe do campo de visão dos seus pares.

Ao invés de expor abertamente as práticas do padre, Anaïs ofereceu sugestivas imagens para mexer com a imaginação do leitor. A descrição da cerimônia de lavação do pênis em água benta dos meninos que se masturbavam, por exemplo, é bastante econômica. Sabemos que era realizada à noite e em grande segredo. Não ficamos sabendo o que de fato acontecia, mas imaginamos muitas coisas. Estariam aí as sutilezas e particularidades do tratamento feminino e de uma “escrita feminina” (expressão de Henry Miller) sobre a sexualidade?


Anaïs espiou o passado colonial pelo buraco da fechadura e imaginou, freudianamente, suas intimidades secretas, proibidas. O final do conto é o desfecho exemplar de uma tese freudiana imaginada no interior de uma instituição disciplinar e controladora da sexualidade. Um grupo de dez meninos se perde no mato durante um passeio escolar e, sem mais nem menos, jogam o “delicado menino loiro” na grama, sem roupas, de barriga para baixo, e usam-no como uma “prostituta”. Embora o garoto gritasse e esperneasse, foi agarrado à força e todos satisfizeram suas vontades.  O desejo contido e reprimido pela educação jesuítica castradora explodiu em fúria. O desejo reprimido pela rígida formação católica, mas secretamente estimulado pelo padre durante as confissões, se manifestou de forma agressiva e violenta sobre o garoto com traços femininos.

A imaginação erótico-literária de Anaïs viu no Internato jesuítico muito mais do que um espaço educacional, guiado pelo Ratio Studiorum visando à formação cristã do homem, destinado aos meninos de boas famílias. O colégio, para além do ideal cristão e pedagógico, era também um espaço de voyeurismos, de olhares furtivos, desejantes, de paixões silenciosas, de aprendizagens paralelas, de descobertas sobre a sexualidade.

O jesuíta de pau duro inventado por Anaïs é a antítese perfeita de Nóbrega e Anchieta. É o ponto fora da curva da Companhia de Jesus. É o lado menos heroico, virtuoso e mais humano dos jesuítas. Imagino padre Dobo, verdadeiro soldado de Afrodite na Terra dos Papagaios, travando seus próprios combates entre os teimosos prazeres da carne e o opressor modelo de castidade e santidade de Inácio de Loyola e Francisco Xavier.

Olhando da perspectiva da Companhia de Jesus, padre Dobo era a erva daninha indesejada que comprometia a vinha de deus. Da perspectiva do padre, no entanto, ele estava no jardim das delícias (não o de Hieronymus Bosch), se alimentando da beleza e do frescor das delicadas flores que germinavam sob seus cuidados.

Vale lembrar que nos tempos coloniais a infância e a adolescência não tinham os mesmos significados que têm hoje. A infância, como objeto discursivo, ou a criança, como um ser social, portadora de direitos, simplesmente não existiam. O crime de pedofilia, que atormenta a igreja católica contemporaneamente, portanto, não se aplica aos deslizes morais do padre Dobo. Seus pecados, aos olhos da moral católica da época, eram outros.


4 comentários:

  1. Belíssima análise!!!!

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  2. O jesuíta de pau duro, a dureza do desejo reprimido e proibido, a violência sexual, as letras que escorrem de Anaïs e a sua sensibilidade histórica, erótica e... quiçá, jesuítica, é um quadro e tanto na mente da pobre Guinevere.

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