REFLEXÕES
SOBRE A “RESISTÊNCIA INDÍGENA” À DOMINAÇÃO ESPANHOLA NA AMÉRICA DO SUL.
As lutas e
a “resistência indígena” à colonização espanhola são temas centrais da
historiografia latino-americana. Todavia, parecemos desconhecer tanto os
sentidos das lutas travadas no passado colonial quanto os deste início de século. A
idealização das culturas indígenas e as projeções retrospectivas (que projetam,
segundo Anna Roosevelt, o presente etnográfico para os tempos da conquista) talvez
sejam ainda os maiores obstáculos à compreensão do que comumente chamamos de “resistência
indígena” (As reflexões são extensivas à “resistência indígena” na América
Portuguesa).
A
contundência da conquista (séculos XVI ao XVIII) e os impactos sobre os povos
americanos despertaram o interesse de pesquisadores do mundo todo, dedicados ao
estudo das diferentes formas de resistência que, do México ao Rio da Prata, os
indígenas ergueram contra a dominação espanhola. As abordagens concentram-se no
México e no Peru, regiões de grande densidade demográfica convertidas em
centros administrativos do poder colonial. Nestas regiões explodiram inúmeros e
violentos conflitos contra conquistadores e colonizadores, que resultaram em
quedas populacionais dramáticas. Ao mesmo tempo, produziu-se e conservou-se uma abundância
de relatos sobre estes acontecimentos. As regiões periféricas, como o Rio da
Prata, embora bastante estudadas, receberam bem menos atenção.
A
autodenominada “revolução bolivariana” apresenta-se como herdeira das lutas
indígenas contra o colonialismo. Instrumentaliza a “resistência cultural
indígena” como antecedente legítimo da ruptura com “la matriz ideológica de la
dominación ocidental” e com o capitalismo, que converte “todo en mercancía”. As
referências pré-colombianas, devidamente selecionadas, e a suposta recusa
indígena do modelo de civilização ocidental, são as âncoras históricas desses
movimentos de ruptura com o colonialismo e com as heranças europeias. A
“resistência indígena”, anacrônica, depurada, genérica e descontextualizada,
vira estandarte desses movimentos. As rebeliões indígenas, transformadas num
patrimônio metafísico das Américas, espécie de entidade transhistórica que
flutua sobre as “consciências críticas” e as “forças de libertação”, são
apresentadas como um ideal de defesa de uma cultura ameaçada e de luta contra
todas as formas de dominação e exploração.
Mas a noção
de resistência aplica-se somente aos eventos de oposição à ordem colonial?
Quando em 1609 o cacique Arapizandú procurou o governador Hernandarias para
selar um acordo e pedir que enviassem missionários às suas terras com o propósito
de predicar o evangelho e fundar reduções, com a condição de livrar seu povo da
encomienda, ele estava colaborando,
adaptando-se as novas circunstâncias, ou resistindo à “dominação espanhola”
negociando com os espanhóis? (Arapizandú era cacique dos índios guarani,
chamados na época de Paranáes, e estendia
os seus domínios na região situada ao sul do Tebicuary e Sudoeste de Assunção).
O cacique buscava uma forma de inserção na sociedade colonial envolvente, que
não fosse a encomienda, manobrando
nas fendas que se criavam entre as forças coloniais conflitivas: os jesuítas, a
Coroa e os encomenderos. Nestes
casos, adaptação e colaboração podem ser vistos como formas de resistência? Ou
a categoria “resistência” diz respeito apenas às reações de contestação,
oposição e conflito contra uma determinada ordem, como aquela que o cacique Ñezú
moveu contra os três missionários da Companhia de Jesus, matando-os e
declarando guerra ao cristianismo? (Ñezú era um poderoso cacique e feiticeiro
que vivia na região do Pirapó, no Yjuí, atual Rio Grande do Sul. Na rebelião
que moveu contra os missionários jesuítas mandou matar o padre Roque González e
seus dois companheiros). A origem latina de resitência – resistentia – comporta diversos significados, entre os quais:
oposição, reação, defesa e obstáculo. A lógica do conflito associada à palavra
resistência não esgota a interpretação das estratégias indígenas frente ao
colonialismo. Enfatizar um dos sentidos de resistencia
é uma eleição do historiador. Os acordos contra o trabalho compulsório e pela
manutenção de um espaço indígena livre da interferência espanhola – mesmo que
para isso fosse necessário abandonar o antigo modo de vida – são também formas
de resistência, mas defensivas e negociadas, que visam a adaptação, não a
ruptura. Num estudo sobre a “resistência negra” no Brasil escravista, Eduardo
Silva sugeriu que na “escravidão nunca se vivia uma paz verdadeira, o cotidiano
significava uma espécie de guerra não convencional.” Nesta guerra, na qual
escravos e senhores buscavam ganhar “posições de força”, a resistência à
escravidão não se dava somente pela via do conflito, mas também por ela. “Ao
lado da sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de
barganhas quanto de conflitos.” Entre Zumbi, que encarna a contestação violenta
à escravidão, e Pai João, que representa a submissão conformada,
desenrolavam-se inúmeras formas de resistência que podiam ir das negociações
por um pedaço de terra para o cultivo dos escravos, a chamada “brecha
camponesa”, às fugas e revoltas. A negociação, mostra Eduardo Silva, era uma
posição intermediária entre a aceitação da escravidão e a ruptura pelo
conflito. Era por meio de negociações com os senhores que os escravos
inventavam o seu viver num mundo adverso que lhes reservava a condição de meros
objetos de trabalho (Ver: SILVA, Eduardo e REIS, João José. Negociação e
conflito: a resistência negra do Brasil escravista. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999). Com a licença do autor, diria que entre Ñezú, que se rebelou
contra os missionários, e o índio que aceitou sem condições a evangelização,
abre-se um leque de possibilidades de resistências. Entre a contestação
violenta e a pronta adesão havia uma zona intermediária que oscilava entre a
aceitação e a repulsa. E estas posições podiam mudar no decorrer do “jogo”. O pajé
rebelde de hoje tornava-se o mais devoto e prestativo dos fieis amanhã, e o
cacique batizado que confiara seu povo ao missionário poderia rebelar-se ao
menor sinal de insatisfação (como ocorreu com Ñezú).
Além da
proposição, um chamado aos historiadores. A reavaliação das formas de
resistência passa pela reconstrução detalhada dos cenários, ou “processos
históricos”, nos quais estas populações interagiam com os colonizadores. A
contribuição mais significativa que nós historiadores podemos oferecer ao
estudo das culturas indígenas é exatamente esta reconstrução minuciosa das
relações indígenas/colonizadores baseada numa leitura atenta e menos dualista
da documentação colonial.
obrigado pelo conteudo cara, me ajudou muito em uma pesquisa
ResponderExcluirQue bom, cara.
ResponderExcluir;-; ajudou n ;-; pão ;-; ;-; ;-; ;-; ;-; ;-; ;-; ;-; ;-; ;-; ;-;
ResponderExcluirVocê tem a bibliografia utilizada?
ResponderExcluirOi Victor.
ResponderExcluirO que interessa exatamente?
Além do livro negociação e conflito, citado no texto, te sugeriria:
- MONTEIRO, John Manuel. Armas e armadilhas: história e resistência dos índios. In:NOVAES, Adauto(organizador). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. pp. 241-242.
-Eliane Cristina Deckmann Fleck, “Estados de paz e estados de guerra: negociação e conflito na América
portuguesa (séculos XVI e XVII)”, Revista Projeto História (vol. 31, 2005), 314.
- Steve Stern, Resistance, rebellion and consciousness in the Andean peasant world: 18th to 20th Centuries
(Madison: University of Wisconsin Press, 1987).
E procure ler sobre resistência adaptativa.
Se tu precisares do que eu escrevi, podes usar a minha tese.
Excluir"O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González nas tierras de Ñezú".
Paulo Rogério Melo de Oliveira.