Pin it

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS, NATUREZA HUMANA E A SORTE LANÇADA NUM CONTAINER.

MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS, NATUREZA HUMANA E A SORTE LANÇADA NUM CONTAINER.


O tema das migrações internacionais (ou globais), tanto pela mobilização de enormes contingentes populacionais quanto pelo lado dantesco das tragédias humanitárias, está na ordem do dia e ocupa o centro dos debates sobre a globalização e as tendências políticas de diversos países. Os deslocamentos humanos, que caracterizam as migrações, entretanto, não são um fenômeno recente. Desde os tempos antigos registram-se movimentos de pessoas, entre regiões e lugares, em grandes ou em pequenos grupos. Das narrativas bíblicas sobre Canaã e o Egito aos movimentos de população da era da globalização, o fenômeno acompanha e diz muito sobre a trajetória humana. Mas é preciso tomar cuidado para não embarcar em certos essencialismos.

O argumento comumente utilizado de que os deslocamentos populacionais sempre existiram, e derivam de uma tendência da natureza humana, deve ser examinado com cautela, para não perdermos de vista a dimensão histórica e social do fenômeno. Buscar uma explicação na natureza humana e enfatizar as continuidades a-históricas, além de deixar escapar o que de particular as migrações têm em diferentes contextos, significa despolitizar o debate, naturalizar o impulso à migração e minimizar as causas que levam contingentes humanos a abandonar seus locais de origem e reconstruir a vida em outros destinos. Talvez o melhor caminho, considerando que os fenômenos migratórios atravessam os tempos, seja historiar as especificidades de cada época e as circunstâncias locais, regionais e internacionais, que empurram as pessoas para além das suas fronteiras de origem. Ou seja, na mão contrária da tendência de ver as migrações como algo decorrente da essência humana, apostemos na descontinuidade histórica. Ainda que, na maioria das vezes, o sonho de melhorar de vida seja o impulso decisivo que subjaz ao desejo de migrar, os sentidos que se atribuem à noção de mudar de vida, em diferentes momentos, são muito diversas, e as circunstâncias históricas e sociais são radicalmente distintas.

Exercitemos a historicidade das migrações tomando três exemplos de grupos de pessoas que, em momentos bastante distintos, se dermos crédito às reconstruções históricas e mitológicas da trajetória humana, decidiram migrar:

- De Harã à Canaã: Abraão, depois de ouvir o seu deus (Javé) e selar com ele uma aliança, deixou Harã para trás e partiu com sua família em busca da terra prometida. Era um enviado de deus. O deslocamento era amparado pela providência divina. As narrativas proféticas no velho testamento eram, em boa parte, definidas pelos percursos migratórios. Abraão não seguia um impulso essencial da natureza humana. Seguia a ordem de um deus.

Um parêntese: grande parte dos refugiados palestinos, expulsos de suas terras por aqueles que se julgam herdeiros da aliança que Javé fez (?) com Abraão, engrossam as fileiras do que chamamos hoje de migrantes ou deslocados globais.

- Da Prússia para o Brasil: Alemães de várias regiões da Prússia vieram para o Brasil no século XIX, em busca daquilo que o governo brasileiro prometia nas propagandas para atrair imigrantes. Vinham em busca de terras, da terra prometida, da nova Canaã. Um folheto que circulava em Hamburgo em meados do século XIX nos dá o tom dessas propagandas e do que era oferecido ao trabalhador que se dispusesse a abandonar sua pátria e se deslocar para o Brasil: “Iniciamos agora a viagem para terras brasileiras, esteja conosco Senhor, e guie sim, faça Tu o nosso caminho, esteja conosco no mar, com Tua mão paterna, que chegaremos bem felizes na terra brasileira. Deus falou para Abraão: abandona a tua terra, e parte para outra que minha mão forte te indicar.”

Como Abraão, os migrantes (históricos) dirigiam-se a uma “terra prometida” guiados pela mão certeira de deus através dos perigos do mar.


- Da África e da Ásia para a Europa: Africanos e asiáticos, de diferentes nacionalidades, que de acordo com certa teologia não descendem do patriarca mítico, tentam chegar à Europa viajando clandestina e perigosamente dentro de containers. Em meados de 2016 um grupo 19 de etíopes foi encontrado morto dentro de um container que ia para a Zâmbia. Pareciam esquecidos pelos deuses e absolutamente desamparados. Em 2014, 35 indianos foram resgatados em péssimas condições dentro de um container na Inglaterra. Os exemplos se multiplicam facilmente.

Uns deixavam suas terras e migravam conduzidos pela mão de deus. Migrar era um ato de fé. Outros atravessavam o mar a bordo de um navio em busca das terras prometidas. Migrar era a oportunidade de mudar de vida. Os menos afortunados, e indesejáveis, se amontoam claustrofobicamente no interior de um container. Migrar é uma urgência. E não há nenhuma garantia.

Deixando de lado o caso de Abraão, que atendeu ao chamado de Javé, e trocou a região de origem pela complicadíssima Canaã, concentremo-nos nos alemães e nos africanos e asiáticos. O que levou milhares de alemães a migrar para o Brasil no século XIX e o que leva uma família de etíopes a deixar seu país e tentar entrar no Reino Unido hoje, mesmo considerando que ambas as famílias desejassem melhorar de vida, são coisas muito diferentes. O contexto internacional e as adversidades internas enfrentadas pelas famílias são absolutamente distintos, como também são as expectativas que as movem – incentivos externos, valores, etc. O sentido mesmo de migração, no século XIX e em boa parte do século XX, era diferente dos sentidos que hoje atribuímos ao fenômeno, sobretudo se considerarmos o caráter global e multidirecional dos deslocamentos humanos.

A vinda dos alemães foi planejada pelo estado receptor e atendeu as demandas do governo imperial e das províncias. O estado brasileiro viu na figura do imigrante um meio para a realização dos seus objetivos: os interesses em torno da substituição dos escravos nas lavouras de café, os interesses fundiários de valorização da terra e produção de gêneros alimentícios para o abastecimento das cidades e a política de ocupação territorial no sul do Brasil. Havia, portanto, um projeto nacional idealizado em torno da figura do imigrante. Uma intensa propaganda foi posta em ação, no continente de origem, para motiva-los a migrar e incentivos foram oferecidos para atraí-los. De maneira complementar às iniciativas públicas, as Companhias e agentes de colonização buscavam atrair migrantes na Europa, valendo-se também da propaganda, e instalá-los em colônias, ou recrutá-los nas áreas de colonização mais antigas e instalá-los nas áreas novas.

Os alemães foram convidados a migrar. Eram, por isso mesmo, bem-vindos. Vinham para preencher um suposto “vazio demográfico” e desenvolver a pequena propriedade produtiva. Além de substituir os escravos, nas regiões onde está mão-de-obra era fundamental, a vinda dos migrantes europeus representava, por um lado, a ressignificação do conceito de trabalho, associado até então à escravidão, e um salto civilizacional para o país. As condições na Europa que levavam aos deslocamentos populacionais para as Américas combinavam fatores sociais, econômicos e políticos. A região que posteriormente se tornaria a Alemanha era constituída por um conjunto de pequenos Estados empobrecidos e conturbados por uma série de guerras e revoluções, o que levava a uma situação econômica e política bastante instável e precária.


Os alemães viajavam de navio e sua chegada ao Brasil era cercada de expectativas positivas por parte do governo brasileiro. Vinham em busca de terras e de melhores oportunidades. Além de se tornarem proprietários, nas províncias do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, havia, por trás do projeto imigrantista, o ideal de branqueamento.  Os alemães eram a salvação da lavoura, com o perdão pelo trocadilho. É claro que as coisas não eram fáceis, a viagem poderia ser bastante complicada e a chegada num país distante e desconhecido (como de fato se revelou em várias situações) poderia não ser nada daquilo que se imaginava.

Bem diferente é a situação dos africanos e asiáticos que tentam entrar ilegalmente na Europa. Viajam em situações dramáticas, e são obrigados a enfrentar travessias, como a do mar mediterrâneo, perigosíssimas. Alguns grupos se lançam na jornada migratória clandestinamente em containers. Viajam dias e dias confinados, sem ver a luz do dia, e ficam expostos à fome, a desidratações graves e à hipotermia. Por isso os elevados índices de mortalidade para quem se arrisca nestas jornadas sinistras. Os containers de lixo que saem diariamente de Ceuta para Cádiz, por exemplo, são um esconderijo “perfeito”, e perigosíssimo, para os africanos subsaarianos que desejam atravessar o mediterrâneo para tentar o sonho europeu. Além do mau cheiro, que pode provocar asfixia, os migrantes enfrentam o risco de serem esmagados por montanhas de lixo e de serem triturados no momento de compactação dos resíduos.

A trajetória da viagem deste perfil de migrante é incerta e a chegada no local de destino, se isso de fato acontecer, pode virar um pesadelo. Não são bem-vindos, não foram convidados, são vistos como “cidadãos” de segunda classe, e, embora ocupem empregos importantes e aqueçam as economias dos países de destino, a sua presença desperta o ódio de grupos extremistas e intolerantes. Se não forem deportados, viverão em situação de ilegalidade sabe se lá por quanto tempo.

Em geral, estes migrantes estão fugindo da fome, dos conflitos regionais, que assolam o Oriente Médio e regiões da África nos últimos anos, e da ação de grupos extremistas. As imagens de milhares de pessoas deixando seus lugares de origem, a pé, apenas com a roupa do corpo, não encontram paralelo na história das migrações. São migrações forçadas, que obedecem ao imperativo da sobrevivência.


Por trás destas tentativas desesperadas de entrar na Europa, principalmente no Reino Unido, identifica-se, quase sempre, a ação do crime organizado internacional que atua no tráfico e contrabando de seres humanos, com promessas de trabalho inexistente. Apolítica restritiva dos estados e ação dos contrabandistas criam um cenário pavoroso para as migrações contemporâneas. A presença de crianças nos containers deixa tudo ainda mais revoltante.

A comparação dos deslocamentos de alemães para o Brasil e de africanos e asiáticos para a Europa nos permite tecer considerações sobre dois fluxos migratórios diferentes que encerram um conjunto de questões específico de cada época. O ambiente intelectual, e os temas em destaque nos meios científicos e sociais, por exemplo, são muito sugestivos do imaginário social que cerca as migrações. Se no século XXI as migrações estão envolvidas pelos debates em torno dos direitos humanos e pela consolidação do regime internacional dos refugiados, no século XIX as teorias científicas sobre as raças humanas, que as hierarquizava segundo valores e critérios europeus, e a filosofia do progresso, de inspiração positivista, davam a tônica e, em larga medida, tangenciavam os debates e os projetos sobre as migrações.

Nestas circunstâncias, parece evidente que os movimentos migratórios tenham sentidos e significados diferentes, ainda que as pessoas em deslocamento buscassem melhores condições de vida do que aqueles que tinham no país de origem. Sem esta percepção histórica das enormes diferenças, mesmo considerando certas semelhanças, somos levados a crer que as migrações respondem mais a um impulso da natureza humana, que os impele ao deslocamento, do que aos estímulos e constrangimentos políticos, sociais, econômicos e ambientais. As migrações são fenômenos históricos polissêmicos que traduzem as particularidades, as necessidades de cada época, tanto dos países de imigração quanto dos países de emigração.

No século XIX enfrentar a longa travessia do atlântico, cercada de mitos e dificuldades, na terceira classe do navio, era o grande obstáculo para os migrantes europeus que decidiam tentar a sorte nas Américas.


No século XXI o container, estrutura que aprisiona/esconde humilhantemente as populações indesejáveis da África e do Oriente Médio e amontoa seres humanos animalescamente, talvez seja uma das melhores imagens para capturar o lado sombrio e grotesco das migrações contemporâneas. O container é um túmulo transfronteiriço, para pessoas enterradas vivas, que flutua vergonhosamente por águas internacionais, sob as políticas restritivas e seletivas de Estados coveiros e o silêncio e a indiferença globais.


Um comentário:

  1. Caro Paulo, havia lido esse texto no começo do ano, no ato da postagem. Retornei a essa leitura para compreender melhor a responsabilidade de escrever acerca do tema das migrações e, sobretudo, para identificar elementos tão importantes para não cair, como bem citasse, em essencialismos. O texto ajudou a compreender o papel do Estado em diferentes momentos migratórios. Forte abraço

    ResponderExcluir