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segunda-feira, 12 de dezembro de 2016


AS PALAVRINHAS MÁGICAS E A LIÇÃO DO “DOIDO VARRIDO”. Ou: o dia em que um interno do Pinel tomou a palavra e a devolveu num grito de derrubar paradigmas.



Algumas palavras/conceitos, em determinados ambientes e contextos, adquirem uma aura de sacralidade e tornam-se verdadeiras entidades mágicas, com incríveis poderes explicativos. Esclarecem tudo e servem para todas as situações. São chaves-mestras que abrem todas as fechaduras. Na hora do aperto, na falta de argumento, basta sacar a palavra e, abracadabra!, tudo está resolvido.

No mundo acadêmico, de tempos em tempos, determinados conceitos popularizam-se de tal maneira, especialmente no âmbito das ciências sociais e humanas, que passam a dominar os debates, orientar os estudos e iluminar as consciências. Nos meus tempos de faculdade, no fim dos anos 80, a palavra dominante era dialética. No começo da década de 1990, uma das palavras mais usadas era paradigma. Dialética ficou em segundo plano. Era paradigma pra lá, paradigma pra cá, crise dos paradigmas, novos paradigmas, quebrar paradigmas. Era a febre dos paradigmas. Os conceitos de representação e desconstrução também tiveram os seus momentos. O sujeito que não inserisse a palavra numa discussão, num texto, estava deslocado. Era quase uma senha para ser lido e ouvido.

Em 1993 eu participava de um encontro de História, na UFRJ. Não lembro muito bem dos temas abordados no evento, mas lembro perfeitamente bem que a palavra que predominava nas discussões e nas rodas de conversa era paradigma. Eu e meus colegas da turma de mestrado transitávamos por diferentes grupos, que debatiam temas diversos. A palavra paradigma estava sempre presente.  Num dos grupos de conversa conhecemos um rapaz de uns 25 anos, bonito, cabelos cacheados e olhos claros. Vestia-se com certo desleixo, meio grunge (a modinha da época), sempre com a mesma roupa. Parecia ser uma pessoa inteligente, falava pouco, mas estava sempre atento às conversas. Tinha um olhar cativante e um sorriso sincero. Circulava por todos os grupos e parecia se sentir à vontade com todo mundo. Parecia ser um pós-graduando.  

Numa manhã, assistíamos a uma palestra num dos auditórios. Casa cheia, palestrante badalado e um tema do momento. Cheguei cedo, consegui um bom lugar, tomei umas cuias de chimarrão com uns colegas do RS (enquanto ouvíamos piadinhas sobre separatismo, tema que também estava na moda), e fiquei aguardando. Não recordo exatamente o tema da palestra, mas tinha alguma coisa a ver, pra variar, com crise de paradigmas e nova ordem mundial. O palestrante deve ter dito a palavra paradigma umas 50 vezes em 20 minutos. Parecia vício de linguagem.

No meio da palestra, numa pausa entre uma frase e outra, alguém, no fundo da sala, começou a gritar, a plenos pulmões, PARADIGMA, PARADIGMA, PARADIGMA. E não parava. Gritou mais de dez vezes: PARADIGMA, PARADIGMA, PARADIGMA. Olhamos para trás e vimos aquele rapaz meio grunge, de pé, com as mãos como se fosse um megafone, num verdadeiro transe, gritando. Assim como começou a gritar, do nada, parou e sentou, como se nada tivesse acontecido. Recostou-se na cadeira, cruzou as pernas e ficou esperando o palestrante retomar a fala. Fez-se um silêncio constrangedor. Alguns faziam cara de reprovação, outros esboçaram risos, contidos, silenciosos. Nenhuma gargalhada.

O palestrante manteve-se, ou esforçou-se para manter-se imperturbável. Bebeu água, enxugou o suor da testa, consultou o relógio e continuou a falar. Duas ou três frases à diante, quando foi pela quinquagésima primeira vez dizer a tal palavra, não passou da primeira sílaba. Gaguejou e usou um sinônimo. A gritaria abalou o professor. Mencionou a palavra uma vez ou outra, na sequência, mas com indisfarçável mal estar, dele e da audiência.

Na hora do almoço, ali mesmo na universidade, descobrimos que o rapaz não era estudante. Era um interno do Pinel, hospital psiquiátrico localizado ao lado da UFRJ. O senhor que cuidava do estacionamento nos informou que o sujeito driblava os vigilantes e entrava no campus todas as manhãs para estar com os estudantes. “É um louco, um doido varrido, que escapa lá do hospício e vem incomodar aqui. É pau de dá em doido”, disse o senhor, num misto de complacência com insatisfação.

O “louco dos paradigmas”, como passamos a chamá-lo, pegou a coisa no ar, capturou a palavra onipresente e devolveu-a na forma de um grito loucamente lúcido, libertador. Repetiu aos gritos a palavra que ouvia a todo instante, na boca de todo mundo.

A loucura, como objeto da ciência, foi enunciada, conceituada e definida por diferentes saberes, em diferentes contextos. O louco, governado pela desrazão, costumeiramente não é levado a sério. É destituído da voz, do poder de dizer, e silencia para o discurso da razão científica se pronunciar. Visto como o outro da razão, da ordem e da normalidade, foi submetido a diferentes práticas de silenciamento. Fala-se em nome do louco. (A Grécia antiga, onde a loucura era vista como um privilégio, que possibilitava acessar as verdades divinas, é uma exceção). Cada época construiu um saber sobre a loucura e definiu estratégias de poder para lidar com os sujeitos considerados anormais. Estratégias que foram do exílio à reclusão, da expulsão à demonização. No encontro de História, mesmo sem ser solicitado, o louco tomou a palavra, literalmente, inverteu a relação de poder e silenciou a plateia e o palestrante. Dono de um dizer louco, que escapava aos códigos dos rebanhos ilustrados e seus dizeres cifrados, expôs, mesmo sem ter a intenção, o lado cômico e enfadonho do ambiente acadêmico (do qual faço parte e não me excluo).

Se há sempre um pouco de razão na loucura, como dizia Nietzsche, o “louco dos paradigmas” nos deu uma lição, chamando a atenção para o que, por óbvio, éramos incapazes de ouvir. Será que por isso ela veio na forma de um grito (de fora da academia e dos domínios da razão)?

Volta e meia, lendo ou ouvindo coisas no mundo acadêmico, sinto vontade de colocar as mãos ao redor da boca e gritar PARADIGMA, PARADIGMA. Falta-me, no entanto, uma boa dose de loucura para soltar o grito.


5 comentários:

  1. "Pós-verdade", "pós-verdade", "pós-verdade"!!!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Fernando, meu caro. Tudo certo? Por onde andas?

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  4. Mestre me formei e atualmente moro em Salvador BA.
    Suas aulas revolucionaram meu olhar cidadão!!

    Abraço fera!






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