A AFAMADA PROSTITUTA & O SÁBIO ADIVINHO: A
TRANSEXUALIDADE MÍTICA DE TIRÉSIAS.
“[...} ele deveria saber como era o amor, de qualquer ponto
de vista”. (Ovídio).
“Ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino.
Se Deus é menina e menino
Não fere o meu lado masculino.
Se Deus é menina e menino
Sou Masculino e Feminino.” (Pepeu Gomes).
Inspirado
na mitologia grega, o post explora o
tema das identidades cambiantes e do trânsito entre os gêneros. Ou, como diria
Ovídio, “sobre corpos que assumem diferentes formas”. Da Grécia aos nossos
dias, embora com diferentes sentidos, pessoas viveram e vivem a sexualidade
para além das fronteiras normativas estabelecidas pelas identidades binárias
masculina e feminina. No amplo leque que se abre entre um polo e outro, escolhemos
o tema da transexualidade.
Poucos
seres humanos tiveram o privilégio de viver (no plano mítico) na pele de um
homem e de uma mulher e de conhecer, por decorrência da dupla experiência, o
prazer e a linguagem do corpo de ambos os sexos e gêneros (tanto no sentido
biológico quanto no cultural). A mitologia grega nos oferece dois exemplos: o caso
irreversível do cretense Siproites e o caso emblemático do tebano Tirésias, que
recobrou a masculinidade. Ambos experimentaram a condição feminina após
receberem punição divina. O exemplo de Tirésias, pelas repercussões e pelo
lugar que o personagem ocupa em diversas narrativas míticas, merece mais
atenção.
Tirésias,
o adivinho sábio e cego de Tebas, que viveu sete gerações humanas, foi um
personagem que, vivo ou morto, desempenhou papéis relevantes em alguns mitos e em
algumas tragédias gregas. No mito de Narciso, Tirésias foi procurado por
Liríope e a alertou que seu belo filho viveria muito, desde que não visse a
própria imagem. Na Odisseia, no canto 11, Tirésias aparece para Ulisses no
Hades, o reino dos mortos, e o alerta dos perigos que estavam por vir, de como deveria
agir na ilha de Trinácia, onde estavam os bois sagrados de Hélios, e que em
Ítaca enfrentaria a ganância dos homens que devoravam seus bens e perseguiam Penélope,
sua esposa. Na peça Édipo Rei, de Sófocles, depois de ser pressionado por
Édipo, revelou que o assassino de Laio era o próprio Édipo. Embora não
desempenhasse um papel central em nenhuma das narrativas, suas intervenções
sempre foram reveladoras e divisoras de águas nas tramas. A busca de Édipo pelo
assassino de Laio ganha contornos dramáticos depois da revelação de Tirésias
(Édipo, sem saber, começa a buscar a si próprio).
O
mito de Tirésias chegou até nós em três versões distintas, mas que conservam
elementos comuns. Numa das versões, encontrada nas narrativas de Ferécides, Calímaco
e Apolodoro, Tirésias foi cegado por Atená depois de ter visto a nudez da
deusa. Numa segunda versão, que remonta a Hesíodo, e se manteve, com ligeiras
variações, nas narrativas de Flegón de Tralla, Higino e Ovídio, a cegueira foi
um castigo atribuído a Hera (Juno, para os romanos) depois de Tirésias ter
golpeado duas serpentes em cópula. A terceira versão, menos conhecida, é uma
combinação das duas anteriores.
Sigo,
à minha maneira, a versão atribuída à Hesíodo. Tirésias, na juventude, na fase
iniciática pela qual todos os jovens da nobreza passavam, escalou o monte Citerão,
nas proximidades de Tebas. Ao avistar duas serpentes em cópula, as separou e
matou a serpente fêmea. Como castigo pela desastrosa intervenção, o jovem foi
transformado em mulher. Sete anos depois, no mesmo monte, deparou-se com a
mesma cena. Matou a serpente macho e retomou a masculinidade. As serpentes, na
mitologia grega, remetem ao mundo ctônico, aos segredos primordiais da terra
(Gaia), anteriores à vida humana e a geração de deuses do Olimpo, e estavam
associadas à adivinhação e à dupla sexualidade (Brisson).
Durante
o tempo em que foi mulher, Tirésias teria sido uma esposa exemplar e/ou uma
prostituta famosa. Do lar ao lupanar, percorreu os extremos do universo
feminino. Para coroar sua vida como mulher, teve uma filha chamada Manto.
Um
dia, no Olimpo (de acordo com a matriz hesiódica), Zeus e Hera discutiam sobre
o amor e sobreveio uma dúvida: quem teria mais prazer no ato sexual, o homem ou
a mulher? Para resolver a contenda chamaram o homem que vivera a experiência
dos dois sexos. “Ele deveria saber como era o amor, de qualquer ponto de vista”
(Ovídio). Tirésias foi simples e direto: se o prazer sexual pudesse em dividido
em dez partes, a mulher ficaria com nove e o homem com uma. Furiosa com o que,
no seu entendimento, fora uma resposta patriarcal, Hera o puniu com cegueira.
Para a deusa, Tirésias havia revelado o segredo feminino e atestado a
superioridade, a eficiência e a potência masculina, de Zeus e de todos os
homens, por dar nove décimos de prazer à mulher. Foi essa a intenção de
Tirésias? Não sabemos. A resposta foi ambígua. Mas ao que tudo indica, Zeus e Hera
a entenderam como um elogio à potência masculina.
Para
contornar a situação e compensar a cegueira, Zeus, prestigiado pela resposta, concedeu-lhe
o dom da adivinhação (mantéia). A
cegueira e a capacidade de predizer o futuro eram, portanto, decorrentes da punição
e da reparação divinas. O sistema de punições
e reparações, inerentes ao plano mítico, e amparado por um conceito
transcendente de justiça, é constitutivo do jogo de poder e hierarquias entre
seres humanos e deuses, que cimenta a ordem do universo. As divindades
castigam, mas também ajudam, punem, mas sabem recompensar. Tirésias
experimentou os dois gumes da navalha divina.
A
sabedoria atribuída ao adivinho, e reconhecida pelo casal principal do Olimpo, era
decorrente da cegueira, que lhe permitia a visão das coisas invisíveis, da
longa vida transcorrida na terra e, certamente, do trânsito entre os dois gêneros.
Tirésias experimentou os dois mundos. Conheceu as dores e as delícias dos
universos masculino e feminino e viveu centenas de anos para tirar e compartilhar
as lições desta experiência extraordinária.
Embora
Tirésias tenha vivido uma experiência transexual, não podemos confundi-la com o
que conhecemos hoje por transexualidade. São “coisas” muito diferentes. Mas é
exatamente por isso, pela diferença que o singulariza, que o mito de Tirésias
pode nos oferecer um contraponto crítico para pensarmos o modo como lidamos hoje
com a transexualidade. À maneira de Foucault, a experiência de Tirésias nos
possibilita uma “crítica do presente”. O adivinho tebano se metamorfoseou
(Ovídio) em mulher por decorrência de um castigo divino, e, posteriormente,
retomou a masculinidade. Mas é bom lembrar que o castigo não é um rebaixamento
nem uma condenação da condição de trans. É pedagógico e tem a ver com a
natureza do ato praticado por Tirésias (separar duas serpentes em cópula e
matar a fêmea). Além disso, a vivência dos dois gêneros lhe trouxe sabedoria. A
transexualidade, da forma como a entendemos hoje, é uma das múltiplas
identidades de gênero e implica numa mudança voluntária de sexo. As pessoas assim
(in)definidas não se identificam com o sexo de nascimento, se sentem presas a
um corpo e a um aparelho genital que não corresponde à imagem que elas têm de
si próprias.
Diferentemente
dos gregos, hoje, lamentavelmente, para uma parcela significativa das sociedades
contemporâneas, a transexualidade é alvo de severos preconceitos, de
apedrejamento e sinal de degeneração e pecado. É por essas e outras que se
recorre frequentemente aos gregos antigos, como fez Foucault, para encontrar entre
eles, por conta da diferença radical, formas de crítica e problematização das
nossas experiências. Não que os gregos tenham sido melhores, iluminados e
possam nos dar lições. Não é isso. Os mitos e as práticas culturais gregas,
bastante distintas das nossas, nos permitem olharmos para nós e questionarmos
nossos valores, nossos arranjos sociais e nossos preconceitos. O caso de
Tirésias parece-me extraordinário para isso. A reputação e o respeito que ele
conquistou entre os gregos - mortais e imortais -, são sugestivos do valor e da beleza que o trânsito e a vivência de
ambos os gêneros representavam. A transexualidade, na sua expressão mítica, foi
um privilégio que trouxe equilíbrio, sabedoria e grandeza para quem o desfrutou
e pode, ao longo de uma vida longa, compartilhar com os seus contemporâneos.
O
mito de Tirésias, embora de difícil apreensão, é particularmente interessante
para pensarmos não apenas as diferenças entre os sexos e os gêneros, no que diz
respeito ao prazer e ao desejo. A curiosidade e a reflexão sobre essas
diferenças já estavam presentes entre os gregos, que a exploraram, há mais de três
mil anos, de maneira poética e sem julgamentos morais. Tirésias não foi
diminuído nem foi alvo de chacotas por ter sido mulher. Foi homem, foi mulher e
foi respeitado pelos homens e mulheres de sua época.
Tirésias
foi múltiplo. Foi uma figura de mediação. Driblou a morte e confundiu
identidades estanques. Embaralhou as fronteiras do sexo, do gênero, da visão, da
vida e da morte, do conhecimento e do tempo (pois via o que estava à frente). Foi
mulher, mãe, pai, foi puta famosa, esposa exemplar, foi homem e adivinho. Foi
sábio! Foi humano, mortal, mas as irrepreensíveis previsões elevaram seu status à uma condição próxima da divindade.
Dava conselhos certeiros (Narciso viverá muito se não ver a si próprio),
decifrava enigmas medonhos e sabia o que o rei que tudo sabia (Édipo) não sabia
(sabia que o rei nada sabia).
As
diversas identidades que compunham esta figura complexa e limiar, plural,
provocante e desafiadora, nos espreitam à distância, à maneira de uma esfinge impassível,
a devorar nossas certezas identitárias e a questionar nossos preconceitos.
A
experiência extraordinária de Tirésias atravessou os tempos e encontrou espaços
para sobreviver e dialogar com os novos ambientes históricos nos nichos de
liberdade criativa e resistência política oferecidos pela literatura, pelo
teatro e pelo cinema. O mito Tirésias aparece, de diferentes maneiras, na “Divina
Comédia”, de Dante, na peça “As tetas de Tirésias”, de Apollinaire, e no
romance “Orlando”, de Virgínia Wolf. Em 2003, o diretor francês Bertrand
Bonello explorou o mito no filme “Tirésias”, que narra a vida de um transexual
brasileiro que se prostitui nos subúrbios de Paris. No Brasil, Zé Celso
interpretou recentemente (2016) o adivinho tebano numa das tantas montagens do Teatro
Oficina da peça “As Bacantes”, de Eurípedes.
“Eu, Tirésias, cego embora, palpitando
entre duas vidas,
Um ancião de enrugados peitos femininos,
posso ver
Na hora violeta, a hora crepuscular que se
empenha”. (T.S. Eliot. 1918).
Textos de referência.
BRANDÃO, Junito.
Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1986.
BRISSON, Luc. Le mythe de Tiresias: essai d'analyse structurale.
1976.
BUIS, Emiliano. La ceguera de los justos. Trasgresión, condena y
compensación em la mythopoesis
tiresiana. 2003.
HOMERO. Odisseia. Tradução
de Carlos Alberto Nunes. Rio de janeiro: Ediouro, 2001.
OVÍDIO,
Metamorfoses. Tradução de vera Lúcia Magyar. São Paulo: Madras, 2003.
ROMERA, Manuel. La transexualidad mitica de Tirésias. 2013.
SÓFOCLES. Édipo
Rei. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
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