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quarta-feira, 27 de julho de 2016

E ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE: OS DIFERENTES SENTIDOS DAS CAMINHADAS E A PERCEPÇÃO HISTÓRICA DAS DISTÂNCIAS.

E ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE: OS DIFERENTES SENTIDOS DAS CAMINHADAS E A PERCEPÇÃO HISTÓRICA DAS DISTÂNCIAS.


“É bom colecionar coisas, mas é melhor caminhar. Porque caminhar também é uma forma de colecionar coisas: as coisas que a pessoa vê, as coisas que a pessoa pensa” (Anatole France).











Idoso caminhando no campo de centeio. Óleo sobre tela (Laurits Andersen Ring). 



Pensar historicamente, por mais óbvio que possa parecer, é entender que as “coisas” não são sempre do mesmo jeito.  De uma maneira mais sofisticada, é entender que “aquilo que foi nem sempre é” (Foucault). As distâncias, em termos culturais, que nos separam de passados nem tão distantes são tão grandes que, por vezes, não nos reconhecemos nas narrativas que ouvimos de pessoas mais velhas. Olhar historicamente para trás, sem perder de vista a nossa condição no tempo, é a melhor forma de nos darmos conta das mudanças de valores, de comportamentos, das percepções de tempo e espaço (longe, perto) que singularizam o nosso presente. Embora a referência ao filme no título possa denotar o contrário, o post é um livre exercício de descontinuidade histórica.

Quando criança adorava ouvir as histórias do meu pai sobre as enormes distâncias que percorria, a pé ou a cavalo, para trabalhar na feira com meu avô ou visitar um parente no interior de Santa Maria (RS). As narrativas de vidas de pessoas mais velhas, ainda que com boas doses de exagero e de romantizações, são algumas das melhores formas de retorno ao passado. Na década de 1950 meu pai namorava uma menina numa localidade de Santa Maria chamada Caturrita. Saía de casa bem cedinho, antes do sol nascer, andava o dia todo a pé e chegava a tardinha. No dia seguinte, bem cedinho, iniciava a marcha de volta. Na ida, levava presentes. Na volta, trazia algum pedaço de carne e banha de porco, boa para fritar peixes e modelar o cabelo (nos tempos da brilhantina, os rapazes pobres do interior usavam banha de porco como cosmético). Quando perguntado sobre a distância, dizia sempre: “não era longe não, era logo ali, era um pulinho.”

Ouvia curioso e ficava imaginando as longas caminhadas e as dificuldades encontradas pelo caminho (as estradas eram de chão batido, as picadas no meio da mata eram perigosas e a travessia dos rios e córregos era sobre pinguelas improvisadas ou um troco de árvore). Anos depois, como historiador e pesquisador, procurando boas histórias, me deparei com narrativas semelhantes. Ouvindo os moradores mais velhos de cidades do Alto Vale do Itajaí (Santa Catarina) sobre os primeiros tempos da colonização fiquei sabendo das longas caminhadas para chegar às localidades, entre as décadas de 1920 e 1950. A região onde se situam os municípios de Petrolândia e Ituporanga, antes conhecidas respectivamente como Perimbó e Salto Grande, foi povoada por colonos que subiam de colônias mais antigas como Santo Amaro, Angelina e São Bonifácio, a pé, empurrando carroças carregadas com pertences, em caminhadas que duravam mais de uma semana. Uma viagem de carro hoje percorre essa distância em uma hora. (A região para onde se dirigiam era habitada sazonalmente pelos xokleng e temporariamente por tropeiros que subiam ou desciam de Lages). Naqueles tempos, tudo estava por ser construído e as ligações entre os lugares eram por estradas ou picadas pouco transitáveis. Os vínculos com a antiga colônia, fundamentais para se estabelecer nas novas áreas, os obrigavam amiúde a percorrer grandes distâncias. Seu Evaldo Schistel, numa divertida conversa, contou que para visitar parentes ou “buscar uma coisa ou outra” em Angelina, distante 130 km aproximadamente, andava 30 km num dia. Era “fácil”, dizia, uma “coisa normal’. Tudo era muito longe. Para ir à missa, para visitar a namorada ou para buscar mantimentos na venda mais próxima, se não tivesse um bom cavalo, o jeito era caminhar. Mas isso não desanimava aquela gente, especialmente se a caminhada os levasse para um baile em Angelina.

Caminhadas longas, em terrenos acidentados, ou no meio da mata, é hoje um esporte radical. O praticante deve seguir uma série de recomendações, usar roupas especiais e escolher bem o modelo de tênis que melhor responda à intensidade da caminhada. Meu pai andava de sapatos, e vestia calça de tergal, os senhores que entrevistei também. O máximo que usavam para se proteger do sol forte era um chapéu. As sensibilidades e as susceptibilidades eram outras. O perigo não era o sol, eram as cobras, os “bugres”.

Antes, caminhava-se por necessidade. Não tinha outro jeito. Em alguns lugares mais acidentados nem cavalo adiantava. Os colonos abriam picadas na mata, que mais tarde viravam estradas, e iam desbravando os caminhos.  Hoje se caminha por esporte e para manter a saúde em dia. Embora não como antes, as longas caminhadas ainda fazem parte da rotina de muita gente no interior do Brasil. Quando estou subindo a Serra, rumo a Petrolândia/Ituporanga, vejo, nas laterais das estradas, pessoas caminhando, de chinelos de dedos, muitas vezes, vindo da roça ou da casa de parentes (imagino). Olho para trás, para frente e para os lados e não vejo um ponto de partida nem um possível ponto de chegada. 

Não há dúvida de que as distancia encurtaram e o ato de caminhar adquiriu novos significados. As distâncias encurtaram com os sofisticados meios de transportes. O que era longe ficou perto. Todavia, o que parecia perto para o seu Evaldo parece tão longe para mim. Uma viagem de duas horas, de Florianópolis a Ituporanga, no conforto do carro, com música e água gelada, parece uma eternidade.
É isso. Fico por aqui. Vou calçar meu tênis, fazer alguns alongamentos e caminhar meus seis quilômetros na beira mar sul. Seis quilômetros, ou mais, meu pai andava para ir à escola, todo dia. E carregava o material escolar.  Os tempos são outros, as prioridades, as sensibilidades e as urgências não são as mesmas.

Let´s walk? A motivação do meu pai era a namorada, a do seu Evaldo era um baile em Angelina. A minha? Vamos andar que eu te conto. Gosto de pensar e conversar enquanto caminho. Caminhadas são dispositivos filosóficos. Nietzsche andava para pensar, pois “os grandes pensamentos, dizia, resultam da caminhada”. Onde quer que estivesse, se entregava à longas caminhadas diárias, que podiam chegar a 8 horas. Depois, se entregava à reflexão sistemática e à escrita. Deixou um aforismo sobre escrita e caminhadas: "Não escrevo apenas com a mão: o pé também quer sempre participar". Rousseau, que também gostava das caminhadas, disse que a sua mente só trabalhava junto com as pernas. Caminhar para eles era um ato filosófico. Aristóteles lecionava caminhando pelo peripatos, uma alameda dos jardins do Liceu. Jesus pregava aos seus discípulos enquanto caminhava. Caminhar era um ato pedagógico. A fórmula de Santo Agostinho de “resolver problemas caminhado” (solvitur ambulando) reforça as propriedades inspiradoras e reflexivas de uma boa caminhada. A arte de caminhar ajuda a organizar as ideias e a pensar as coisas com mais clareza. Henry Thoureau, no século XIX, mergulhava nos bosques de Massachussets em longas caminhadas, para se encontrar consigo mesmo. Deixava tudo para trás, a cidade e os afazeres diários, e voltava aos seus sentidos. Colocava “um pé metodicamente adiante do outro” e seguia em frente. Nas suas metacaminhadas, refletia, a cada passo, sobre o significado de estar caminhado. Eram caminhadas autoconscientes. “Walden, a vida nos bosques”, publicado originalmente em 1854, é, em parte, uma elegia e uma reflexão sobre as caminhadas e um manifesto radical contra a civilização industrial. Caminhar era um ato vital.

Certamente meu pai e o seu Evaldo pensavam enquanto caminhavam. Pensavam nas coisas deles, nas chances de melhorar de vida, inventavam planos, avaliavam as situações e resolviam seus problemas andando. Não era o andar meditativo de Santo Agostinho, com as mãos atrás das costas, nem o andar aristocrático e pausado de Nietzsche. Era a marcha das urgências cotidianas, da sobrevivência.

As caminhadas, sejam elas filosóficas, ecológicas, terapêuticas, forçadas, meditativas, laborais ou pedagógicas, acompanham a trajetória humana. De Aristóteles ao seu Evaldo, as pessoas sempre andaram. O que não quer dizer que caminhar é simplesmente caminhar, independente do tempo e do lugar. As caminhadas têm suas próprias historicidades. Não são práticas atemporais. Perder de vista os aspectos que as singularizam em diferentes momentos e contextos é perder o pé da história, do sentido histórico. Os próprios adjetivos elencados acima nos dizem muito sobre os diferentes sentidos e motivos que envolvem o ato de caminhar.

Vamos caminhar enquanto estamos vivos. Os mortos só caminham no cinema!


3 comentários:

  1. Professor suas aulas sempre foram inspiradoras para mim. Obrigado e abraço...

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  2. Professor suas aulas sempre foram inspiradoras para mim. Obrigado e abraço...

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