AS
PALAVRINHAS MÁGICAS E A LIÇÃO DO “DOIDO VARRIDO”. Ou: o dia em que um interno
do Pinel tomou a palavra e a devolveu num grito de derrubar paradigmas.
Algumas
palavras/conceitos, em determinados ambientes e contextos, adquirem uma aura de
sacralidade e tornam-se verdadeiras entidades mágicas, com incríveis poderes explicativos.
Esclarecem tudo e servem para todas as situações. São chaves-mestras que abrem todas
as fechaduras. Na hora do aperto, na falta de argumento, basta sacar a palavra
e, abracadabra!, tudo está resolvido.
No mundo acadêmico, de
tempos em tempos, determinados conceitos popularizam-se de tal maneira,
especialmente no âmbito das ciências sociais e humanas, que passam a dominar os
debates, orientar os estudos e iluminar as consciências. Nos meus tempos de
faculdade, no fim dos anos 80, a palavra dominante era dialética. No começo da década de 1990, uma das palavras mais usadas
era paradigma. Dialética ficou em segundo plano. Era paradigma pra lá, paradigma
pra cá, crise dos paradigmas, novos paradigmas, quebrar paradigmas. Era a febre dos paradigmas.
Os conceitos de representação e desconstrução também tiveram os seus momentos.
O sujeito que não inserisse a palavra numa discussão, num texto, estava
deslocado. Era quase uma senha para ser lido e ouvido.
Em 1993 eu participava
de um encontro de História, na UFRJ. Não lembro muito bem dos temas abordados
no evento, mas lembro perfeitamente bem que a palavra que predominava nas
discussões e nas rodas de conversa era paradigma.
Eu e meus colegas da turma de mestrado transitávamos por diferentes grupos, que
debatiam temas diversos. A palavra paradigma
estava sempre presente. Num dos grupos
de conversa conhecemos um rapaz de uns 25 anos, bonito, cabelos cacheados e
olhos claros. Vestia-se com certo desleixo, meio grunge (a modinha da época),
sempre com a mesma roupa. Parecia ser uma pessoa inteligente, falava pouco, mas
estava sempre atento às conversas. Tinha um olhar cativante e um sorriso
sincero. Circulava por todos os grupos e parecia se sentir à vontade com todo
mundo. Parecia ser um pós-graduando.
Numa manhã, assistíamos
a uma palestra num dos auditórios. Casa cheia, palestrante badalado e um tema
do momento. Cheguei cedo, consegui um bom lugar, tomei umas cuias de chimarrão
com uns colegas do RS (enquanto ouvíamos piadinhas sobre separatismo, tema que
também estava na moda), e fiquei aguardando. Não recordo exatamente o tema da
palestra, mas tinha alguma coisa a ver, pra variar, com crise de paradigmas e nova ordem mundial. O
palestrante deve ter dito a palavra paradigma
umas 50 vezes em 20 minutos. Parecia vício de linguagem.
No meio da palestra,
numa pausa entre uma frase e outra, alguém, no fundo da sala, começou a gritar,
a plenos pulmões, PARADIGMA, PARADIGMA, PARADIGMA. E não parava. Gritou mais de dez vezes: PARADIGMA, PARADIGMA, PARADIGMA.
Olhamos para trás e vimos aquele rapaz meio grunge, de pé, com as mãos como se
fosse um megafone, num verdadeiro transe, gritando. Assim como começou a
gritar, do nada, parou e sentou, como se nada tivesse acontecido. Recostou-se
na cadeira, cruzou as pernas e ficou esperando o palestrante retomar a fala. Fez-se
um silêncio constrangedor. Alguns faziam cara de reprovação, outros esboçaram
risos, contidos, silenciosos. Nenhuma gargalhada.
O palestrante
manteve-se, ou esforçou-se para manter-se imperturbável. Bebeu água, enxugou o
suor da testa, consultou o relógio e continuou a falar. Duas ou três frases à
diante, quando foi pela quinquagésima primeira vez dizer a tal palavra, não
passou da primeira sílaba. Gaguejou e usou um sinônimo. A gritaria abalou o
professor. Mencionou a palavra uma vez ou outra, na sequência, mas com
indisfarçável mal estar, dele e da audiência.
Na hora do almoço, ali
mesmo na universidade, descobrimos que o rapaz não era estudante. Era um
interno do Pinel, hospital psiquiátrico localizado ao lado da UFRJ. O senhor
que cuidava do estacionamento nos informou que o sujeito driblava os vigilantes
e entrava no campus todas as manhãs para estar com os estudantes. “É um louco,
um doido varrido, que escapa lá do hospício e vem incomodar aqui. É pau de dá
em doido”, disse o senhor, num misto de complacência com insatisfação.
O “louco dos
paradigmas”, como passamos a chamá-lo, pegou a coisa no ar, capturou a palavra onipresente
e devolveu-a na forma de um grito loucamente lúcido, libertador. Repetiu aos
gritos a palavra que ouvia a todo instante, na boca de todo mundo.
A loucura, como objeto
da ciência, foi enunciada, conceituada e definida por diferentes saberes, em
diferentes contextos. O louco, governado
pela desrazão, costumeiramente não é levado a sério. É destituído da voz, do
poder de dizer, e silencia para o discurso da razão científica se pronunciar. Visto
como o outro da razão, da ordem e da
normalidade, foi submetido a diferentes práticas de silenciamento. Fala-se em
nome do louco. (A Grécia antiga, onde
a loucura era vista como um
privilégio, que possibilitava acessar as verdades divinas, é uma exceção). Cada
época construiu um saber sobre a loucura e definiu estratégias de poder para
lidar com os sujeitos considerados anormais. Estratégias que foram do exílio à
reclusão, da expulsão à demonização. No encontro de História, mesmo sem ser
solicitado, o louco tomou a palavra,
literalmente, inverteu a relação de poder e silenciou a plateia e o
palestrante. Dono de um dizer louco,
que escapava aos códigos dos rebanhos ilustrados e seus dizeres cifrados,
expôs, mesmo sem ter a intenção, o lado cômico e enfadonho do ambiente
acadêmico (do qual faço parte e não me excluo).
Se
há sempre um pouco de razão na loucura,
como dizia Nietzsche, o “louco dos paradigmas” nos deu uma lição, chamando a
atenção para o que, por óbvio, éramos incapazes de ouvir. Será que por isso ela
veio na forma de um grito (de fora da
academia e dos domínios da razão)?
Volta e meia, lendo ou
ouvindo coisas no mundo acadêmico, sinto vontade de colocar as mãos ao redor da
boca e gritar PARADIGMA, PARADIGMA. Falta-me, no entanto, uma boa dose de loucura para soltar o grito.
"Pós-verdade", "pós-verdade", "pós-verdade"!!!
ResponderExcluirReforço o Grito:PÓS VERDADE PÓS VERDADE PÓS VERDADE
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ResponderExcluirFernando, meu caro. Tudo certo? Por onde andas?
ResponderExcluirMestre me formei e atualmente moro em Salvador BA.
ResponderExcluirSuas aulas revolucionaram meu olhar cidadão!!
Abraço fera!