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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A AFAMADA PROSTITUTA & O SÁBIO ADIVINHO: A TRANSEXUALIDADE MÍTICA DE TIRÉSIAS.


A AFAMADA PROSTITUTA & O SÁBIO ADIVINHO: A TRANSEXUALIDADE MÍTICA DE TIRÉSIAS.

“[...} ele deveria saber como era o amor, de qualquer ponto de vista”. (Ovídio).


“Ser um homem feminino
                                                                                               Não fere o meu lado masculino.
  Se Deus é menina e menino
                                                                                    Sou    Masculino e Feminino.” (Pepeu Gomes).





Inspirado na mitologia grega, o post explora o tema das identidades cambiantes e do trânsito entre os gêneros. Ou, como diria Ovídio, “sobre corpos que assumem diferentes formas”. Da Grécia aos nossos dias, embora com diferentes sentidos, pessoas viveram e vivem a sexualidade para além das fronteiras normativas estabelecidas pelas identidades binárias masculina e feminina. No amplo leque que se abre entre um polo e outro, escolhemos o tema da transexualidade.

Poucos seres humanos tiveram o privilégio de viver (no plano mítico) na pele de um homem e de uma mulher e de conhecer, por decorrência da dupla experiência, o prazer e a linguagem do corpo de ambos os sexos e gêneros (tanto no sentido biológico quanto no cultural). A mitologia grega nos oferece dois exemplos: o caso irreversível do cretense Siproites e o caso emblemático do tebano Tirésias, que recobrou a masculinidade. Ambos experimentaram a condição feminina após receberem punição divina. O exemplo de Tirésias, pelas repercussões e pelo lugar que o personagem ocupa em diversas narrativas míticas, merece mais atenção.

Tirésias, o adivinho sábio e cego de Tebas, que viveu sete gerações humanas, foi um personagem que, vivo ou morto, desempenhou papéis relevantes em alguns mitos e em algumas tragédias gregas. No mito de Narciso, Tirésias foi procurado por Liríope e a alertou que seu belo filho viveria muito, desde que não visse a própria imagem. Na Odisseia, no canto 11, Tirésias aparece para Ulisses no Hades, o reino dos mortos, e o alerta dos perigos que estavam por vir, de como deveria agir na ilha de Trinácia, onde estavam os bois sagrados de Hélios, e que em Ítaca enfrentaria a ganância dos homens que devoravam seus bens e perseguiam Penélope, sua esposa. Na peça Édipo Rei, de Sófocles, depois de ser pressionado por Édipo, revelou que o assassino de Laio era o próprio Édipo. Embora não desempenhasse um papel central em nenhuma das narrativas, suas intervenções sempre foram reveladoras e divisoras de águas nas tramas. A busca de Édipo pelo assassino de Laio ganha contornos dramáticos depois da revelação de Tirésias (Édipo, sem saber, começa a buscar a si próprio).

O mito de Tirésias chegou até nós em três versões distintas, mas que conservam elementos comuns. Numa das versões, encontrada nas narrativas de Ferécides, Calímaco e Apolodoro, Tirésias foi cegado por Atená depois de ter visto a nudez da deusa. Numa segunda versão, que remonta a Hesíodo, e se manteve, com ligeiras variações, nas narrativas de Flegón de Tralla, Higino e Ovídio, a cegueira foi um castigo atribuído a Hera (Juno, para os romanos) depois de Tirésias ter golpeado duas serpentes em cópula. A terceira versão, menos conhecida, é uma combinação das duas anteriores.

Sigo, à minha maneira, a versão atribuída à Hesíodo. Tirésias, na juventude, na fase iniciática pela qual todos os jovens da nobreza passavam, escalou o monte Citerão, nas proximidades de Tebas. Ao avistar duas serpentes em cópula, as separou e matou a serpente fêmea. Como castigo pela desastrosa intervenção, o jovem foi transformado em mulher. Sete anos depois, no mesmo monte, deparou-se com a mesma cena. Matou a serpente macho e retomou a masculinidade. As serpentes, na mitologia grega, remetem ao mundo ctônico, aos segredos primordiais da terra (Gaia), anteriores à vida humana e a geração de deuses do Olimpo, e estavam associadas à adivinhação e à dupla sexualidade (Brisson).

Durante o tempo em que foi mulher, Tirésias teria sido uma esposa exemplar e/ou uma prostituta famosa. Do lar ao lupanar, percorreu os extremos do universo feminino. Para coroar sua vida como mulher, teve uma filha chamada Manto.

Um dia, no Olimpo (de acordo com a matriz hesiódica), Zeus e Hera discutiam sobre o amor e sobreveio uma dúvida: quem teria mais prazer no ato sexual, o homem ou a mulher? Para resolver a contenda chamaram o homem que vivera a experiência dos dois sexos. “Ele deveria saber como era o amor, de qualquer ponto de vista” (Ovídio). Tirésias foi simples e direto: se o prazer sexual pudesse em dividido em dez partes, a mulher ficaria com nove e o homem com uma. Furiosa com o que, no seu entendimento, fora uma resposta patriarcal, Hera o puniu com cegueira. Para a deusa, Tirésias havia revelado o segredo feminino e atestado a superioridade, a eficiência e a potência masculina, de Zeus e de todos os homens, por dar nove décimos de prazer à mulher. Foi essa a intenção de Tirésias? Não sabemos. A resposta foi ambígua. Mas ao que tudo indica, Zeus e Hera a entenderam como um elogio à potência masculina.

Para contornar a situação e compensar a cegueira, Zeus, prestigiado pela resposta, concedeu-lhe o dom da adivinhação (mantéia). A cegueira e a capacidade de predizer o futuro eram, portanto, decorrentes da punição e da reparação divinas.  O sistema de punições e reparações, inerentes ao plano mítico, e amparado por um conceito transcendente de justiça, é constitutivo do jogo de poder e hierarquias entre seres humanos e deuses, que cimenta a ordem do universo. As divindades castigam, mas também ajudam, punem, mas sabem recompensar. Tirésias experimentou os dois gumes da navalha divina.

A sabedoria atribuída ao adivinho, e reconhecida pelo casal principal do Olimpo, era decorrente da cegueira, que lhe permitia a visão das coisas invisíveis, da longa vida transcorrida na terra e, certamente, do trânsito entre os dois gêneros. Tirésias experimentou os dois mundos. Conheceu as dores e as delícias dos universos masculino e feminino e viveu centenas de anos para tirar e compartilhar as lições desta experiência extraordinária.

Embora Tirésias tenha vivido uma experiência transexual, não podemos confundi-la com o que conhecemos hoje por transexualidade. São “coisas” muito diferentes. Mas é exatamente por isso, pela diferença que o singulariza, que o mito de Tirésias pode nos oferecer um contraponto crítico para pensarmos o modo como lidamos hoje com a transexualidade. À maneira de Foucault, a experiência de Tirésias nos possibilita uma “crítica do presente”. O adivinho tebano se metamorfoseou (Ovídio) em mulher por decorrência de um castigo divino, e, posteriormente, retomou a masculinidade. Mas é bom lembrar que o castigo não é um rebaixamento nem uma condenação da condição de trans. É pedagógico e tem a ver com a natureza do ato praticado por Tirésias (separar duas serpentes em cópula e matar a fêmea). Além disso, a vivência dos dois gêneros lhe trouxe sabedoria. A transexualidade, da forma como a entendemos hoje, é uma das múltiplas identidades de gênero e implica numa mudança voluntária de sexo. As pessoas assim (in)definidas não se identificam com o sexo de nascimento, se sentem presas a um corpo e a um aparelho genital que não corresponde à imagem que elas têm de si próprias.

Diferentemente dos gregos, hoje, lamentavelmente, para uma parcela significativa das sociedades contemporâneas, a transexualidade é alvo de severos preconceitos, de apedrejamento e sinal de degeneração e pecado. É por essas e outras que se recorre frequentemente aos gregos antigos, como fez Foucault, para encontrar entre eles, por conta da diferença radical, formas de crítica e problematização das nossas experiências. Não que os gregos tenham sido melhores, iluminados e possam nos dar lições. Não é isso. Os mitos e as práticas culturais gregas, bastante distintas das nossas, nos permitem olharmos para nós e questionarmos nossos valores, nossos arranjos sociais e nossos preconceitos. O caso de Tirésias parece-me extraordinário para isso. A reputação e o respeito que ele conquistou entre os gregos - mortais e imortais -, são sugestivos do valor e da beleza que o trânsito e a vivência de ambos os gêneros representavam. A transexualidade, na sua expressão mítica, foi um privilégio que trouxe equilíbrio, sabedoria e grandeza para quem o desfrutou e pode, ao longo de uma vida longa, compartilhar com os seus contemporâneos.

O mito de Tirésias, embora de difícil apreensão, é particularmente interessante para pensarmos não apenas as diferenças entre os sexos e os gêneros, no que diz respeito ao prazer e ao desejo. A curiosidade e a reflexão sobre essas diferenças já estavam presentes entre os gregos, que a exploraram, há mais de três mil anos, de maneira poética e sem julgamentos morais. Tirésias não foi diminuído nem foi alvo de chacotas por ter sido mulher. Foi homem, foi mulher e foi respeitado pelos homens e mulheres de sua época.

Tirésias foi múltiplo. Foi uma figura de mediação. Driblou a morte e confundiu identidades estanques. Embaralhou as fronteiras do sexo, do gênero, da visão, da vida e da morte, do conhecimento e do tempo (pois via o que estava à frente). Foi mulher, mãe, pai, foi puta famosa, esposa exemplar, foi homem e adivinho. Foi sábio! Foi humano, mortal, mas as irrepreensíveis previsões elevaram seu status à uma condição próxima da divindade. Dava conselhos certeiros (Narciso viverá muito se não ver a si próprio), decifrava enigmas medonhos e sabia o que o rei que tudo sabia (Édipo) não sabia (sabia que o rei nada sabia).

As diversas identidades que compunham esta figura complexa e limiar, plural, provocante e desafiadora, nos espreitam à distância, à maneira de uma esfinge impassível, a devorar nossas certezas identitárias e a questionar nossos preconceitos.



A experiência extraordinária de Tirésias atravessou os tempos e encontrou espaços para sobreviver e dialogar com os novos ambientes históricos nos nichos de liberdade criativa e resistência política oferecidos pela literatura, pelo teatro e pelo cinema. O mito Tirésias aparece, de diferentes maneiras, na “Divina Comédia”, de Dante, na peça “As tetas de Tirésias”, de Apollinaire, e no romance “Orlando”, de Virgínia Wolf. Em 2003, o diretor francês Bertrand Bonello explorou o mito no filme “Tirésias”, que narra a vida de um transexual brasileiro que se prostitui nos subúrbios de Paris. No Brasil, Zé Celso interpretou recentemente (2016) o adivinho tebano numa das tantas montagens do Teatro Oficina da peça “As Bacantes”, de Eurípedes.




“Eu, Tirésias, cego embora, palpitando entre duas vidas,
Um ancião de enrugados peitos femininos, posso ver
Na hora violeta, a hora crepuscular que se empenha”. (T.S. Eliot. 1918).





Textos de referência.
BRANDÃO, Junito. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1986.
BRISSON, Luc. Le mythe de Tiresias: essai d'analyse structurale. 1976.
BUIS, Emiliano. La ceguera de los justos. Trasgresión, condena y compensación em la mythopoesis tiresiana. 2003.
HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de janeiro: Ediouro, 2001.
OVÍDIO, Metamorfoses. Tradução de vera Lúcia Magyar. São Paulo: Madras, 2003.
ROMERA, Manuel. La transexualidad mitica de Tirésias. 2013.
SÓFOCLES. Édipo Rei. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.


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