O
GESTO INESQUECÍVEL DO CRAQUE REINALDO CONTRA O RACISMO E A DITADURA
MILITAR:
“Quem pede a volta da ditadura militar no Brasil não sentiu na pele o que eu sofri” (Reinaldo).
O
título mais do que merecido do Galo no Brasileirão, conquistado ontem contra o
Bahia, me trouxe à memória o futebol elegante, rápido e inteligente de um dos
maiores atacantes do futebol brasileiro. Reinaldo foi um craque e goleador
estiloso. E
foi o maior artilheiro do campeonato brasileiro entre 1977 e 1997. Conviveu com
problemas no joelho, que o obrigavam a treinar de calças compridas para
esconder o inchaço, e se aposentou precocemente aos 29 anos. A torcida o chamava
de Rei, e cantava Rei, Rei, Rei, Reinaldo é
nosso Rei.
Mas
Reinaldo foi muito mais do que o centroavante goleador e praticante do futebol
arte. Usou o esporte, numa época de repressão e violência, para manifestar-se
em defesa das liberdades e do respeito às diferenças. Nas comemorações dos gols
erguia o braço direito com o punho cerrado. Era uma referência ao movimento dos
Panteras Negras, que lutavam contra a violência racial nos EUA, e aos atletas
estadunidenses Tommie Smith e John Carlos, que protestaram contra o racismo nas
Olimpíadas de 1968. O gesto, tomado de empréstimo pelo centroavante goleador, era
um protesto pelo fim da ditadura militar.
Reinaldo
contou que quando fez o gesto pela primeira vez todos queriam saber o que
significava. Para driblar a repressão, dizia que era só um protesto contra o
racismo. Os tempos eram difíceis. “Eu precisava tomar cuidado, pois os ‘dedos-duros’ do governo
estavam sondando, querendo descobrir se eu seria como instrumento de algum
grupo revolucionário. Percebia que o meu gesto era um alento aos socialistas,
um sinal de apoio e de unidade perante uma causa” (Extraído do livro Punho Cerrado: a história do Rei, escrita
pelo seu filho Philipe Van R. Lima, publicado em 2017).
Reinaldo se sentia
isolado e desanimado com a falta de apoio no meio futebolístico, mas continuou
fazendo o gesto a cada gol marcado. “O apoio que recebi vinha mais da classe
artística e, mesmo assim, era silencioso. Quase ninguém tinha coragem de se
manifestar. Fiquei muito isolado, sofrendo todo tipo de ataque. Esse gesto
(comemoração) de alguma forma passou a mensagem de que precisávamos de um país
democrático e com mais justiça social”.
Às vésperas da Copa e
1978 na Argentina o posicionamento do centroavante ocupava os debates
esportivos. Afinal, um jogador poderia ter e manifestar opinião política? Três
meses antes da Copa Reinaldo disse que foi impedido de disputar a final do
Campeonato Brasileiro contra o São Paulo. Uma manobra punitiva dos cartolas com
o governo o afastou da decisão. Na década de 1970, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD, hoje CBF)
era comandada por militares e presidida pelo almirante Heleno Nunes, que desaprovava
a postura do jogador. Ficar de fora da final, por uma expulsão que aconteceu no
mês anterior, dava a Reinaldo a certeza de que o julgamento foi político. Ao
invés de intimidar, a punição aumentou a disposição crítica contra a ditadura.
O tiro saiu pela culatra.
Antes do embarque para a
Argentina, a seleção foi recebida pelo presidente Ernesto Geisel no Palácio
Piratini, em Porto Alegre. A mensagem do discurso do presidente ao grupo não
poderia ser mais clara: “Ponham de lado os sentimentos pessoais e façam do time
um conjunto que realmente possa trazer a vitória”. Na conversa reservada que
teve com Reinaldo a mensagem foi ainda mais clara: “Vai jogar bola, garoto.
Deixa que política a gente faz”. Na concentração da seleção, André Richer,
chefe da delegação brasileira, disse a Reinaldo que a CBD e o governo
consideravam o gesto comemorativo “revolucionário demais”. A “recomendação” era
para que não comemorasse os gols na Copa com aquele gesto e nem comentasse
sobre política nas entrevistas.
Havia dúvidas
sobre a convocação de Reinaldo. Mas, mesmo com a desaprovação dos generais, que
o consideravam esquerdista e subversivo, Cláudio Coutinho, que era também
capitão do exército, convocou o craque. Ele era bom demais para ficar de fora.
E o apelo popular era grande. A convocação do Rei foi uma vitória, ainda que
momentânea, do futebol sobre a ditadura.
A Copa na Argentina, que também vivia sob a ditadura do general Videla, tinha um peso político enorme. E mesmo com toda a pressão, e sem contar com o apoio dos colegas, Reinaldo não se intimidou. Na estreia contra a Suécia fez o que tinha que fazer. O Brasil saiu perdendo. Mas, aos 45 minutos do primeiro tempo, Toninho Cerezo cruzou a bola da direita, Reinaldo se antecipou ao zagueiro Roy Andersson e estufou as redes. Depois de hesitar por alguns segundos, tomou a decisão e comemorou o empate com o gesto que tanto desagradava a ditadura. Foi colocado na reserva e não jogou mais na Copa.
A comemoração foi um gol de placa contra as ditaduras brasileira e argentina do camisa 9, de 21 anos. “Não sei mensurar o impacto desse gesto durante a Copa do Mundo, pois estava isolado na concentração da seleção e não chegavam muitas notícias lá. Mesmo assim, foi um ato muito ousado, pois eu havia recebido a recomendação de não comemorar daquela forma, inclusive das autoridades argentinas”.
No hotel em Mar Del Plata, onde estava hospedado, e já afastado do time, Reinaldo recebeu um pacote anônimo, com um endereço da Venezuela. Era um Relatório sobre a Operação Condor, uma aliança e cooperação entre países sul-americanos que viviam sob regimes militares. O documento revelava planos para o assassinato de ativistas de esquerda e democratas, e o assassinato de importantes políticos chilenos pela ditadura de Pinochet. E sugeria também que a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, no Brasil, foi planejada pela Operação. Segundo Reinaldo, o “documento estava em espanhol, não conseguir entender tudo. Fiquei apavorado, estava com uma bomba em minhas mãos, não sabia como lidar com aquilo, por isso guardei o envelope no fundo da minha mala e não mostrei para ninguém. Quando retornei ao Brasil, deixei o envelope com o músico Gonzaguinha, que era ligado a movimentos de esquerda”.
O Relatório foi bastante importante para desgastar a imagem internacional dos generais sul-americanos e para apontar os crimes contra a humanidade cometidos nas ditaduras.
A vida do jogador não foi fácil depois da Copa. Além das lesões, que o levaram a abandonar o futebol, sua vida pessoal foi atacada e exposta impiedosamente na imprensa. O uso de drogas e de álcool e a amizade com o radialista gay Tutti Maravilha eram pratos cheios para os difamadores e adversários políticos. A amizade com Tuti foi distorcida e massacrada pela vigilância homofóbica. Reinaldo era chamado de cachaceiro e gay. E tudo isso explodindo às vésperas da convocação para a Copa do Mundo de 1982. Numa entrevista à Revista Placar, Reinaldo se manifestou sobre os ataques: “Transar com o Tutti, minha gente, seria o mesmo que cometer um incesto. Transar com o Tutti não pode. Transar com muitas mulheres também não. Não transar com nenhuma é, da mesma forma, perigoso. Se saio à noite com mulheres, sou boêmio. Se não saio, sou viado. Que fazer?”.
O técnico Telê Santana deixou Reinaldo de fora da lista para a Copa de 1982. A Revista Placar, de janeiro de 82, detalhou a relação do jogador com o técnico e as razões da não convocação. “Seu relacionamento com o técnico deteriorou-se no semestre passado. A partir dali, Telê começou a censurá-lo - ora pela amizade do jogador com homossexuais, ora por suas brigas com a namorada, ora por suas ligações com o Partido dos Trabalhadores”. Embora Telê tenha negado que sua decisão tivesse alguma motivação política, o que é bastante questionável, não há dúvidas de que o moralismo foi decisivo. Considerado um técnico disciplinador, dizia abertamente que não queria no seu time “sujeito homossexual”. Mas sustentou que o veto era técnico e se devia à má condição física do jogador. Reinaldo discorda: “Houve influência política. Eu estava bem fisicamente. A comissão técnica não resistiu à pressão, aos argumentos de pessoas que não me queriam na seleção. O Telê era implicante com o estilo de vida das pessoas. E o meu estilo não o agradava.”
Alguns craques da Copa de 82, em entrevistas à Revista Placar em 1981, logo depois da convocação, manifestaram-se a favor da convocação do Rei:
“Não posso escalar o time. Mas, como nunca fiz um coletivo com o Serginho, o Baltazar ou o Roberto, é lógico que eu me entroso mais com o Reinaldo” (Zico).
“Vai jogar o Rei. É o mais inteligente, o mais técnico e o mais perigoso” (Júnior).
“Todos têm suas virtudes. A diferença é que o Reinaldo é o Reinaldo” (Éder).
“No meu time, joga o Rei” (Sócrates).
E eu lembro do meu Pai dizendo: “Não tem ninguém melhor que o Reinaldo. Telê errou”.
Perdemos o Reinaldo, perdemos a Copa, perdemos 21 anos, perdemos quase 500 vidas, mas não perdemos a memória. Se a ditadura e os seus defensores trabalham com a política do esquecimento, nós, do campo democrático, resistimos evocando a memória e relembrando o que o autoritarismo tentou silenciar e apagar.
Hulk relembrou recentemente o gesto de Reinaldo e o homenageou no jogo contra o Fluminense, erguendo o braço com o punho cerrado. Reinaldo estava no Mineirão e se emocionou. Hyoran também comemorou o gol de empate contra o Bragantino com o gesto do Rei. Uma pena que as repercussões das comemorações ficaram apenas no domínio do esporte e na homenagem ao maior ídolo do Galo. Foi bonito, foi, mas teria sido épico se a atitude dos jogadores também tivesse despertado maior curiosidade sobre a causa por trás do gesto. Limitando-se à homenagem ao artilheiro, o gesto foi esvaziado de tudo aquilo que ele significava. Os motivos que levavam Reinaldo a fazer o gesto, e o quanto isso lhe custou, não foram lembrados.
O gesto solitário e corajoso
de Reinaldo não pode ser esquecido. Tem que ser celebrado. A comemoração do tão
esperado título do Atlético Mineiro, depois de 50 anos, é também um momento para
celebrar e relembrar a história do time, os títulos e os ídolos do passado. Relembrar
que Reinaldo chegou no clube em 1971, aos 14 anos, ano em que o Atlético foi
Campeão, e o técnico era o Telê Santana. Relembrar é trazer à
memória, é tornar presente e reatualizar algo significativo que se deseja
preservar. E nada mais significativo do que o maior goleador da história do
Galo encarando sem medo, com o braço em riste, a vergonhosa ditadura que
tentava em vão discipliná-lo politicamente.
Com a palavra, o Rei:
“Medo eu não
tinha, porque contava com respaldo popular. Não iam me sequestrar ou matar,
como fizeram com vários outros brasileiros. Mas fui queimado em fogueira
pública e continuo queimando até hoje.”
“O futebol sempre foi um meio machista e conservador. Não aceitam que um jogador tenha posições políticas, que se proponha a pensar. Fui perseguido por fazer oposição, mas, como figura pública, era preciso mostrar resistência ao regime militar para acelerar o processo democrático. O autoritarismo emburrece a sociedade. Quem pede a volta da ditadura militar no Brasil não sentiu na pele o que eu sofri.”