CAMPOS
PARA REEDUCAÇÃO DE HOMOSSEXUAIS E CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO EM CUBA. Ou:
Revolução é coisa para macho.
“Um
homossexual não pode ser um revolucionário”
(Fidel
Castro)
“Eu
não gosto de Castro insultando membros do meu sexo”.
(Allen
Ginsberg).
Nota
de esclarecimento: Este post não é um ataque indiscriminado às esquerdas e não faz parte da onda de conservadorismo reacionário (bolsonarista)
que tomou conta do país nos últimos anos. É um posicionamento do autor em
relação ao regime castrista e às narrativas heroicas sobre a revolução cubana.
Nas
décadas de 1960 e 1970 os construtores do socialismo cubano, entre tantas
dúvidas (será que eles tinham mesmo dúvidas?), tinham uma certeza: o “novo
homem” não seria homossexual. Não haveria lugar para eles no socialismo cubano.
Deveriam ser reeducados para poder fazer parte do éden social que se anunciava.
Quantas atrocidades praticadas em nome da “reeducação” sexual visando a
construção do ideal guevarista do “homem novo”!! O socialismo castrista já
nasceu totalitário. Fuzilou e eliminou a diferença e tentou corrigir a força a “patologia
burguesa” da homossexualidade. Fidel Castro pediu desculpas e se retratou
publicamente em 2010 pelos maus tratos que os homossexuais sofreram naqueles
tempos. Não vi sinceridade no gesto do ditador. A frieza calculista do homem é
de congelar cerveja! Pareceu-me oportunismo histórico de alguém que sabe se
adaptar as mudanças para permanecer o mesmo. Não é a toa que ele manda em Cuba
há cinco décadas. Acho que o efeito do filme Morango e Chocolate, dirigido por
Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, sucesso no mundo todo, que mostra a
vida difícil, a discriminação por parte dos comunistas e os constrangimentos
sofridos por um gay em Havana, desconcertou Fidel. O filme explorou
inteligentemente a amizade de um jovem comunista (que no começo queria
denunciar o “maricon” por ser um anti-revolucionário) com um gay, que no
passado lutou pela revolução alfabetizando camponeses, mas que nunca encontrou
o seu lugar no regime castrista. Um personagem no filme, que sustenta não haver
compatibilidade entre homossexualismo e revolução, diz sem meias palavras: “a
revolução não entra pelo cu”. Produzido em 1993, o filme foi exibido
posteriormente pela televisão cubana. Morango e Chocolate colocou pela primeira
vez publicamente o problema da discriminação sofrida peles homossexuais na cuba
socialista. Antes que algum incauto se apresse para acusar o filme de ser uma
encomenda da Cia para desestabilizar o regime, Morango e Chocolate é uma
declaração de amor a Cuba e uma defesa, não ortodoxa, do socialismo e da
revolução. Mas é, antes de tudo, um grito por dignidade, respeito e democracia.
Socialismo sim, diz o filme, mas com democracia. O comovente abraço do jovem
comunista com o gay, mesmo que com a janela do apartamento fechada, é a
metáfora do socialismo democrático que o filme defende. Se Cuba quer ser
respeitada na ordem internacional por aquilo que é, tem que começar a fazer o
dever de casa.
Dez
anos depois de Morango e Chocolate iniciaram os movimentos organizados em Cuba
em favor dos direitos dos gays. Matreiro, o ditador se adiantou e simulou
humildade ao assumir toda a responsabilidade pelos “erros” cometidos no passado.
Os bajuladores, claro, aplaudiram o gesto nobre e visionário do comandante.
O
que mais me espanta nisso tudo é o silêncio dos estudiosos e especialistas em
revolução cubana – sociólogos historiadores, jornalistas – a respeito da
brutalidade e a intolerância do regime em relação aos homossexuais. Eles
escrevem sobre a revolução como se as atrocidades não tivessem acontecido. Sequer uma nota de rodapé para lembrar que as
perseguições e a violência fizeram parte da construção do socialismo. Cuba é
mesmo um tabu.
Vamos
mexer com o tabu, quebrar este silêncio medonho e fazer algum barulho? Utilizei
dados do governo cubano, informações e relatórios de ONGs cubanas e de
organizações internacionais, reportagens de revistas independentes e alguma
bibliografia não alinhada (John Lee Anderson, Allen Young, Allen Ginsberg,
Emilio Bejel, Guillermo Cabrera).
Acredito
que uma das funções fundamentais da história – minha área de formação - é
auxiliar as lutas do presente por direitos civis e por mais espaços
de liberdade. Desmistificar o passado,
ou a maneira como ele foi construído, é uma das formas que temos para desamarrar
o presente de certas visões deformadas e idealizadas, apresentadas como
progressistas. É a nossa contribuição para construirmos um mundo menos
intolerante, mais generoso e justo. Um mundo mais bonito. Fazendo um trocadilho
com Peter Burke (“A função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela
quer esquecer”), a função do historiador é lembrar aquilo que querem nos fazer
esquecer.
Tenho
insistido que o culto à revolução, ao regime cubano e aos seus “heróis” é um
erro. A desinformação é grande e o romantismo produz cegueiras duradouras. Por
isso escrevo com certa frequência sobre o assunto. Não podemos silenciar sobre
os abusos e crimes cometidos em nome da construção de uma sociedade
supostamente mais justa. Não podemos silenciar diante de um culto cego, e desinformado,
que se construiu em torno de figuras violentas e autoritárias, que cometeram
crimes medonhos e criaram um mundo mais violento e discriminatório do que aquele
que havia antes de 1959. As tais conquistas da revolução não podem ser usadas eternamente
para justificar as atrocidades praticadas. Se fizermos isso, tudo então é
passível de uma justificativa. Como denunciar as injustiças e a violência do
imperialismo e das guerras do mundo capitalista se silenciamos e nos curvamos diante
das barbaridades cometidas em nome do socialismo?
As
narrativas históricas sobre a revolução cubana, como sabemos, são bastante
seletivas. Muito pouco se sabe a respeito do que os estudiosos do assunto
resolveram não escrever. Leitores e estudantes, não especialistas, sabem apenas
o que os especialistas acreditam ser conveniente saber sobre a revolução. A
cadeia de acontecimentos – processo para alguns - que constitui o fenômeno
social conhecido como revolução cubana foi concebida para demonstrar a
urgência, a legitimidade e a inevitabilidade da derrubada do regime de Batista
e, posteriormente, da construção do socialismo. Uma cadeia eletiva de
acontecimentos que, organizados sob uma ótica triunfalista e messiânica, educou,
para não dizer moldou, o olhar de pelo menos três gerações nos últimos sessenta
anos. Os acontecimentos descartados como não importantes para entender o dito
“processo revolucionário”, como as perseguições aos homossexuais, foram
lançados para os domínios do esquecimento. É o reverso da memória. Execuções
que espantam pela frieza e pelo total descaso com a vida humana foram vistas
como necessárias e explicadas pelo contexto violento em que ocorreram. É o caso
de Eutimio Guerra, um camponês que servia de guia para os guerrilheiros em
Sierra Maestra. Foi acusado de vazar informações para o exército de Batista e
condenado sumariamente à morte. Até a década de 1990 não se sabia ao certo a
identidade do executor. John Lee Anderson, autor de uma densa biografia sobre
Che Guevara, obteve em 1997 com a viúva de Che os originas do seu diário.
Descobriu-se não só o autor do disparo que matou Etimio como o registro
espantosamente frio da execução. Che escreveu no diário que chovia muito na
Sierra. Fidel autorizara a execução, mas ninguém se dispunha a cumprir a determinação.
Che tomou a iniciativa e disparou contra a cabeça do camponês. Eis a narrativa:
“Era uma situação
incômoda para as pessoas e para (Eutimio), de modo que acabei com o problema
dando-lhe um tiro com uma pistola calibre 32 no lado direito do crânio, com o
orifício de saída no temporal direito. Ele arquejou um pouco e estava morto. Ao
tratar de retirar seus pertences, não consegui soltar o relógio, que estava
preso ao cinto por uma corrente e então ele (ainda Eutimio) me disse, numa voz
firme, destituída de medo: 'Arranque-a fora, garoto, que diferença faz...'.
Assim fiz, e seus bens agora me pertenciam. Dormimos mal, molhados, e eu com um
pouco de asma.”
Che, àquela
altura, era juiz e executor. O axioma da revolução e as certezas teóricas lhe
conferiam poderes olímpicos e o direito sobre a vida e a morte. John Lee
Anderson captou o espírito de justiceiro e de inquisidor que se apossara do
egocêntrico e autoritário Che Guevara: “Havia um nítido zelo calvinista na
perseguição movida por ele aos que se desviavam do "caminho correto".
Che abraçara fervorosamente la Revolución como corporificação definitiva das
lições da História e como o caminho correto para o futuro. Agora, convencido de
que estava certo, olhava em volta com os olhos implacáveis de um inquisidor em
busca daqueles que poderiam pôr em perigo a sobrevivência da Revolução.”
Esta é a justiça
revolucionária em ação, meus amigos. Julgando ter encontrado o caminho da
verdade na terra o herói revolucionário lançava um olhar de juízo final sobre tudo
e sobre todos. A morte de Eutimio ocorreu em 1957. Era só o prenúncio do terror
que se anunciava. Outras dezenas de execuções se sucederiam até 1958. Dava para
imaginar o que estes sujeitos fariam com o poder político concentrado em suas
mãos. Ah Paulo, mas não podemos julgar desta maneira as ações de Che Guevara.
Claro, só ele, com sua visão infalível da história, podia julgar, condenar e
executar. A nós restam apenas os exercícios da relativização e da
contextualização! Nada disso. Não sei se “julgar” é a melhor palavra (A
história não é um tribunal. Mas eu também não sou apenas historiador.), mas nós
temos o dever de questionarmos as ações de figuras como a de Che. Há décadas
ergueu-se um culto quase religioso em torno de seu legado (duvidoso) e da sua
trajetória (idealizada). Vamos engolir a receita pronta do guerrilheiro
charmoso, desapegado dos bens materiais, com apurado senso de justiça, amante
da paz e defensor das liberdades? Se “julgamos” Henry Kissinger e Margareth
Tatcher, porque pouparíamos Che e Fidel Castro? A frieza e o autoritarismo de
Tatcher e a egolatria de Kissinger encontraram em Che Guevara a síntese
perfeita. Com um agravante, o herói guerrilheiro andava armado e não sentia
remorso.
Mas voltemos ao
recorte seletivo do passado que construiu aquilo que nos acostumamos, sem
pensar muito, a chamar de revolução cubana. O esquema narrativo, canônico eu
diria, consagrado pelos textos fundantes, e depois fartamente repetidos nos
livros e nas salas de aula, é mais ou menos o seguinte:
1. Uma
descrição bastante negativa do regime de Fulgêncio Batista . A Cuba da década
de 1950 é apresentada como o quintal dos Estados Unidos, ou um “bordel dos
americanos”, com cassinos, prostitutas e uma população imensa de cubanos
miseráveis. No entanto, os dados são bastante questionáveis. As obras de Jeannine Verdes-Leroux (La Lune Et Le Caudillo) e
do historiador Peter Moruzzi (Havana before Castro), nos apresentam um quadro
bastante diferente da década de 1950 em Cuba.
Depois
de pintar estrategicamente um quadro tão depreciativo da sociedade cubana
anterior a 1959, a narrativa heroica da luta revolucionária e a tomada épica do
poder coroam a escalada revolucionária. Os exageros são evidentes e os
silêncios comprometedores.
2.
A heroica tomado do poder e a entrada
triunfal em Havana.
3.
A consolidação da revolução.
4. A
construção do socialismo, enfatizando apenas os aspectos positivos e que
mostram a reorientação econômica e social no sentido da socialização dos meios
de produção.
As
narrativas legendárias seguem este modelo básico, linear e heroico, que
seleciona numa constelação de acontecimentos aqueles que, segundo a versão
oficial, melhor expressariam a “verdade histórica”. (Sim, “verdade histórica”,
pois os defensores do regime cubano dividem a literatura sobre a revolução
entre a verdadeira literatura e a mentirosa. A verdadeira segue o roteiro acima
e ergue incansáveis homenagens aos “revolucionários”. A mentirosa, como sempre,
é financiada pela elite cubana de Miami e visa desestabilizar o regime). Este
recorte seletivo do passado encobriu, propositalmente ou não, acontecimentos
menos heroicos que revelam a face brutal da construção do regime castrista. Vou
desenterrar um episódio que marcou as décadas de 1960 e 1970, sobre o qual a
historiografia comprometida com o socialismo cubano silenciou: os campos de
reeducação para homossexuais (não exclusivamente para gays). Parece-me
inadiável interrogar o passado neste momento em que o tema da homossexualidade
ocupa o centro dos debates internacionais. Se hoje o tema esta na agenda dos
países ocidentais e constitui uma espécie de vanguarda dos direitos sociais, é
bom lembrar que no passado recente, e mesmo entre os movimentos e intelectuais
de esquerda, o tema era proscrito.
Os
percalços dos gays na Cuba de Fidel começaram já em 1959. Logo que derrubou o
governo Batista Fidel declarou que “um homossexual não pode
ser um revolucionário”. Estava dado o sinal para uma série de abusos que
seriam cometidos nas décadas seguintes. Num discurso na Universidade de Havana
em 1963, Fidel atacava as crianças preguiçosas da burguesia que, efeminados,
imitavam Elvis Presley. No mesmo discurso referira-se aos homossexuais como “uma
arvore que tinha crescido torta”. Dali para frente o tirano tomaria para si a
missão revolucionária de endireitar as árvores que haviam nascido tortas nos
bosques promíscuos do capitalismo. Na sua versão do socialismo não haveria lugar
para deformações burguesas.
Em
1965 Che e Fidel criaram as “Unidades Militares de Ajuda à Produção” (Umaps).
Eram acampamentos de trabalho agrícola isolados por cercas de arame farpado de
quatro metros de altura. Nestes verdadeiros campos de concentração homossexuais
e “marginais” em geral realizavam trabalhos forçados nos canaviais, em regimes
de até 16 horas diárias. Foram enviados para estes campos escritores e artistas
como José Lezama Lima, Virgílio Piñera, Gallagas, Anton Arrulat e Ana Maria
Simo. A ideia de criar campos de trabalho forçado, segundo Castañeda e Régis
Debray, foi de Che Guevara. Um destes campos chamava-se Uvero Quemado,
localizado na Península de Guanahacabibes. Era,
segundo John Lee Anderson, "um campo de
reabilitação na extremidade ocidental de Cuba, uma zona isolada, pedregosa e
infernalmente quente (...) Ali tinham que se submeter a períodos de trabalho
físico impessoal, a fim de se redimirem antes de retornarem ao trabalho. As
sanções deviam ser aceitas voluntariamente e podiam durar de um mês a um ano,
dependendo da falta, geralmente de tipo ético.”
Castañeda
considerou estes campos “um dos mais odiosos precedentes da Revolução Cubana”.
E Reinaldo Arenas, escritor cubano e gay, escreveu que imediatamente a tomada
do poder “iniciou-se a perseguição, com a construção de campos de concentração
(…) o ato sexual tornou-se um tabu enquanto era proclamado o ‘novo homem’ e
exaltada a masculinidade”. Estes campos de trabalho forçado eram verdadeiros
centros de saneamento e higienização social. Todos os que não afinavam no
diapasão autoritário do “homem novo”, modelo de perfeição viril e obediência
aos princípios revolucionários, eram encarcerados. Os “dirigentes supremos”
(era assim que Che se referia à elite que comandava a revolução) entendiam que
nestes campos a “escória” seria desviada dos vícios e dos interesses
individuais e se dedicariam ao trabalho produtivo e ao fuzil. Guillermo Cabrera,
no livro “Mea Cuba”, relembra que havia uma ala especial da polícia chamada de
“Esquadrão da Escória” que fazia, à luz do dia, o trabalho de limpeza da área
velha da cidade, recolhendo os suspeitos.
Os
campos de concentração cubanos, como o de Guanahacabiles (o primeiro a ser
criado), tinham a pretensão de reeducar por meio do trabalho. Para lá eram
enviadas as pessoas que a revolução julgava imorais. Segundo o próprio Che, num
discursos no Ministério da Indústria em 1962, para “Guanahacabiles mandamos
aqueles que não devem ser presos, aqueles que cometeram faltas contra a moral
revolucionária de maior ou menor grau (...)”. Este campo serviu de modelo para
a criação das Umaps, que chegaram a concentrar cerca de trinta mil jovens em
uma década. O poeta cubano José Mario contava que no campo onde estava
internado para reeducação, por ser gay, podiam se ler cartazes com os slogans
“o trabalho os fará livres” e “o trabalho os fará homens”.
A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que na época também acompanhava e
denunciava as ditaduras de direita na América latina) denunciou este abuso. Num
relatório de 1967 podemos ler que:
“Os
jovens são recrutados à força por simples disposição da polícia, sem que se
faça nenhum julgamento nem seja permitido o direito de defesa. Logo depois de
presos são enviados alguma granja
estatal para serem incorporados na
Unidade Militar de Ajuda à Produção. Em muitos casos os familiares só são
notificados semanas ou meses depois da detenção.”
Gays
que apoiavam o regime também foram perseguidos. O escritor Virgilio Piñera, que
sofrera perseguição e chegara a ser exilado durante a ditadura Batista, foi
preso na “Noite dos três Ps”. Guillermo Cabrera, amigo de Virgilio, narrou o
acontecido no livro “Mea Cuba”. Contou também um episódio posterior durante uma
viagem do Che a Argélia. Ao se deparar na Biblioteca da Embaixada Cubana em
Argel com a obra Teatro Completo de Virgilio
Piñera, Che teria lançado o livro contra
a parede, dizendo: “como vocês têm na nossa embaixada o livro de um ‘pajaro
maricon’! (sinônimo cubano para veado).” Emilio Bejel, escritor cubano,
sustentou no livro “Gay Cuban Nation” que Che era “um dos mais convictos homofóbicos
do período.” E um intelectual comunista chamado Samuel Feijóo, imbuído do ideal
do “homem novo”, chegou a dizer que o homossexualismo em Cuba estava com dos
dias contados. A fala oracular de Fidel anunciando que os gays não poderiam ser
revolucionários foi levada bastante a sério. A revolução faria a castração simbólica
dos gays.
Em
1971 o Primeiro Congresso Nacional de Educação e Cultura de Cuba anunciou que
“os desvios homossexuais representam uma patologia anti-social, não admitindo
de forma alguma suas manifestações, nem sua propagação, estabelecendo como
medidas preventivas o afastamento de reconhecidos homossexuais artistas e
intelectuais do convívio com a juventude, impedindo gays, lésbicas e travestis
de representarem artisticamente Cuba em festivais no exterior.” Uma das
deliberações do Congresso proibia os gays de ocupar cargos públicos que
colocassem em risco a juventude. Foram então estabelecidas penas severas para
“depravados reincidentes e elementos antissociais incorrigíveis”. A esquerda,
hábil em denunciar o “apartheid” sul africano, nunca se manifestou, a não ser
em casos de dissidência, sobre esta forma estúpida de segregação social.
Logo
depois de encerrado o famoso caso Padilla, e do encerramento do I Congresso
Nacional de Educação e Cultura, teve inicio um processo repressivo de cassação
generalizada chamado de “Parametrajen”. Artistas, intelectuais e cidadãos que não
seguissem os parâmetros morais e ideológicos definidos pelo Congresso e não se
adequassem as normas estéticas e aos comportamentos exigidos perdiam o direito
de exercer suas funções e recebiam severas punições. Entraram em cena os
julgamentos armados, as delações e o incentivo as confissões públicas de culpa
seguida de arrependimento. Era uma teatralização fascista para depurar o meio
artístico e social e afastar do convívio social qualquer pessoa cuja postura
fosse considerada duvidosa. Os gays foram alvo das políticas de “parametrajen” e
sofreram graves humilhações.
A
perseguição aos gays não foi um incidente ou um mal entendido ocasionado pelos
turbulentos anos iniciais do socialismo, como Fidel tentou fazer crer. Foi uma
caçada sistemática e oficial iniciada em 1957 e que se projetou nas décadas
seguintes. Em 1980, de acordo com dados oficiais do governo cubano, mil e
setecentos “homossexuais incorrigíveis” de Cuba foram deportados para os Estados
Unidos. Algumas organizações ligadas aos direitos humanos apontam para cifras
ainda maiores, sugerindo que mais de dez mil gays e travestis foram expulsos de
Cuba pelo regime. Logo que explodiu a crise da Aids, Cuba foi denunciada por
organizações internacionais pela criação de rigorosas prisões para
“sidosos” (doentes de aids), gays na sua maioria. Pessoas infectadas pelo HIV
eram mandadas para aqueles antigos campos de trabalho forçado.
O
poeta beat Allen Ginsberg também sentiu o peso do moralismo revolucionário. Gay,
adepto do comunismo e admirador de Che Guevara, foi a Cuba conhecer de perto a
experiência socialista. Descobriu que o ideal que admirava à distância tinha,
de perto, aspecto monstruoso. Foi expulso do país por reforçar rumores de que o
irmão de Fidel, Raúl Castro, era um gay enrustido. Escreveria mais tarde um
poema chamado “Capitol Air”, com uma frase-denúncia da perseguição aos gays em Cuba,
musicada pelo The Clash em 1982.
Allen
Young, jornalista e ativista britânico canadense, tornou-se “persona non grata”
em Cuba. Young era ativista anti-guerra do Vietnã e participava de uma série de
movimentos de cunho libertadores. Foi a Cuba em 1969, participou decisivamente da
organização da “brigada venceremos”, uma organização internacional fundada em
1969 em solidariedade ao regime cubano. Mas nada como o contato com a
realidade. Logo, logo Young se decepcionaria e se desencantaria com o regime de
Fidel por conta da falta de liberdades e, sobretudo, pelas políticas
anti-homossexuais do governo. Allen Young rompeu com a esquerda defensora da
revolução cubana e escreveu o livro “Gays Under the Cuban Revolution” (Obrigatório para quem quer conhecer o
lado perverso da revolução cubana). O jornalista ficou conhecido no Brasil
quando se recusou a cumprimentar o ditador Castelo Branco.
Em
2010, numa entrevista ao periódico mexicano La Jornada, Fidel reconheceu que o
regime foi injusto com os homossexuais discriminando-os: “Tínhamos então tantos
problemas de vida ou morte que não prestamos a devida atenção ao assunto.
Cometemos grandes injustiças! O maior responsável fui eu”. Como procurei
demonstrar, a perseguição aos gays não foi um problema lá do começo da revolução.
Foi uma pratica recorrente do regime cubano desde a sua instalação até o
presente. Em 2010, enquanto Fidel assumia a culpa pelos erros do passado, a
revista espanhola “Interviú”, que investigava a condição dos gays em Cuba,
revelava que mais de setecentas pessoas estavam presas por conta de sua
orientação sexual. Alguns eram multados por serem gays e outros eram presos
preventivamente. A Fundação “LGBT Reinaldo Arenas” informou que quatro mil gays
foram presos ou multados em Havana em 2007 e três mil e quinhentos em 2008. O
presidente da Fundação, Aliomar Janjaque, informou que o número de prisões em
2010 foram maiores que nos anos anteriores e denunciou à revista espanhola que
a prisão preventiva tem sido constante nos últimos anos. "Em janeiro, seis
jovens gays foram condenados a três anos de prisão por que representavam um
perigo pré-delito".
É
a sofisticação do regime: a lógica da suspeição. O sujeito é preso por
suspeita. Se andar na rua com trejeitos efeminados...cadeia. É o panóptico anti-gay
socialista. Os presos, segundo a Fundação, são submetidos a "medidas de
recuperação terapêutica" e “vigilância” por parte dos órgãos da “Polícia
Nacional Revolucionária”. É, Senhor Fidel, a discriminação aos gays não foi um
problema do começo da revolução. O regime cubano pratica a discriminação
ideológica contra os gays. Parece ser da natureza do regime. O sentimento
anti-gay entrou no DNA revolucionário em 1959 e se projetou nas décadas
seguintes como herança genética (para lembrar/brincar com a tese do Paul
Kennedy).
Mariela
Castro, filha do ditador Raúl Castro e diretora do Centro Nacional de Educação
Sexual, vêm se projetando internacionalmente pela luta em defesa da diversidade
sexual. Faz parte da sofisticação do regime.
Mariela
tentou amenizar, em nome da “verdade histórica”, as críticas ao regime de
trabalhos forçados dos anos 60 dizendo que é exagero falar em campos de
concentração para gays. Numa entrevista publicada no Opera Mundi, disse que: “Primeiro,
convém precisar que as Umap afetavam todos os homens em idade de entrar no
serviço militar, não só os homossexuais. Alguns, inclusive, falaram de campos
de concentração para homossexuais. Não creio que seja necessário exagerar, é
preciso ser fiel à verdade histórica. As Umap afetaram a todos, menos aos que
podia justificar [a não integração] com um emprego estável. Os estudantes
tinham que colocar entre parênteses a carreira universitária para fazer o
serviço militar.” E acrescentou, tentando justificar as Umaps: “Como todos
deveriam participar na defesa do país, grupos marginais, como os hippies, por
exemplo, e os filhos da burguesia que haviam se acostumado com uma vida de ócio
e não trabalhavam, pois tinham recursos, tiveram que se integrar às Umap.
Grupos que não se sentiam comprometidos com o processo de transformação social
iniciado em 1959 e preferiam um papel de observador tinham que se integrar e
trabalhar nas fábricas ou na agricultura.”
É
claro que os campos de trabalho forçado não eram só para gays. Eram também para
os gays. Os campos recebiam gays, católicos, testemunhas de Jeová, alcoólatras
e pais de santo do candomblé. Os “desajustados” eram presos e enviados para
estes infernos da ditadura da coletividade para serem reeducados. No caso da
homossexualidade, a justiça e a moral revolucionária consideravam isso um crime, uma
patologia, um desajuste, uma anomalia burguesa. Donde se deduz que o “novo
homem”, idealizado pelo teórico e justiceiro Che Guevara, não seria gay, pois
este era um vicio burguês que a revolução, com a ajuda dos campos de
reeducação, estava prestes a eliminar. Os outros inconvenientes eliminava-se a
bala mesmo.
Aliomar Janjaque considera
Mariela uma farsa. E eu o acompanho, em parte. Ela vende para o exterior,
segundo Aliomar, uma imagem falsa de uma Cuba simpatizante com a causa gay: “Muitas
pessoas são enganadas pela propaganda gay friendly de Mariela Castro. Mas, a
revolução e o governo cubano ainda são homofóbicos e os gays cubanos continuam
a serem perseguidos.”
Mariela
Castro é a voz da oficialidade. É a nova versão do regime, que assume
internacionalmente um discurso de mudança e de abertura, que a mídia castrista
mundo a fora compra sem questionar, mas que internamente mantém políticas de
perseguição e discriminação. Curioso. A filha de Raúl Castro é gay, num país em
que os gays são constrangidos, e ganha de presente a direção do Centro Nacional
de Educação Sexual. Gays pertencentes ao clã revolucionário (como o próprio
Raul Castro, segundo Allen Ginsberg), não são aberrações burguesas? Hummmm. Na
medida em que Mariela se coloca como defensora da causa LGBT em Cuba, com a
autoridade que o cargo lhe confere, ela deslegitima o ativismo gay independente
e a ação de grupos como a Fundação Reinaldo Arenas. É que em Cuba nada pode
acontecer sem a tutela do estado. Por outro lado, fortalece a causa oficial da
defesa dos direitos LGBT. O regime persegue, discrimina e, agora, defende os
direitos dos gays.
Na
tentativa de justificar os crimes cometidos contra os gays na revolução Mariela
argumentou que naquele tempo “a homofobia era a regra. O que se considerava
anormal era o respeito a quem havia escolhido uma orientação sexual diferente.
Mas, repito, não era algo específico de Cuba. A homofobia institucionalizada
dos primeiros anos da Revolução refletia essa realidade e estava em consonância
com a cultura da época. Zombar dos homossexuais era algo normal, assim como
depreciá-los ou denegri-los. Era normal discriminá-los no mercado de trabalho,
em sua vida profissional, e esse era o aspecto mais grave.”
O
argumento é frágil e precariamente relativista. O preconceito era disseminado, não
há dúvidas, e ainda é, mas em quantos países os gays foram presos, mal tratados
e obrigados a permanecer em campos com arames farpados trabalhando até 16 horas
por dia? Em Cuba, Sra. Mariela, a perseguição aos gays era oficial, era uma
política do estado, embalada pela ética do “homem novo”. Esta é a diferença, por exemplo,
entre o antissemitismo, disseminado em toda a Europa no começo do século XX, e os
campos de concentração nazistas. O antissemitismo era "algo normal", Sra. Mariela, mas a Alemanha nazista construiu campos para confinar os judeus. Entendeu?
A
construção do socialismo em Cuba atropelou direitos, sequestrou liberdades e esmagou
a individualidade. O machismo cubano, que certamente não nasceu com a revolução,
foi potencializado pelo moralismo revolucionário e pelos excessos e delírios antiburgueses.
A consciência dos “revolucionários” era tão superior, e os ideais tão elevados,
que se julgaram no direito de corrigir o comportamento das pessoas e reorientar
os seus gostos sexuais. Fidel não era comunista, tinha desprezo por esta gente,
como tinha pelos gays, mas depois que se converteu, motivado pela ajuda
soviética e pela possibilidade de usar o comunismo para controlar o país,
tornou-se um tirano impiedoso. Os gays sentiram na pela a crueldade e a
intolerância de um regime que, vejam só!, se propunha corrigir as injustiças e as
desigualdades do mundo capitalista.
Para
encerrar, um caso que chama a minha atenção. Jean Wyllys é conhecido pela luta justa,
embora às vezes exagerada, contra a homofobia e pelos direitos dos gays. Mas é
também um conhecido admirador de Ernesto “Che” Guevara. Como Wyllys consegue
harmonizar as duas coisas, sendo que o Che foi um dos mais implacáveis
perseguidores dos gays? Será que ele conhece Allen Ginsberg?
·
Este texto foi encomendado pela Cia e
pelo ativismo gay de Miami para desestabilizar o governo cubano. Por questões
contratuais não vou divulgar os valores recebidos.
·
Brincadeiras a parte, a acusação de que quem
critica o regime cubano (caso de Yoani Sánchez) tem ligações com a Cia, é o
lado stalinista do regime dos Castro. Pesquisem sobre o caso Padilla para
entender isso. O artista Heberto Padilla enfrentou um processo judicial semelhante
aos processos de Moscou em 1968, acusado de manter relações com a Cia. Foi
obrigado, sob ameaças, a forjar uma confissão, depois desmascarada, em que
declarava manter relações com a agência americana. A razão disso tudo foi o prêmio
que seu livro “Fuera del juego” ganhou de um júri presidido por José Lezama
Lima. Padilla admitia não só estar arrependido de ter escrito o livro “Fuera del
juego” como também admitiu ter sido um equivocado “escritor burguês”, indigno e
incapaz de compreender a complexidade do processo revolucionário. Foi um
sinistro caso de autoincriminação. O caso teve grande repercussão entre intelectuais
estrangeiros e provocou grande mal estar entre os artistas cubanos. Uma carta
condenando a farsa foi escrita e assinada por nomes como Sartre, Jorge Luis
Borges, Otávio Paz, Susan Sontag, Carlos Fuentes, entre outros. Muitos romperam
os laços de solidariedade com o regime, mas escritores como Gabriel García Márquez,
Julio Cortázar e Mario Benedetti, que condenaram o caso Padilla, mantiveram o apoio ao governo cubano.