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quinta-feira, 16 de março de 2017

RETRODIÇÃO: A CRÍTICA DA ADIVINHAÇÃO RETROSPECTIVA NO CAMPO DA HISTÓRIA EM NIETZSCHE.

RETRODIÇÃO: A CRÍTICA DA ADIVINHAÇÃO RETROSPECTIVA NO CAMPO DA HISTÓRIA EM NIETZSCHE.



Se no mundo quântico, segundo o físico Kater Murch, o futuro afeta o passado, no campo da história poderíamos dizer que o presente, visto como o futuro do passado, também afeta o passado, embora de outra maneira. Nos domínios da física debate-se se o tempo é real ou uma ilusão e se o futuro do universo pode estar influenciando o presente. Segundo Murch, “(...) há uma trajetória indo em um curso para trás e uma trajetória indo para a frente, e, se olharmos as duas juntas e pesarmos a informação em ambas igualmente, temos algo que chamamos de uma previsão retrospectiva, ou 'retrodição'”.

As discussões no campo da física sobre a previsibilidade do passado podem trazer bons insights aos historiadores sobre a maneira como reconstruímos as experiências de outros tempos. A retrodição, espécie de teleologia invertida, apontada para o passado, é um “vício” metodológico recorrente, e quase despercebido, entre os historiadores. Foi diagnosticado com precisão e originalidade pela primeira vez por Nietzsche, no século XIX, embora não com esta denominação. No Brasil, salvo as notas de José D´Assunção de Barros, o tema é muito pouco explorado.

O historiador vive uma situação epistemológica e temporal peculiar. O seu presente é o futuro de muitos passados ou o seu passado é o futuro de muitos passados. É esta relação delicada com o tempo, que pode vir a ser uma armadilha, que abre caminho para a prática da retrodição.

O termo/conceito retrodição, cunhado no campo da física quântica, na década de 1920, vem sendo empregado na parapsicologia para se referir a “clarividência retroativa”, isto é, as previsões posteriores aos acontecimentos. Só muito recentemente o termo vem sendo usado pelos historiadores para se referir à predição do passado. Resumidamente, o historiador retroditor escreve sobre o passado já conhecendo o seu futuro. Vivendo no futuro do passado a sua visão é determinada justamente pelo fato de já conhecer o tempo sobre o qual escreve. Os acontecimentos são organizados, de maneira mais ou menos linear, levando em consideração o olhar retrospectivo do historiador. É, sem dúvida, um olhar privilegiado, mas que pode amarrar a narrativa histórica muito mais à perspectiva de quem o interpreta do que a dos sujeitos que viveram no passado. Os acontecimentos passados, na lógica da retrodição, não passam de peças de uma engrenagem causal que conduzem ao que já é conhecido por antecipação.


O historiado retroditor, que busca sempre no passado as causas do presente, tem verdadeira obsessão pelas origens. Identificada a suposta origem de determinado presente, por vezes chamada de “antecedentes históricos”, organiza-se os acontecimentos numa cadeia linear e evolutiva até o presente de onde se partiu. A história passa então a ter um sentido, uma direção, que geralmente tem a ver com as perspectivas políticas do historiador e com os debates nos quais ele está imerso.

A meu ver, a retrodição encerra a história num campo de previsibilidade, vista retrospectivamente, que a transforma num fluxo contínuo, único e inevitável. É o caso do conceito de “transição”, empregado para descrever os eventos que, num fluxo linear, marcam o fim de uma época e o início de outra. A ideia de “transição” sugere que tudo se encaminha e se destina, se preferirem, para a realização de certo fim histórico. O que se convencionar chamar de “transição do trabalho escravo para o trabalho livre” no Brasil é um bom exemplo. A “transição” teria ocorrido entre as décadas de 1850 e 1890. Neste período as relações escravistas de produção foram sendo progressiva e evolutivamente substituídas por formas de mão-de-obra livre, que culminariam na abolição completa da escravidão e da adoção regular e generalizada do trabalhador assalariado. Os acontecimentos registrados após a aprovação de Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, vista como o ponto de partida da lenta “transição”, são dispostos numa sequência lógica, quase que numa fórmula histórica, que conduziria ao desfecho final. A história, assim construída, é dotada de um sentido e de uma previsibilidade indubitáveis. Sidney Chalhoub, em “Visões da Liberdade”, embora com outras motivações e interesses, também chamou a atenção para a noção de “linearidade e de previsibilidade de sentido no movimento da história” que o conceito de “transição” carrega. Todavia, os sujeitos que viveram aqueles tempos, ditos de “transição”, sabiam para onde estavam indo? Sabiam para onde a lógica dos acontecimentos, se é que existe alguma, os estava conduzindo?

Nos “Fragmentos Póstumos” de Nietzsche, de 1884/5, encontramos uma crítica aos historiadores que talvez seja a primeira formulação sobre o tema da teleologia invertida:

 “(...) todos os órgãos de animais exerceram originariamente outras  funções diferentes daquelas que nos fizeram chamá-las de “órgãos” e em geral cada coisa teve uma gênese diferente daquela que a sua utilização final deixa supor. Mostrar o que é nada esclarece ainda sobre a sua gênese, e a história de uma gênese nada ensina a respeito dela, mas somente o que existe agora. Os historiadores de todo tipo se enganam quase todos neste ponto: pois eles partem do dado e olham para trás. Mas o dado é algo de novo e do qual não se pode absolutamente tirar conclusão: nenhum químico poderia predizer o que resultaria da síntese de dois elementos, se ele já não o soubesse.”

Vale lembrar que Johann Gustav Droysen, um pouco antes de Nietzsche, já alertara brevemente, segundo José D´Assunção Barros, para o problema da projeção retrospectiva. No seu manual de história intitulado “Historik”, criticou a linearidade e a busca ingênua de causas e efeitos. A passagem é breve, mas muito inspiradora para pensar o tema da retrodição:

“A pesquisa histórica não tem por ambição explicar, ou seja, não pretende deduzir do anterior o posterior; os fenômenos necessariamente como efeitos de evoluções e leis que os regem. Se a necessidade lógica do posterior residisse no anterior, então existiria, ao invés do mundo ético, um análogo de matéria eterna e da transformação dos materiais. Se a vida histórica fosse somente uma nova geração do que é sempre igual, então ela seria sem liberdade e sem responsabilidade, desprovida de conteúdo ético; ela seria apenas de natureza orgânica”.

Droysen não admitia que o presente pudesse ser visto como efeito do passado, ou o passado como causa do presente. Fosse assim, as ações humanas não passariam de reflexos automáticos obedientes aos ditames do mundo orgânico. Mas foi com Nietzsche que o tema da retrodição ganhou profundidade. As observações incisivas que fez da história como predição do passado fazem parte de uma crítica mais geral às pretensões da história cientifica e às filosofias da história do seu tempo, reunidas, sobretudo, na “Segunda Consideração Intempestiva”, de 1873. A crítica à busca pelas origens, expressa na sentença “partem do dado e olham para trás”, é a base do que chamamos hoje de história genealógica ou de descontinuidade histórica.



Examinemos, inspirados em Nietzsche, um tema conhecido. Tomemos como exemplo a “Independência do Brasil”, um clássico da historiografia brasileira e um caso exemplar de retrodição. A ruptura com Portugal em 1822 é vista, em geral, como o ápice de uma série de acontecimentos deflagrados pela vinda da família real portuguesa para o “Brasil”. O acontecimento é visto, segundo certa interpretação, como a origem da Independência. A partir deste marco, os acontecimentos posteriores, desencadeados pela presença da corte no Rio de Janeiro, são postos numa sequência narrativa, e numa relação de causa e efeito, que culminará na declaração da independência em setembro de 1822. Da maneira como os eventos são organizados e dispostos, a independência parecia ser o destino histórico anunciado em 1808. É como se disséssemos que as coisas foram desta maneira porque tinham que ser. Logo, a retrodição desautoriza outras possibilidades que pulsavam no passado e o transforma num via de mão única rumo ao futuro conhecido. Parafraseando Nietzsche, poderia um historiador predizer o que resultou dos eventos deflagrados em 1808 se já não soubesse o que se sucedeu em 1822? Os historiadores “partem do dado”, a ruptura com Portugal, “e olham para trás”, mais do que deveriam ou poderiam, em busca dos antecedentes, de uma suposta origem que tenha deflagrado um conjunto de acontecimentos que evoluiu até a separação em 1822.

Nós, sujeitos do século XXI, conhecemos os acontecimentos, as supostas conexões entre eles e, desde Caio Prado Júnior, que organizou uma narrativa desvelando o “processo histórico” da independência, estabelecemos uma relação indubitável entre a vinda da corte e a independência. É um exercício de adivinhação retrospectiva. Narrada e consagrada desta maneira, o encadeamento dos acontecimentos, chamado por alguns de processo, conduz a um desfecho inevitável.

As pessoas que viveram entre 1808 e 1822, no entanto, não tinham a clarividência que certa historiografia, mesmo sem querer, lhes imputa. Não tinham ideia de que o que estavam vivendo os conduziria à separação com Portugal. Estudos recentes, mais preocupados com a reconstituição dos acontecimentos, e das percepções dos sujeitos que viveram aqueles tempos, do que com um processo, visualizado do futuro, apontam que não existe relação direta entre a vinda da corte e a declaração de independência. Cecilia Helena de Salles destacou as enormes alterações ocorridas a parir de 1808, tanto no relacionamento das capitanias do Brasil com o Reino de Portugal quanto às ligações das diversas regiões coloniais com a cidade do Rio de Janeiro. Todavia, adverte a historiadora, “essa constatação não autoriza concluir que essas mudanças em si mesmas provocaram a Independência e a separação de Portugal”. A declaração de Independência responde mais imediatamente aos acontecimentos e as lutas sociais e políticas da década de 1820.


Como não cair na armadilha da retrodição? José D´Assunção Barros nos convida a refletir com Julio Aróstegui: “O historiador deve explicar as situações históricas como se não conhecesse o seu futuro”. Como? Indo às fontes e desconfiando dos enredos históricos que estabelecem conexões retrospectivas presumíveis, e arbitrárias, entre acontecimentos (“partem do dado e olham para trás”).

quarta-feira, 15 de março de 2017

DO SUPERMERCADO AO LAR: O LUGAR DA MULHER NO DISCURSO FOSSILIZADO DE MICHEL TEMER.

DO SUPERMERCADO AO LAR: O LUGAR DA MULHER NO DISCURSO FOSSILIZADO DE MICHEL TEMER.




            
Ler ouvindo Secretária, sucesso dos anos 70 na voz das Irmãs Freitas.


Há 10 meses, a revista Veja publicava uma matéria sobre Marcela Temer, às vésperas do afastamento de Dilma Rousseff, destacando os atributos da mulher que poderia vir a ser a primeira-dama do Brasil. No calvário político de Dilma, à época a mulher mais odiada do país, e insultada com os mais ofensivos palavrões, elevou-se um elogio à Marcela Temer, qualificando-a de “bela, recatada e do lar”. Era a projeção conservadora da mulher ideal, como um elogio antecipado do futuro governo Temer (ver o post sobre Marcela Temer aqui no blog http://cadaumnasualua.blogspot.com.br/2016/05/bela-recatada-e-do-lar-exaltacao-dos.html).

Mas faltava alguma coisa, um acabamento, um toque presidencial, para coroar a matéria da Veja. Pois bem, a cereja do bolo veio justamente no Dia Internacional da Mulher, no discurso do “excelentíssimo” esposo de Marcela. O presidente impopular, citado frequentemente nas delações da Lava Jato, quis homenagear as mulheres, num evento no Palácio do Planalto, e fez um discurso que poderia muito bem ter sido proferido por um presidente ou um ministro do começo do século XX, como Nilo Peçanha. Em 1918, Maria Rebelo Mendes fez a inscrição para o concurso de terceiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério das Relações Exteriores. O MRE a reprovou já na inscrição. O caso, com o apoio de Rui Barbosa, ganhou repercussão nacional e o chanceler Nilo Peçanha teve que voltar atrás e deferir a inscrição. Mesmo reconhecendo o direito constitucional de Maria Mendes de participar do concurso, a declaração de Peçanha reafirmou os valores tradicionais e sugeriu que o lugar da mulher era na condução dos assuntos domésticos:

“Não sei se as mulheres desempenhariam com proveito a diplomacia, vide tantos atributos de discrição e competência que são exigidos […], o que não posso é restringir ou negar o seu direito… Melhor seria, certamente, para o seu prestígio que continuassem a direção do lar, tais são os desenganos da vida pública, mas não há como recusar sua aspiração, desde que fiquem provadas suas aptidões”.

O discurso de Temer em homenagem ao Dia da Mulher, cem anos depois, não fica devendo nada à declaração de Nilo Peçanha. Num momento em que as mulheres saem às ruas lutando por mais direitos, justiça e contra a violência, Michel Temer toma a palavra e, na contramão, revela sua total ignorância sobre os sentidos do que estava acontecendo naquele dia no Brasil e no mundo. Em meio a um discurso domesticado sobre as conquistas femininas, em que se colocou como uma espécie de precursor da causa, por ter criado a primeira delegacia da mulher, em 1985, Temer minimizou o desequilíbrio entre os sexos no mercado de trabalho e disparou duas pérolas do conservadorismo machista:

“Tenho absoluta convicção, até por formação familiar e por estar ao lado da Marcela, do quanto a mulher faz pela casa, pelo lar. Do que faz pelos filhos. E, se a sociedade de alguma maneira vai bem e os filhos crescem, é porque tiveram uma adequada formação em suas casas e, seguramente, isso quem faz não é o homem, é a mulher […]”.

Não satisfeito em reduzir o papel das mulheres ao espaço do lar e ao cuidado dos filhos, Temer tentou “elogiar” a importante contribuição feminina na vida econômica do país:

“Na economia também a mulher tem grande participação. Ninguém mais é capaz de indicar os desajustes de preços no supermercado do que mulher”.

Num país de tantas economistas talentosas, o inoportuno presidente trata a participação das mulheres na economia como uma extensão das atividades domésticas. Do Supermercado ao Lar, eis o universo de circulação das mulheres no Brasil de Temer.

Não foi uma gafe, como sugeriu uma nota no jornal O Globo, ou um discurso que reflete a “realidade”, como tentou fazer crer Fátima Pelaes, Secretária de Política para as Mulheres do governo. Temer manifestou o que realmente pensa sobre o papel das mulheres na sociedade. Tentou corrigir depois da repercussão negativa, mas o estrago já estava feito. É um homem de valores ultrapassados, um exemplar fóssil do machismo tradicionalista do Brasil antigo, em total dessintonia com as demandas e conquistas femininas do Brasil contemporâneo.

A esposa ideal, “bela, recatada e do lar”, da matéria da Veja, está em perfeita simetria com a imagem da mulher que se depreende do discurso de Temer. Parece que foram feitos sob encomenda para o Brasil de Nilo Peçanha!