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sábado, 29 de agosto de 2015

A BUSCA DOS GUARANI PELA "TERRA SEM MAL": UMA INVENÇÃO DA ETNOGRAFIA? (Um Estudo Sobre os Guarani do Paraguai Colonial - Séculos XVI e XVII).

A BUSCA DOS GUARANI PELA TERRA SEM MAL: UMA INVENÇÃO DA ETNOGRAFIA? (Um Estudo Sobre os Guarani do Paraguai Colonial - Séculos XVI e XVII).



Uma versão mais completa desse texto, com notas explicativas e referências bibliográficas, foi publicada na Revista Interseções (Revista de Estudos Interdisciplinares), da UERJ.





Introdução: a “terra sem mal” e a metafísica religiosa dos guarani modernos (séculos XIX e XX).

A busca dos povos guarani pela “terra sem mal” é, desde os trabalhos de Curt Unkel (Nimeundaju), um dos temas mais fascinantes e dramáticos da etno-história dos povos tupi-guarani. Encerra, a um só tempo, uma recusa profunda e melancólica do mundo, face à sua existência na terra imperfeita (não divina) e às pressões da sociedade que os cerca, e a projeção de um ideal que se mostrou inalcançável. Ideal de fundo cosmológico, catalizador de um desejo coletivo que se traduz num nomadismo existencial em busca da imortalidade. As migrações em busca da “terra sem mal”, no século XX, são fundadas numa profunda metafísica religiosa. Os guarani são seres do devir, orientados por um discurso mitocosmológico que se realiza numa escatologia apocalíptica, desejável e inevitável, embora sempre adiável.

Em 1921 Nimuendaju surpreendeu um grupo m’bya próximo da cidade de São Paulo em meio a uma migração em busca da “terra sem mal”, supostamente situada no leste, além do mar. Nimeundaju seguiu com o grupo durante três dias até alcançar a Praia Grande, a sudeste de Santos. Chegaram à noite, sob forte chuva, e não conseguiram avistar o mar. “Mas, pela manhã, registrou o etnólogo, a chuva parou e o sol se levantou radiante e esplendoroso do mar. Ensimesmados e mudos, os paraguaios estavam a meu lado sobre a duna. Visivelmente, toda a situação lhes parecia extremamente lúgubre. Eles haviam, aparentemente, imaginado o mar de forma totalmente diversa e, sobretudo, não tão terrivelmente grande. Sua confiança tinha sofrido um golpe violento. Eles se mostraram bastante abatidos, especialmente à noite, e o canto de pajelança a Tupãcý, que eu aguardava com grande expectativa, não progredia, embora eu também tivesse trazido o meu maracá e procurasse ajudar com todas as minhas forças” (Nimuendaju).

Essa extraordinária experiência mudou profundamente a maneira como Curt Unkel via os guarani, e mudou sensivelmente a maneira como os etnólogos passariam a vê-los daí para frente.

Os guarani do início século XX, que se deslocavam em busca do paraíso terrestre, surpreendidos por Nimuendaju em plena migração, já não eram mais como os guarani dos tempos coloniais. A colonização, a evangelização, a formação dos estados nacionais e a dramática redução de seus territórios alteraram sensivelmente o “modo de ser” desses povos. Práticas antigas foram abandonadas e elementos da tradição cristã, antes ignorados, foram incorporados ao repertório de crenças e valores dos guarani modernos. A busca pela “terra sem mal” no século XX talvez seja a melhor expressão das profundas mudanças pelas quais estes povos passaram desde os tempos das conquistas portuguesas e espanholas, sejam elas militares ou jesuíticas, na América do Sul.

 No século XXI - a uma distância considerável dos grupos com os quais Nimuendaju teve contato entre 1907 e 1921 - as demandas e o modo como guarani lidam com o mundo a sua volta já não são mais os mesmos. A dinâmica e o “modo de ser” destes povos acompanham, por vezes tragicamente, as mudanças do mundo que os cerca. Neste sentido, diria que hoje a “terra sem mal” não é mais o paraíso cosmológico a ser alcançado pela visão e condução infalível de um Pajé. A terra mítica que os guarani buscaram no século XX pode ser equiparada neste início de novo século às terras a serem demarcadas (tekoha), por políticas públicas sensíveis ao drama histórico destes povos, quer no Mato Grosso, quer em Santa Catarina.

A “terra sem mal”, conforme indicam os estudos etno-históricos, é um tema central da cultura guarani do século XX. Poderíamos dizer o mesmo sobre os guarani dos tempos coloniais?  O texto que segue é uma resposta, breve e provisória, para esta pergunta. Embora as observações possam ser estendidas para povos guarani da América Portuguesa, dirijo a atenção para os guaranis que viviam na região denominada Paraguai, entre os séculos XVI e XVII.

A projeção etnográfica para os tempos coloniais.

Os trabalhos etnográficos e linguísticos desenvolvidos a partir do início do século XX têm possibilitado uma maior aproximação do “modo de ser” guarani. As pesquisas pioneiras de Curt Unkel (Nimuendaju) entre os apapocúva e os estudos mais sistemáticos de Alfred Métraux, Egon Schaden e Léon Cadogan, que cruzam pesquisas etnográficas com leituras mais apuradas das fontes coloniais, reuniram um volume extraordinário de informações e abriram inúmeras linhas de pesquisas sobre os guarani atuais e os do passado. A relativa conservação entre os guarani atuais de alguns traços fundamentais do seu “modo de ser”, como o “profundo senso de identidade” e o “discurso profético” (John Monteiro), tem facilitado os estudos comparativos e o preenchimento de lacunas existentes na documentação referentes aos séculos XVI e XVII. No entanto, alguns problemas metodológicos resultantes da projeção de informações colhidas entre os guarani modernos para explicar os guarani do passado vem sendo observados por etnólogos, etno-historiadores e arqueólogos. Em primeiro lugar, a não observância das grandes alterações provocadas pela conquista/colonização e pela evangelização no modo de vida dos povos indígenas. Em segundo lugar, os dados etnográficos colhidos no século XX determinam a leitura das fontes coloniais. O caso mais notável talvez seja o da busca pela “terra sem mal”.

Dos guarani, ou “carios”, descritos por Luís Ramírez e Ulrico Schmidl, na primeira metade do século XVI, aos guarani apapocúva etnografados por Nimuendaju vai uma grande distância. O ethos guerreiro e a antropofagia daqueles horticultores das cabeceiras do Paraguai estão muito distantes daquele povo místico que caminhava na direção do mar em busca da terra sem mal, guiado pelo velho pajé Guyrapaijú, que Curt Unkel encontrou em 1907 no oeste de São Paulo. Além disso, a brutal queda da densidade demográfica e a redução dramática da área de mobilidade, a desarticulação do complexo político e militar e as marcas profundas deixadas pelas experiências missionárias e reducionais, são algumas das mudanças de grande impacto que se colocam entre os guarani de Ramírez e Schmidl e os de Curt Unkel. As projeções retrospectivas, como demonstrou Anna Roosevelt para o caso da Amazônia, que projetam o presente etnográfico para os tempos da conquista, parecem desconsiderar essas mudanças. Supõe-se que “o padrão básico do modo de vida indígena” não sofreu alterações significativas (Anna Roosevelt). No entanto, como já salientou John Monteiro, dois aspectos centrais ao “modo de ser” guarani, como a guerra e o canibalismo, tão destacados nos cronistas do século XVI, desapareceram sob o efeito do cristianismo e da colonização.

Ao longo de quatro conturbados séculos, repletos de experiências trágicas, muita coisa se perdeu, muita coisa se adquiriu e outras tantas se mesclaram. Se a antropofagia ritual foi abandonada, as migrações realizadas de tempos em tempos se mantiveram como traço distintivo do guarani. Dois observadores, em épocas diferentes, registraram esse fenômeno. Ulrico Schimdl, um soldado alemão a serviço da coroa de Espanha, percebeu que “los sobredichos Carios migran más lejos que ninguna nación que está en esta tierra en Rio de la Plata (...)”. Nimuendaju encontrou os m’bya em 1921, num pântano às margens do Tietê, a treze quilômetros de São Paulo, em meio a uma dramática migração. Miseráveis e extenuados tentavam chegar ao mar para seguir viagem em direção ao leste. Não conseguindo demovê-los da jornada, o etnólogo juntou-se ao grupo. A chegada foi uma dura decepção. Os m’bya nunca haviam visto o mar. Diante da imensidão, o grupo se deparou com uma terrível realidade: o acesso a “terra onde não mais se morre” era bem mais difícil do que imaginavam. O guarani do século XVI migrava, o do começo do século XX continuou migrando. O impulso às migrações, supomos, manteve-se preservado, mas as motivações já não eram mais as mesmas.



Estes deslocamentos constantes dos guarani no espaço suscitaram diversas interpretações. A mais célebre delas é a da busca pela “terra sem mal”, um caso emblemático de “projeção etnográfica”. A busca, nos tempos pré-coloniais, por uma terra boa, não cultivada, uma terra econômica, foi associada, no século XX, com a busca profética da “terra sem mal”. Foi Nimuendaju quem relacionou pela primeira vez o material etnográfico, recolhido por ele próprio, entre os guarani da primeira metade do século XX com os relatos dos cronistas e missionários dos séculos XVI e XVII sobre os tupi do litoral brasileiro e os guarani do Paraguai. Nimuendaju levantou duas suposições que se mostrariam de enorme fertilidade entre os etnólogos: a da persistência das migrações, dos tempos coloniais ao século XX, e o papel propulsor da religião nas migrações. As migrações tinham como objetivo final alcançar o yvýmarãey que, para a maioria dos pajés guarani que contatou, situava-se no leste, além do mar (Nimuendaju). A busca pela “terra sem mal”, ou yvýmarãey, fazia parte do universo religioso tupi-guarani antes da chegada dos conquistadores. Foi em busca deste paraíso da abundância que saíram, segundo Nimuendaju, dos Andes e se dirigiram ao litoral do Atlântico e a bacia do Prata:

Os fatos históricos só fazem confirmar o que os próprios índios sempre me asseguraram: a marcha para leste dos Guarani não se deveu à pressão de tribos inimigas; tampouco à esperança de encontrar melhores condições de vida do outro lado do Paraná; ou ainda ao desejo de se unir mais intimamente à civilização – mas exclusivamente ao medo da destruição do mundo e à espera de ingressar da terra sem Mal.

A ameaça do fim do mundo, o cataclismo mítico das narrativas que Nimuendaju ouviu entre os apapocúva, era o impulso fundamental que os impelia à “fuga para a Terra sem Mal” em busca da “salvação”. As Lendas da Criação e Destruição do Mundo, publicada em 1914, trouxe a público a cosmologia e a escatológica guarani. Revelou também o drama cósmico de um povo que vivia a certeza do fim do mundo, do dia em que a terra iria desmoronar e a espécie humana seria devorada por Jaguarový, o Jaguar Azul. O mito de Guyrapotý, o pajé legendário que reuniu os guarani e os conduziu em direção ao mar, era o fundamento das migrações místicas. Diversos pajés, inspirados na bem sucedida migração de Guyrapotý, teriam conduzido, embora sem os efeitos esperados, os povos guarani no século XX em direção ao leste. A crença na “terra sem mal” teria sobrevivido à conquista, ao colonialismo e a cristianização, e se mantido intacta entre grupos de guarani remanescentes.

A busca pela “terra sem mal”, a grande descoberta etnológica de Nimuendaju, tornou-se um dos temas mais importantes da etnologia e da antropologia indígenas. De qualquer maneira, devemos observar que, apesar da força dos argumentos e da autoridade do etnólogo que conviveu de maneira singular entre os guarani, a ideia mais geral de que a busca pela “terra sem mal” tem como “mola propulsora” não a expansão bélica mas a religião foi apresentada como “suposição”. Daí para frente o tema ganhou vida própria e tornou-se, nos meios acadêmicos, o fundamento da religiosidade guarani, um “dado objetivo” que, na avaliação de Cristina Pompa, dispensa o exame das fontes. Nimuendaju tornou-se a própria fonte.

Alfred Métraux, na trilha aberta por Nimuendaju, relacionou os dados etnográficos com as fontes coloniais num estudo clássico sobre as migrações tupi-guarani. “Gracias a los mitos y a las tradiciones recogidas em nuestra época, reconhece o antropólogo suíço, sucesos oscuros, consignados em las narraciones de viajeros y misioneros de los siglos XVI y XVII, adquieren hoy su verdadeira significación.”. Partindo dos dados recolhidos por Nimuendaju entre os apapocúva e comparando-os com as informações dos cronistas coloniais – Nóbrega, Thevet, Abbeville, Cardim, Yves d’Evreux, para a costa brasileira, e Barco Centenera, Montoya, Lozano, Techo e José Guevara, para o Paraguai – Métraux chegou a conclusão de que o mito da terra sem mal não só era parte fundamental da estrutura religiosa dos guarani do século XVI, como se conservou intacto entre os do século XX, como demonstrou Nimuendaju. Estes fenômenos ocorreram tanto na costa brasileira como no Paraguai, pois os tupi e os guarani “participaban de una misma tradición cultural (...)”. O “antiguo Paraguay, habitado por los índios guaraníes”, foi durante séculos a terra de eleição dos messias e profetas indígenas. Em nenhuma região do mundo, informa Métraux, ocorreram tantos movimentos de libertação mística.

A mitologia de algumas tribos tupi-guarani “deja constancia de una tierra maravillosa, llamada “La Tierra sin Mal”, a la cual el antepasado o el héroe civilizador se retiro después de haber creado el mundo y traído a los hombres los conocimientos esenciales para su supervivência.” (Métraux). A terra sem mal, da qual os apapocúva tinham “una imagen muy precisa”, não era somente um lugar de abundância e delícias, era também um refúgio eterno que estava à espera dos homens quando Nanderikey retirasse uma das estacas que escora a terra e precipitasse o fim do mundo. Profetas e messias eram os arautos deste paraíso e se apresentavam “como los salvadores de su pueblo”. Para garantir adeptos para as suas prédicas, que antecipavam as migrações, reivindicavam a qualidade de deus e de emissário divinos. Os heróis civilizadores, benfeitores celebrados nas narrativas míticas, serviam de modelos para os messias indígenas. A crença no retorno destes heróis estava fortemente enraizada na tradição guarani, o que amplificava os apelos dos messias (Métraux).

As tradições míticas e as migrações na direção da terra sem mal são vistos por Métraux como um messianismo genuinamente indígena, mas o impacto da colonização, e toda sorte de privações e sofrimentos que se abateram sobre aos indígenas, exacerbaram entre eles o desejo de evadir-se para um mundo “de reposo eterno e immotalidad.” A tese de Métraux é que fermentadas sob determinadas circunstâncias históricas de crise estes movimentos tendem a se multiplicar. A ameaça de esfacelamento da ordem tradicional, verificada em vários momentos e em “diversos países”, leva a agitação messiânica, que é a “expresión de la desesperación, más o menos conciente.” O desespero predispunha os indígenas a ouvirem os messias e as suas prédicas sobre o advento de uma idade de ouro. A fuga para a terra sem mal era a solução oferecida por esses “profetas”.

Sobre a natureza pura ou sincrética desses movimentos, Métraux fez a seguinte ponderação:

Si el mesianismo guarani y tupinamba era debido a causas internas, sería, sin embargo, poco inteligente ignorar los factores externos que han creado certamente un clima propicio a la predicación mesiánica. Algunos movimentos han tenido un caráter sincrético; otros, a pesar de ciertos prestamos del catolicismo, expresaban creencias y valores puramente indígenas.


Assim, na América do Sul, sacudida pelo colonialismo, se encontra, segundo Métraux, o esquema clássico do messianismo: a crença num profeta ou homem-deus, o desenvolvimento de uma ação que tende a apressar o advento da idade de ouro, a reação social e cultural contra a civilização branca e, frequentemente, a formação de uma nova religião sincrética. Os “mesías” guarani citados por Métraux foram Oberá, Yaguariguay, Guiravera, Juan Cuara e Ñezú. Baseado nas narrativas de Barco Centenera, Lozano, Montoya, Techo e Guevara, Métraux descreve essas personagens e as linhas gerais dos movimentos por elas liderados. Oberá, que se dizia filho de Deus, pregava a destruição dos cristãos e prometia liberdade a todos; Rodrigo Yaguariguay se fazia adorar como Deus e a sua mulher como Virgem Maria, imitava os ritos cristãos e organizou uma revolta contra os espanhóis; Juan Cuara era um pajé do Guairá que reunia os índios para a resistência; Ñezú era venerado como um Deus, abrigava índios fugitivos das reduções e sua autoridade provinha da eloqüência e da reputação de grande feiticeiro; Guiravera se proclamava Deus e organizou a resistência contra os jesuítas.

Ao debruçarmo-nos sobre a documentação referente às rebeliões lideradas por esses chefes indígenas, verificamos que o que existe em comum entre esses movimentos é o fato de que foram liderados por chefes religiosos que se sublevaram contra a autoridade espanhola e jesuítica, e mesclaram temas indígenas e cristãos. Esse é o único traço messiânico, por assim dizer, encontrado nesses movimentos. Em nenhum deles, por outro lado, encontramos uma convocação ou um apelo à imigração, quanto mais uma fuga para a “terra sem mal”. Mas pelo fato dos guarani e os tupinambá participarem de uma mesma tradição cultural, e entre os tupinambá existirem evidencias de migrações, Métraux deduziu nas revoltas guarani um chamado à imigração e à restauração de uma idade de ouro.



Associado ao tema da “terra sem mal”, e inseparável dela, desenvolveu-se entre os etnólogos e etno-historiadores no século XX o conceito de messianismo tupi-guarani. Desde os estudos pioneiros de Alfred Métraux na década de 1920, o qualificativo messiânico vem sendo atribuído aos movimentos de resistência protagonizados pelos guarani contra, segundo a imaginação acadêmica, o poder colonial. Métraux lançou no debate etnológico o tema do messianismo, mas foi Maria Isaura Queiroz que lhe emprestou os contornos teóricos mais acabados num admirável estudo sobre as manifestações do messianismo no mundo. Acompanhando a trajetória dos termos messias e messianismo Maria Isaura os identifica na tradição bíblica e nas lutas do povo de Israel. A conotação definitiva de messianismo, como a promessa de uma idade de ouro que estaria ainda por vir como reparadora das injustiças e sofrimentos deste mundo, só se formaria após o cativeiro da Babilônia. Mas o que realmente interessa a autora é o emprego deste conceito nos estudos históricos e sociológicos para designar, sob o qualificativo messiânico, movimentos e lideres religiosos que carregaram promessas de redenção. Maria Isaura encontra em Max Weber uma definição de messias: um líder essencialmente carismático e dotado de poderes extraordinários.

Cristina Pompa ao fazer um balanço dos estudos clássicos sobre a terra sem mal e o messianismo atribuído aos tupi e guarani salienta as “preocupações totalizantes” de Maria Isaura ao tentar inserir os movimentos tupi-guarani num quadro geral sobre o messianismo no mundo. Seguindo uma classificação weberiana do “tipo ideal” a socióloga, segundo Pompa, arrolaria num único rótulo, e a partir de um único horizonte mitológico, os movimentos indígenas, “abstraído de qualquer contexto histórico e lançado no universo abstrato do presente sociológico”. Se lermos com atenção a apresentação que Roger Bastide faz do estudo e de algumas análises de Maria Isaura, veremos que a abordagem sociológica da autora não é tão inflexível e homogeneizadora como sugere Pompa. A obra busca, é verdade, abarcar os movimentos de várias épocas e lugares numa “sociologia do messianismo”, mas é também suficientemente flexível para não lançar os movimentos que destoam do modelo no leito de Procusto. Destaco um ponto. No capítulo sobre os “movimentos messiânicos em tribos primitivas” Maria Isaura diagnostica uma “efervescência religiosa” na costa brasileira. Identifica os movimentos migratórios “registrados por cronistas e jesuítas”, seguindo as ideias de Métraux, como movimentos em busca da “terra sem mal”, do paraíso nativo - e neste ponto estou de acordo com as críticas certeiras de Cristina Pompa no que se refere à leitura forçada dos cronistas e jesuítas –, mas não estende a mesma análise aos guarani do Paraguai. Com percepção aguçada, de quem leu a documentação, não hesitou em apontar a singularidade dos movimentos guarani: eram contra o crescente poder dos jesuítas, “e não uma fuga para Terra sem Males”.

Hélène Clastres é um caso a parte. O mito da “terra sem mal” deve a ela, sem dúvida, sua entronização na academia e sua popularidade. “Terra sem Mal” é uma obra tão empolgante quanto imprecisa. Acumula um conjunto de belas interpretações que algumas vezes se esvaziam em abstrações forçadas e deslocadas. Diversos pesquisadores apontaram os exageros e as derrapadas da etnóloga, mas a beleza, o estilo conciso e a originalidade da obra são evidentes. Ao mesmo tempo em que procura uma história indígena autêntica, subordina esta história à comprovação de uma teoria. Hélène anuncia na introdução que pretende mudar o “enfoque da história dessas culturas”. Ao contrário de Nimuendaju e Egon Schaden, que reconstroem o “passado dos tupis-guaranis a partir do que hoje se sabe, ou se acredita saber, sobre sua religião (...), assumimos a postura inversa e optamos por retomar a história a partir dos seus primórdios.” O fio condutor de Hélène é a terra sem mal, “um tema muito antigo, cuja presença já era atestada no século XVI entre todos os tupis-guaranis”, e que se verificou também entre os guarani do século XX. Apesar de afirmar que o núcleo da vida religiosa dos tupi-guarani gravitava em torno da “terra sem mal”, Hélène estabelece uma importante distinção entre os tupi e os guarani:

Se a religião dos tupis-guaranis foi mal compreendida, é que se confundiram, a nosso ver, sob o termo único de “messianismo”, movimentos na realidade profundamente diferentes, uns exclusivamente religiosos e que a partir de agora denominaremos proféticos (a procura da terra sem mal), e outros unicamente políticos (a resistência aos espanhóis e aos portugueses), movimentos cujo único ponto comum era terem caraís por atores principais.

De fato, não existem registros de migrações entre os guarani, nos séculos XVI e XVII, em busca da “terra sem mal”. O que não quer dizer que os movimentos/rebeliões tenham sido “unicamente políticos”. Como veremos mais adiante, os levantes indígenas também tiveram um forte conteúdo religioso, e foram orientados não apenas contra espanhóis e portugueses, mas também, principalmente aqueles liderados pelos pajés, contra os missionários. Mas se as revoltas dos guarani não tinham como objetivo a terra sem mal, o que estaria em jogo? Para Hélène Clastres as revoltas dirigidas pelos caraís representavam, naquele momento, a oposição política aos caciques.

Mesmo não encontrando evidências sobre a terra sem mal, Hélène sustenta que a busca por este paraíso da abundância e da imortalidade era o eixo fundamental das crenças dos guarani. No século XIX foram registradas migrações de “várias tribos”, desde o Mato Grosso, “à procura da Terra sem Mal”. Estas migrações, livres de todo sincretismo, deduziu Hélène, eram sinais inequívocos de que a tradição religiosa se manteve intacta: “uma tradição religiosa que nem os maiores abalos conseguiram enfraquecer.” Hélène fez exatamente aquilo que criticou em Nimuendaju e Schaden, ou seja, reconstruiu o “passado dos tupis-guaranis a partir do que hoje se sabe, ou se acredita saber, sobre sua religião”. 

Parafraseando Roger Bastide, o modelo dos movimentos messiânicos é o leito de Procusto dos pajés e caciques guarani que se ergueram contra a presença dos jesuítas em suas terras. Um dos ingredientes fundamentais do messianismo, aplicado aos movimentos indígenas sul-americanos, é a busca da “terra sem mal”. Contrariando o modelo, os pajés guarani nunca mencionaram ou prometeram nada que mesmo remotamente lembrasse o suposto paraíso nativo. Outro aspecto indispensável, apresentado por Egon Schaden, é a existência de uma comunidade que responda ao chamado do Messias, o “portador do ideal coletivo”, e deposite em suas mãos a esperança de restauração da antiga ordem desintegrada pelo “branco invasor”. Novamente os movimentos indígenas do Paraguai mostram-se escorregadios. De um modo geral, os levantes promovidos pelos pajés ou pelos caciques contrários a evangelização não mobilizam a comunidade com promessas redentoras. Na maioria dos casos os pajés estavam acuados e marginalizados, e usavam de ameaças para ter o apoio dos índios contra os padres.

As rebeliões desencadeadas por Guiravera e Ñezú, por exemplo, não cabem na fórmula messiânica. Para encaixá-las nesta categoria devemos aparar algumas sobras incômodas, que acabam por mutilar sua originalidade. Mas é possível sim identificar alguns aspectos do modelo messiânico em alguns movimentos. Guirabera, por exemplo, se passava por Deus e incitava os índios contra os missionários. Oberá, por sua vez, afirmava sua origem divina e se proclamava salvador de seu povo. Essas são características do que se convencionou chamar messianismo, mas isso não é suficiente para caracterizá-los como messiânicos. Falta-lhes o elemento central: a crença da comunidade na figura do redentor que colocará um termo no estado de degeneração em que as coisas se encontram e instituirá uma nova ordem de justiça e de felicidade. As revoltas dos pajés guarani, no Paraguai dos séculos XVI e XVII, não correspondiam a essas expectativas. Destaca-se, no caso famoso de Guiravera, o lado anti-colonial e místico do movimento, o lado romântico, diria, mas esquece-se com facilidade que o pajé queria comer padre Montoya, e que comeu um de seus ajudantes. Enfatiza-se que Yaguacaporo liderou um “movimento de libertação mística”, e não estou afirmando que isto não ocorreu, mas esquece-se que o pajé ameaçava os índios com figuras medonhas que sairiam de seus esconderijos e se lançariam vorazmente sobre eles.

Nas fontes da América espanhola dá época da conquista e do período colonial a busca por vestígios da “terra sem mal” é tarefa frustrante. Não há registros sobre o suposto paraíso guarani em nenhum dos relatos referentes à conquista do Paraguai e, o que parece ainda mais intrigante, não há nenhuma referência na extensa documentação jesuítica. Hélène Clastres reconheceu esta ausência.

Se a “terra sem mal” fazia parte do universo religioso-cosmológico dos guarani e sua busca motivou as migrações lideradas pelos pajés, que os conduziram a região inter-fluvial do Paraguai e Paraná, porque ela não é mencionada em nenhum momento nas narrativas da conquista, especialmente nas jesuíticas? A “terra sem mal” não só nunca foi mencionada, como não foi usada pelos jesuítas para fins de conversão. Se ela ocupava um lugar de destaque na cosmologia guarani, como sugerem etnólogos e etno-historiadores, seria de se imaginar que os jesuítas a incorporassem ao seu repertório de temas catequéticos, ou para desmistificá-la, ou para aproveitá-la como estratégia de conversão, associando-a a equivalentes simbólicos como, por exemplo, o tema do paraíso cristão. A “terra sem mal”, adaptada à linguagem da conversão, poderia resultar em úteis paralelos com o paraíso, o éden, o céu, temas recorrentes na predicação do cristianismo entre os guarani.

A etnologia no século XX traduziu a expressão yvýmarane’ý, encontrada no “Tesoro de lalengua Guarani”de Montoya, publicada em 1639, por “terra sem mal”. Em Montoya, como já foi assinalado por Meliá, a expressão significa “suelo intacto que no há sido edificado”. Esse era o sentido da expressão na época da conquista. A tradução encontrada em Montoya não autoriza sua equivalência por “terra sem mal”. No século XX, porém, Nimuendaju encontrou entre os grupos guarani que contatou a expressão yvýmarãey com o significado de “terra sem mal”, o paraíso onde desejavam ingressar. Tudo leva a crer que ocorreu uma alteração semântica. O mais provável é que as prédicas dos missionários sobre a existência de um paraíso podem ter se fundido as buscas pela terra boa e intacta, sobretudo quando esta terra começou a tornar-se cada vez menos acessível. A desmontagem do complexo político-militar guarani, o cerco à liberdade de movimento, o encontro com a mística cristã e a marginalização desses povos após a dispersão das missões e a criação dos estados nacionais, alteraram profundamente o seu modo de ser. Parece plausível, dadas essas condições, a hipótese de que a busca pela terra boa, não cultivada, cada vez mais distante, teria se transformado na busca por um lugar místico, cujo acesso seria possível graças ao poder mágico dos pajés. Bartomeu Meliá, distanciando-se dos modelos generalizantes e adotando uma visão histórica, mais próxima dos documentos coloniais, associou originalmente a mudança semântica de yvýmarane’ý com a história colonial:

La história semântica de yvýmarane’ý, de suelo virgen hasta “Tierra sin Mal” probablemente no está desligada de la história colonial que los guarani hás tenido que soportar. Em la busqueda de um suelo donde poder vivirse modo de ser auténtico, los guarani pueden Haber hecho cristalizar tanto sus antiguas aspiraciones religiosas quanto la conciencia de los nuevos conflictos históricos. Yvýmarane’ý se convertia en “tierra sin Mal, tierra física, como em su acepción antigua, y a la vez tierra mística, después de tanta migración frustrada.


Não pode passar despercebido também que em nenhum dos cronistas da primeira metade do século XVI – Luís Ramírez, Ulrico Schimdl, Cabeza de Vaca e mesmo Ruy Diaz de Guzmán - os “hechiceros”, ou os “messias indígenas”, foram mencionados com algum relevo. Essas figuras que atormentaram os missionários e povoaram as narrativas jesuíticas como grandes inimigos da evangelização não figuram nestes relatos dos primeiros contatos da conquista espanhola. Um dado realmente curioso se levarmos em conta as hipóteses de Métraux e os vaticínios de Hélène Clastres sobre as migrações místicas lideradas pelos “messias”, que vinham desde os tempos anteriores à conquista, em busca da “terra sem mal’.

A “terra sem mal” foi durante décadas um dos mais fascinantes temas relacionados às culturas tupi e guarani, tanto da costa brasílica quanto do Paraguai, dos séculos XVI e XVII. Os estudos mais recentes e as pesquisas com a documentação colonial têm, no entanto, levantado sérias dúvidas sobre a existência dessa espécie de paraíso dos povos tupi e guarani. Cristina Pompa, recentemente, relendo a documentação colonial, levantou sérios questionamentos sobre a existência do paraíso tupi-guarani no que diz respeito à América portuguesa. No caso do Paraguai colonial, como procuramos demonstrar, também não existe registros sobre a “terra sem mal” na documentação jesuítica nem nos relatos dos cronistas dos primeiros tempos da conquista. As descobertas etnográficas de Nimuendaju sobre a “terra sem mal” entre os guarani, que contatou no início do século XX, foram aceitas e projetadas para os povos tupi e guarani contatados pelos europeus nos séculos XVI e XVII. A documentação colonial foi lida a luz da etnografia com vistas a comprovar a tese da persistência dos movimentos migratórios em busca do paraíso terrestre entre os guarani, desde os tempos anteriores as conquistas europeias.

Talvez não seja exagero supor que o tema da “terra sem mal” fosse tão estranho a um guarani do século XVI e XVII quanto o canibalismo é para um guarani do século XX.


Bibliografia.

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