“INVASION OF THE BODY SNATCHERS”: UMA METÁFORA DO ANTICOMUNISMO, O SIMPLES PRAZER
ESTÉTICO DO DESASTRE OU NEM UMA COISA NEM OUTRA?
“O mistério do mundo está no
visível, não no invisível”.
(Oscar Wilde).
“(...) ocorrer em todos os níveis
do filme, como na sua relação com a sociedade. Seus pontos de ajustamento, os das concordâncias e
discordâncias com a ideologia, ajudam a descobrir o latente por trás do
aparente, o não-visível através do visível”.
(Marc Ferro).
“People are pods. Many of my
associates are certainly pods. They have no feelings. They exist, breathe,
sleep.”
(Don Sieguel).
Escrevendo
sobre “Guerra Mundial Z” (GMZ) me perguntava sobre os limites da interpretação.
Explico-me. Interpretar um filme é, em parte, acrescentar algo nosso,
estabelecer relações e conexões que nem sempre estavam nas preocupações do
diretor, do roteirista, dos produtores, etc. Uma xícara sobre uma mesa, num
filme de Kieslowski, poder ser simplesmente uma xícara sobre uma mesa. Querer
ver na xícara algo que ela definitivamente não representa é adentrar nos
domínios da hiperinterpretação. É, como diz o ditado, querer “achar pelo em
ovo”. Sendo mais claro. Ao ler “GMZ” como uma alegoria política que exalta o
papel global das organizações internacionais eu não estaria querendo ver no
filme algo que não está lá? Será que GMZ não é apenas entretenimento ou a inteligente
exploração comercial da “imaginação do desastre”? A resposta não é tão simples.
Mas diria, antes de qualquer coisa, que um filme depois de lançado se desgarra
dos seus realizadores, se emancipa, ganha o mundo e fica sujeito a diversas
interpretações. Até aí tudo bem. Os filmes estão aí para serem vistos, lidos,
interpretados. A interpretação é livre e inúmeros são os ângulos de observação.
GMZ poderia ser lido por um historiador, por um internacionalista ou por um
psicólogo, e teríamos abordagens distintas e plausíveis. Mas às vezes as
interpretações vão longe demais, projetam-se conceitos e debates políticos tão estranhos
que transformam o filme naquilo que ele não é.
Revi
nesta semana o clássico sci-fi de 1956
“Invasion of the body Snatchers”, de Don Sieguel, que chegou ao Brasil como
“Vampiros de Almas”. Estavam lá a fotografia impecável de Ellsworth Fredericks e
a montagem vertiginosa, que dita o ritmo da paranoia que aos poucos vai tomando
conta da pequena cidade de Santa Mira, na Califórnia. Alienígenas que nascem em
vagens (pods) invadem silenciosamente
a cidade e se apossam dos corpos dos moradores enquanto dormem. Aos poucos vão substituindo
os seres humanos por cópias fieis, mas destituídas de sentimentos e emoções. Dr.
Miles Bennell, um médico que retorna à cidade depois de alguns meses fora, é
surpreendido por uma onda de casos semelhantes. Diversos moradores relatam que
seus parentes não são mais os mesmos, estão estranhos, frios e distantes. Um
clima de histeria vai tomando conta dos moradores e a cidadezinha, antes
acolhedora, familiar e segura, torna-se um lugar estranho e assustador. Dr. Miles,
lutando contra o sono alienante e a desumanização, corre para alertar o mundo
da invasão: "eles estão
invadindo, estão chegando, e vocês serão os próximos!"
O
horror, em “Invasion”, está no familiar que se tornou assustador. Nada de
monstros horrendos e bolhas gosmentas que se arrastam pelas ruas. Como bem
observou Kim Newman, “o filme vê o horror num tio cortando a relva, numa banca
de vegetais abandonada à beira da estrada, num bar quase vazio, numa mãe a pôr
uma planta no parque do bebê, ou numa multidão reunida às 7:45 de uma manhã de
sábado”. O horror está em não saber quem é a pessoa que vive do teu lado. É
perturbador! A desconfiança é generalizada. O sono tornou-se ameaçador, pois desarma
e vulnerabiliza os seres humanos. O pior dos pesadelos é não poder dormir
(“Nigthmare on Elmstreet” retomou, em grande estilo, o tema do medo de dormir).
Um
filme como esse, num momento conturbado como foi a década de 1950, daria margem
para especulações e inúmeras interpretações que tentariam relacioná-lo às
questões políticas e sociais da época. As vagens alienígenas foram vistas por
alguns críticos como grave ameaça a “sociedade patriarcal hegemônica do homem
branco”. As lutas étnicas, feministas e os movimentos sociais, representados
pelos alienígenas, que, de uma maneira geral reivindicavam direitos iguais, ameaçavam
o domínio da América branca e masculina. Para outros os pods, como critica da política nuclear dos Estados Unidos,
representariam o medo dos efeitos da radiação, geradora de doenças e
deformações físicas. A onda de filmes com temas catastróficos nos anos 50 foi
relacionada à corrida atômica e a exploração do medo. A ficção científica
expressaria nestes filmes o medo inconsciente da catástrofe atômica. Mas a
interpretação mais recorrente é a que sustenta que “Invasion” é um filme anticomunista.
De acordo com esta linha de interpretação, o filme faz, por meio de uma
alegoria extraterrestre, uma apologia do macarthismo. A invasão alienígena
subverteria a ordem e submeteria a América a uma forma de vida coletiva, estranha
ao modo de vida americano representado pela pacata Santa Mirna. Os alienígenas
se apossam dos corpos das pessoas e as transformam em
criaturas sem emoção, embora mantenham a mesma aparência. Os seres humanos
duplicados perdem a individualidade, adquirem uma nova consciência e
organizam-se coletivamente. As vagens representariam as sementes da revolução
que, plantadas numa pequena cidade americana, rapidamente se espalhariam pelo
mundo. O comunismo, a ideia alienígena, chegaria assim, sorrateira e
silenciosamente, dominaria o mundo, alienaria os indivíduos e os organizaria
numa sociedade puramente racional, livre do sentimentalismo, das paixões e do
irracionalismo, onde todos seriam iguais e não existiriam conflitos e problemas.
O filme expressaria a visão que parte da sociedade norte americana tinha do
comunismo: uma coletividade inimiga da individualidade, sem vontade própria, desprovida
de sentimentos, mecânica, totalitária e sem alma. Os alienígenas comunistas,
como corpos invasores, disfarçados de cidadãos comuns, poderiam ser qualquer pessoa,
um pai, um irmão, um tio, um colega de trabalho, um vizinho. Agentes de uma invasão alienígena, as
duplicatas humanas conspiravam contra os valores americanos.
“Invasion”
tornou-se um clássico não apenas pelo virtuosismo cinematográfico, mas por ser
uma suposta metáfora do anticomunismo. Tonou-se símbolo de uma época.
A
sugestão do filme, seguindo esta interpretação, estaria nas entrelinhas da
trama: a sociedade norte-americana deveria se manter acordada e vigilante diante
da ameaça silenciosa que a rondava. O sono, como metáfora da fragilidade,
representaria o descuido e o relaxamento diante de um inimigo tenaz e
persistente. Era preciso desconfiar de todos e manter a América alerta.
A
interpretação é envolvente, sedutora e bastante plausível. Mas “Invasion” é
isso mesmo? É um filme macarthista?
Num
texto inspirado chamado “A imaginação do desastre”, de 1965, sobre os temas da
ficção científica do pós Segunda Guerra, Susan Sontag argumentou que o
cinema-catástrofe constituía uma estética que, por sua vez, repousava no gosto
do público e no prazer da contemplação do desastre. As implicações políticas
ficariam mais por conta das interpretações dos críticos do que das intenções
dos cineastas. Não pretendo dizer que não existam relações entre os filmes
apocalípticos dos anos 50 com a corrida atômica e o anticomunismo. Apenas chamo
a atenção, com Sontag, que a “imaginação do desastre” é muito anterior à década
de 1950, sobreviveu à guerra fria e hoje é um dos mais bem sucedidos e
apreciados gêneros cinematográficos. Existe uma linhagem cinematográfica a qual
o filme se filia que não pode ser negligenciada. A “imaginação do desastre” se
mantém justamente porque adapta o gosto do público por tragédias apocalípticas
aos medos de cada época. Mas daí a afirmar que “Invasion” é um filme macarthista
vai uma grande diferença. O que o diretor do filme teria a dizer sobre isso? O
filme de Don Sieguel é baseado no livro de Jack Finney, “The Body Snatchers”.
Finney surpreendeu-se com as interpretações do seu livro, considerando-as
exageradas. Disse que escreveu uma história de terror e ficção científica para
divertir os leitores. A adaptação para o cinema não foi fiel ao livro. No
livro, o Dr. Miles consegue derrotar os invasores incendiando a estufa onde as
vagens se encontram e salva Santa Mira, e o mundo, da ameaça alienígena. No
filme o final é bem diferente. A percepção ligeiramente descrente de Sieguel
sobre a humanidade e o olhar crítico do roteirista Daniel Mainwaring sobre o
momento político do país parece que foram decisivos para a adaptação do livro
para as telas.
Numa
entrevista, Sieguel disse que ele e a equipe com a qual trabalhou no filme
consideravam que a maioria das pessoas leva uma vida vegetativa: “But let me
repeat that all of us who worked on the film believed in what I said — that the
majority of people in the world unfortunately are pods, existing without any
intellectual aspirations and incapable of love.” E arrematou: “People are pods.
Many of my associates are certainly pods. They have no feelings. They exist,
breathe, sleep.” Creio que as declarações de Sieguel apontam para uma
possibilidade de leitura mais filosófica e menos histórico-sociológica do
filme, uma leitura que transcende o contexto imediato mas que não
necessariamente o ignora.
Don
Sieguel negou qualquer relação do filme com as questões relacionadas ao
macarthismo. Se a intenção do diretor ao adaptar o livro de Finney não era
fazer um filme anticomunista, o que autorizaria então essa interpretação?
Acredito que ao analisar um filme devemos levar em conta as intenções dos seus
realizadores. Desconsiderá-las é o caminho mais curto para o determinismo
sociológico.
Não
custa lembrar que “Invasion” também foi interpretado como um filme antimacarthista.
Os alienígenas foram vistos como uma ameaça interna, uma metáfora das mudanças
que colocavam em risco as liberdades constitucionais. O conservadorismo
macarthista perseguia o indivíduo, e as liberdades individuais, e poderia gerar
uma sociedade vegetativa (composta de
pods), despersonalizada e acéfala. Dr. Miles, neste caso, simbolizaria a
luta contra a uniformização e a defesa das liberdades individuais.
Tirando
por um instante o foco do contexto social e político, para evitar
determinismos, e examinando o filme pelo ângulo da estética, seguindo os
comentários de Steven Sanders (The Philosophy of Science Fiction Film), veremos
que “Invasion” é uma narrativa de ficção científica construída a partir dos
elementos visuais e dramáticos dos filmes
noir da época. É, por isso, um filme que vai além das questões políticas
que marcaram a década de 1950. Segundo Sanders: “Its flashback structure with
voice-over narration, unusually angled shots, scenes of claustrophobic
darkness, crisply rendered dialogue, and sense of sinister purpose and
impending doom are characteristics of films of the classic film noir cycle
(1941–58).” Os elementos estéticos nos oferecem ângulos de observação que pontam
para os modos de significação de um filme, que não o reduz a uma relação estreita
com o ambiente social que o cerca.
Chovendo
no molhado, diria que examinar um filme como “Invasion” apenas pelo ângulo
histórico e sociológico é tão empobrecedor quanto lê-lo exclusivamente pela
perspectiva da estética noir ou do
desastre. “Invasion” é um filme de ficção científica, concebido a partir dos
cânones estéticos do filme noir. Não
levar isso em conta é perder de vista os modos de significação de um filme. Mas
como deixar de considerar o contexto no qual os elementos estéticos e
narrativos do filme foram articulados? A historicidade de um filme está no
diálogo que ele mantém com o seu presente de produção. Os filmes carregam as
marcas de sua época e, em certa medida, vão além das intenções dos autores. Ok.
Mas se levarmos a sério as declarações de Don Sieguel, “Invasion” não pode ser
visto nem como um filme macarthista nem com a simples exploração estética do
desastre. A invasão dos pods parece
ser uma metáfora da vida vegetativa e sem emoções, da ausência de sentimentos,
da frieza e do automatismo de todos os dias. Sieguel questiona a existência
humana insubstancial, vivida no piloto automático. O contexto político, a
histeria, as perseguições e delações, podem ter aguçado e radicalizado esta percepção.
Parece-me, pelas declarações de Sieguel, que é esta a relação do filme com o macarthismo.
Ponto. Ver no filme uma apologia do anticomunismo já é cair nos domínios da hiperinterpretação
(é querer “achar pelo em ovo”). Mas, considerando que um filme muitas vezes vai
além das intenções dos autores, será que Don Sieguel, sem querer, fez um filme
anticomunista? Não creio.
O
filme teve três remakes. Philip Kaufman refilmou em grande estilo em 1978. Em
1993 foi a vez de Abel Ferrara e em 2007 Oliver Hirschbiegel dirigiu a terceira versão. São bons filmes, especialmente o de Kaufman, mas nenhum
deles chegou perto do clássico de 1956. O filme de Don Sieguel continua
imbatível!