“UM
ATRAZADO QUE A GANÂNCIA DAS GAZETAS SAGROU E A BOBAGEM DA MULTIDÃO FEZ UM DEUS”:
A CRÍTICA DE LIMA BARRETO COMO CONTRAPONTO À DIVINIZAÇÃO DO BARÃO DO RIO
BRANCO.
[...]
repimpado em luxuoso automóvel de capota arriada, passou, com o ventre proeminente
atraído pelos astros, o poderoso ministro do Estrangeiros [...]. (Vida e morte
de M.J. Gonzaga de Sá - Lima Barreto).
Barão do Rio Branco,
chanceler brasileiro entre 1902 e 1912, é considerado oficialmente herói nacional desde 2011. A Comissão
de Constituição e Justiça e de Cidadania do Congresso Nacional aprovou, em
caráter conclusivo, o Projeto de Lei 7403/02, que inscreveu o seu nome no Livro
dos Heróis da Pátria. O culto à sua figura, no entanto, remonta
ao começo do século XX. As vitórias nos arbitramentos com a Argentina e a
França lhe conferiram grande notabilidade e sua chegada ao Rio de Janeiro, em
1902, para tomar posse no MRE, foi triunfal, com direito à carruagem aberta sob
os aplausos da multidão. Ainda em vida o Barão era visto como verdadeiro herói
nacional e cultuado no círculo das elites políticas e diplomáticas como uma
espécie de semideus. Depois da morte, em 10 de fevereiro de 1912, foi transformado
no modelo inalcançável e símbolo maior da diplomacia brasileira. Foi proclamado
também como um dos artífices da identidade nacional. Descolado do mundo social
e político no qual se construiu, foi alçado ao altar cívico da pátria. Os
críticos silenciaram, ou se renderam às efusivas homenagens, e as virtudes e os
feitos do “grande homem” foram elevados a uma condição olímpica. Os discursos
laudatórios e toda sorte de homenagens (placas, monumentos, nomes de ruas, etc.),
que enalteceram suas glórias e imortalizaram seus feitos, o transformaram numa
unanimidade nacional (Ver o post anterior sobre o Barão).
Porém, quando examinamos
mais de perto a figura do Barão, para além dos discursos mistificadores, nos
deparamos com uma figura humana, como todas as outras, marcada por
imperfeições. Estava longe de ser uma unanimidade. Na verdade, dividia
opiniões. Os admiradores e apologistas, claro, eram maioria, mas os críticos
eram dedicados e persistentes. Se para alguns lhe sobravam habilidades e
talentos, para outros, o chanceler era defensor da eugenia, um negociador
fraco, um gastador sem reservas e um egoísta ultrapassado.
Dar relevo às críticas e
aos desafetos do Barão não significa desmerecer-lhe os talentos e as
qualidades. A preferência por soluções pacíficas para as disputas, a não
ingerência nos assuntos internos dos países vizinhos, o fortalecimento dos
laços sul-americanos, visando a estabilidade regional, a busca por autonomia e
o exercício discreto da liderança brasileira na América do Sul, são alguns dos
pontos que se destacam na atuação do Barão na condução da política externa.
Todavia, ler atentamente as críticas que sofreu é fundamental para que possamos
retirar o véu das mistificações que o envolve e avaliarmos suas escolhas e
decisões à luz das condições históricas e das relações políticas de sua época, e
não como um ato de iluminação, inscrito num plano metafísico, superior.
Entre os críticos mais
conhecidos, no Brasil, destacamos Lima Barreto e Oliveira Lima. O chanceler
argentino Estanisláo Zeballos também foi um grande adversário. Lima Barreto,
crítico severo do estilo e dos excessos do Barão, não perdeu oportunidade de
denunciar-lhe os abusos (excessos e abusos aos olhos de Lima Barreto). Referiu-se
direta ou indiretamente ao Barão em dois livros (um romance e uma sátira) e em
alguns textos esparsos, sempre de maneira incisiva e cortante. Na vasta coleção
de personagens característicos daquela época, verdadeiro banquete para um crítico
perspicaz, o chanceler era um dos seus alvos preferenciais.
Lima e Rio Branco, cada
um à sua maneira, foram figuras de proa de
mundos distintos do Brasil da Belle Époque. Muito diferente do aristocrático
Rio Branco, e da diplomacia eugenista que praticava, Lima Barreto era um mulato
pobre, suburbano, que vivia e escrevia em condições sociais e pessoais muito
adversas. Se Rio Branco teve a vida política facilitada pelo sobrenome e por
amizades, como a de Duque de Caxias, que lhe abriu as portas para a carreira
diplomática, Lima não contou com estas facilidades e tropeçou a vida inteira na
barreira da cor. De um lado, o Brasil branco, europeu, das elites, das
distinções e do coronelismo ilustrado; de outro, o Brasil mestiço, inventivo e de
poucas oportunidades, que corria à margem da república dos bacharéis.
A literatura ativista de
Lima Barreto, numa época marcada pelo darwinismo social, combatia os
preconceitos de classe e de cor e as múltiplas formas de injustiças daquele
Brasil. Numa época em que teorias científicas de enorme prestígio e sucesso
afirmavam existir diferenças irredutíveis e permanentes entre as raças humanas,
Lima manteve-se cético e profundamente contestador das justificativas cientificas
para as desigualdades raciais e a suposta superioridade branca (Schwarcz).
Lima fundiu estilos
literários, empregando-os com originalidade para os seus propósitos. Intencionalmente,
ao mesmo tempo, procurou descaracterizar o estilo, visando uma comunicação mais
direta com o público. Dois recursos estilísticos, notadamente, marcaram sua
obra: a ironia e a caricatura. Os modelos foram declaradamente inspirados nos
grandes mestres do gênero: Dickens, Swift, Maupassant, Voltaire, Balzac e
Daudet. A “suculenta ironia”, como dizia Lima, que ia da “simples malícia ao
profundo humour”, vinha da dor. “Era
o artifício através do qual se sobrepunha aos infinitos percalços que lhe
entravam o desenvolvimento da personalidade e da carreira”. A caricatura
derivava da percepção de que a realidade não falava por si. Era preciso apertá-la,
exagerá-la, pintá-la com tons gritantes para denunciar seus defeitos e
deformações (Sevcenko).
Tinha um agudo senso de
observação do “instante presente” e escrevia para o futuro, com apurada
consciência histórica. Deixou para a posteridade um retrato denso e
multifacetado do seu tempo. Nas suas próprias palavras: “A minha atividade
excede em cada minuto o instante presente, estende-se ao futuro. Eu consumo a
minha energia sem recear que esse consumo seja uma perda estéril, imponho-me
privações, contando que o futuro as resgatará – e sigo o meu caminho” (O
destino da literatura).
Lima combatia os
“literatos de atelier” e as
expressões literárias de seu tempo, vistas como meramente decorativas e
frívolas, para entreter as elites letradas que desdenhavam ociosamente dos
problemas do país, e se debatia contra o bovarismo, a mania de dar as costas
para o que era “nosso” e se voltar para as coisas do estrangeiro, ou “de se querer diferente do que se é”.
O Barão do Rio Branco,
para Lima Barreto, encarnava uma espécie de síntese do bovarismo e da
frivolidade exibicionista que afetava as elites da época.
Na sátira política “Bruzundanga”,
escrita em 1917, Lima desfere críticas mordazes ao Brasil das oligarquias, das
elites bovaristas (que fingiam ser o que não eram), do abuso de poder, dos
privilégios e das injustiças. Bruzundanga, na trilha de Jonathan Swift e Thomas
More, é um país imaginário, visitado por um narrador brasileiro, que em tudo se
parece com o Brasil. O Capítulo VII é dedicado à diplomacia da Bruzundanga. O
Barão do Rio Branco é retratado cartunescamente na figura do Visconde de
Pancome, “um embaixador gordo e autoritário, megalômano e inteligente”, que
veio ser “ministro dos Estrangeiros”. “Empossado no ministério”, continua Lima,
“a primeira coisa que fez foi acabar com as leis e regulamentos que governavam
o seu departamento. A lei era ele. O novo ministro era muito popular na
Bruzundanga”. Os habitantes da República dos Estados Unidos da Bruzundanga eram
“assim como nós, que temos grande admiração pelo Barão do Rio Branco por ter
adjudicado ao Brasil não sei quantos milhares de quilômetros quadrados de
terras, embora, em geral, nenhum de nós tenha de seu nem sete palmos de terra
para ditarmos o cadáver”.
Na República da
Bruzundanga, o Visconde de Pancome exercia a diplomacia baseado na sua vontade
e “não houve bonequinho mais ou menos vazio e empomadado que ele não nomeasse
para esta ou aquela legação”. “Não ha mal algum que assim seja a diplomacia
daquelas paragens”, arremata Lima. “A Bruzundanga é um país de terceira ordem e
sua diplomacia é meramente decorativa. Não faz mal, nem bem: enfeita”.
No romance “Vida e morte
de M. J. Gonzaga de Sá”, publicado em 1919, Lima fixou uma imagem nada
lisonjeira do herói nacional. Por meio do narrador Augusto Machado, que recorda
o falecido Gonzaga de Sá, o Barão é visto como um homem de uma “mediocridade
supimpa”. “Sempre voltado para tolices diplomáticas (...) era um atrazado, que
a ganância das gazetas sagrou e a bobagem da multidão fez um Deus”.
Autoritário e
egocêntrico, o Barão teria feito “do Rio de janeiro a sua chácara”. Não dava
satisfação a ninguém e se julgava acima da Constituição. Armava situações
diplomáticas para “mostrar seu atilamento de Tayllerand, ou sua astúcia
Bismarkeana”. Para Lima, Rio Branco era “egoísta, vaidoso e ingrato.”
O chanceler, na
apreciação de Lima, era demasiado apegado aos detalhes cerimonias, caprichosos
e inúteis. O seu ideal de estadista não é fazer a vida fácil e commoda a todos;
é o apparato, a filigrana dourada, a solennidade cortezan das velhas monarchias
europeas - é a figuração theatral, a imponência de um ceremonial chinez, é a
observância das regras de precedência e outras vetustas tolices versalhezas”.
A imagem que Lima tinha
do Barão é um contraponto, cáustico e demolidor, à decantada unanimidade que se
supunha existir em torno do seu nome. Embora, por antipatia, Lima possa ter
exagerado e carregado nas tintas (os apologistas do Barão, por simpatia, não
fazem o mesmo?), ele parece ter expressado um ponto de vista que, supomos, era
compartilhado entre aqueles que se opunham à diplomacia das oligarquias
cafeeiras, da qual o Barão era o olímpico condutor.
A unanimidade só veio
mesmo depois da morte. O discurso de Oliveira Lima utilizado por Celso Lafer e Francisco
Weffort, em 2002, para justificar a inscrição do nome de Rio Branco no livro
dos Heróis da Pátria é um bom exemplo disso (ver o post anterior sobre o Barão).
Oliveira Lima, diplomata visto como dissidente, foi desafeto e crítico do Barão
ao longo da sua gestão no MRE. Além de ser contrário à política pan-americana,
acusava-o de dificultar a sua carreira diplomática. Depois da morte, recolheu
as críticas e rendeu-lhe as mais honrosas homenagens. O mesmo aconteceu com
Estanisláo Zeballos, chanceler argentino e rival do Barão desde o litígio
lindeiro de Palmas, que conduziu uma política externa abertamente
antibrasileira. Num artigo publicado logo após a morte do Barão, Zeballos
abandonou o tom crítico e escreveu um discurso de homenagem ao velho rival: “Si
el Brasil consolida la obra territorial del Barón de Rio Branco, le deberá el
título de su primer servidor y del mas grande de los benefactores de su amor
proprio nacional y de su mapa”.
A morte do Barão, as
pomposas e intermináveis homenagens que se seguiram e o culto que se ergueu em
sua memória, só não diminuíram a verve crítica de Lima Barreto. “Os
Bruzundangas” e “Morte e Vida” foram escritos, respectivamente, cinco e sete
anos depois da morte do Barão, e em plena maturidade literária de Lima (Barbosa).
Lima não deu descanso ao Barão nem depois de morto. Em vida, criticou a conduta,
os valores ultrapassados e o autoritarismo esnobe do chanceler. Posteriormente,
não se rendeu à comoção nacional e à força do mito. Continuou implacável!
Na Bruzundanga
contemporânea, Lima se indignaria e se deliciaria com os personagens, de todas
as cores políticas, que nada ficam devendo às formidáveis caricaturas que
pintou em sua época. A corrupção, as enormes desigualdades, as trocas de
favores, o racismo, os abusos de autoridade e o saque aos bens públicos, que
tanto o incomodaram, continuam, quase cem anos depois de sua morte, a dar as
cartas e a esculhambar o país.
A Bruzundanga é aqui, e
agora! E em repúblicas onde barões são heróis, mulatos pobres continuam
tropeçando nas barreiras de cor e de classe.
Referências
bibliográficas.
BARBOSA, Francisco
de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio
de janeiro: José Olympio, 2002.
BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática,
2000.
BARRETO, Lima. Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá. Rio
de janeiro-Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1990.
BARRETO, Lima. Obras completas de Lima Barreto.
(Francisco de Assis Barbosa. Org.). São Paulo: Brasiliense, 1956.
SCHWARCZ, Lilia
Moritz. Lima Barreto: triste visionário.
São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
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