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sábado, 23 de dezembro de 2017

“UM ATRAZADO QUE A GANÂNCIA DAS GAZETAS SAGROU E A BOBAGEM DA MULTIDÃO FEZ UM DEUS”: A CRÍTICA DE LIMA BARRETO COMO CONTRAPONTO À DIVINIZAÇÃO DO BARÃO DO RIO BRANCO.

“UM ATRAZADO QUE A GANÂNCIA DAS GAZETAS SAGROU E A BOBAGEM DA MULTIDÃO FEZ UM DEUS”: A CRÍTICA DE LIMA BARRETO COMO CONTRAPONTO À DIVINIZAÇÃO DO BARÃO DO RIO BRANCO.



[...] repimpado em luxuoso automóvel de capota arriada, passou, com o ventre proeminente atraído pelos astros, o poderoso ministro do Estrangeiros [...]. (Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá - Lima Barreto).


Barão do Rio Branco, chanceler brasileiro entre 1902 e 1912, é considerado oficialmente herói nacional desde 2011. A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Congresso Nacional aprovou, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 7403/02, que inscreveu o seu nome no Livro dos Heróis da Pátria. O culto à sua figura, no entanto, remonta ao começo do século XX. As vitórias nos arbitramentos com a Argentina e a França lhe conferiram grande notabilidade e sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1902, para tomar posse no MRE, foi triunfal, com direito à carruagem aberta sob os aplausos da multidão. Ainda em vida o Barão era visto como verdadeiro herói nacional e cultuado no círculo das elites políticas e diplomáticas como uma espécie de semideus. Depois da morte, em 10 de fevereiro de 1912, foi transformado no modelo inalcançável e símbolo maior da diplomacia brasileira. Foi proclamado também como um dos artífices da identidade nacional. Descolado do mundo social e político no qual se construiu, foi alçado ao altar cívico da pátria. Os críticos silenciaram, ou se renderam às efusivas homenagens, e as virtudes e os feitos do “grande homem” foram elevados a uma condição olímpica. Os discursos laudatórios e toda sorte de homenagens (placas, monumentos, nomes de ruas, etc.), que enalteceram suas glórias e imortalizaram seus feitos, o transformaram numa unanimidade nacional (Ver o post anterior sobre o Barão).


Porém, quando examinamos mais de perto a figura do Barão, para além dos discursos mistificadores, nos deparamos com uma figura humana, como todas as outras, marcada por imperfeições. Estava longe de ser uma unanimidade. Na verdade, dividia opiniões. Os admiradores e apologistas, claro, eram maioria, mas os críticos eram dedicados e persistentes. Se para alguns lhe sobravam habilidades e talentos, para outros, o chanceler era defensor da eugenia, um negociador fraco, um gastador sem reservas e um egoísta ultrapassado.

Dar relevo às críticas e aos desafetos do Barão não significa desmerecer-lhe os talentos e as qualidades. A preferência por soluções pacíficas para as disputas, a não ingerência nos assuntos internos dos países vizinhos, o fortalecimento dos laços sul-americanos, visando a estabilidade regional, a busca por autonomia e o exercício discreto da liderança brasileira na América do Sul, são alguns dos pontos que se destacam na atuação do Barão na condução da política externa. Todavia, ler atentamente as críticas que sofreu é fundamental para que possamos retirar o véu das mistificações que o envolve e avaliarmos suas escolhas e decisões à luz das condições históricas e das relações políticas de sua época, e não como um ato de iluminação, inscrito num plano metafísico, superior.

Entre os críticos mais conhecidos, no Brasil, destacamos Lima Barreto e Oliveira Lima. O chanceler argentino Estanisláo Zeballos também foi um grande adversário. Lima Barreto, crítico severo do estilo e dos excessos do Barão, não perdeu oportunidade de denunciar-lhe os abusos (excessos e abusos aos olhos de Lima Barreto). Referiu-se direta ou indiretamente ao Barão em dois livros (um romance e uma sátira) e em alguns textos esparsos, sempre de maneira incisiva e cortante. Na vasta coleção de personagens característicos daquela época, verdadeiro banquete para um crítico perspicaz, o chanceler era um dos seus alvos preferenciais.

Lima e Rio Branco, cada um à sua maneira, foram figuras de proa de mundos distintos do Brasil da Belle Époque. Muito diferente do aristocrático Rio Branco, e da diplomacia eugenista que praticava, Lima Barreto era um mulato pobre, suburbano, que vivia e escrevia em condições sociais e pessoais muito adversas. Se Rio Branco teve a vida política facilitada pelo sobrenome e por amizades, como a de Duque de Caxias, que lhe abriu as portas para a carreira diplomática, Lima não contou com estas facilidades e tropeçou a vida inteira na barreira da cor. De um lado, o Brasil branco, europeu, das elites, das distinções e do coronelismo ilustrado; de outro, o Brasil mestiço, inventivo e de poucas oportunidades, que corria à margem da república dos bacharéis.





A literatura ativista de Lima Barreto, numa época marcada pelo darwinismo social, combatia os preconceitos de classe e de cor e as múltiplas formas de injustiças daquele Brasil. Numa época em que teorias científicas de enorme prestígio e sucesso afirmavam existir diferenças irredutíveis e permanentes entre as raças humanas, Lima manteve-se cético e profundamente contestador das justificativas cientificas para as desigualdades raciais e a suposta superioridade branca (Schwarcz).

Lima fundiu estilos literários, empregando-os com originalidade para os seus propósitos. Intencionalmente, ao mesmo tempo, procurou descaracterizar o estilo, visando uma comunicação mais direta com o público. Dois recursos estilísticos, notadamente, marcaram sua obra: a ironia e a caricatura. Os modelos foram declaradamente inspirados nos grandes mestres do gênero: Dickens, Swift, Maupassant, Voltaire, Balzac e Daudet. A “suculenta ironia”, como dizia Lima, que ia da “simples malícia ao profundo humour”, vinha da dor. “Era o artifício através do qual se sobrepunha aos infinitos percalços que lhe entravam o desenvolvimento da personalidade e da carreira”. A caricatura derivava da percepção de que a realidade não falava por si. Era preciso apertá-la, exagerá-la, pintá-la com tons gritantes para denunciar seus defeitos e deformações (Sevcenko).

Tinha um agudo senso de observação do “instante presente” e escrevia para o futuro, com apurada consciência histórica. Deixou para a posteridade um retrato denso e multifacetado do seu tempo. Nas suas próprias palavras: “A minha atividade excede em cada minuto o instante presente, estende-se ao futuro. Eu consumo a minha energia sem recear que esse consumo seja uma perda estéril, imponho-me privações, contando que o futuro as resgatará – e sigo o meu caminho” (O destino da literatura).

Lima combatia os “literatos de atelier” e as expressões literárias de seu tempo, vistas como meramente decorativas e frívolas, para entreter as elites letradas que desdenhavam ociosamente dos problemas do país, e se debatia contra o bovarismo, a mania de dar as costas para o que era “nosso” e se voltar para as coisas do estrangeiro, ou “de se querer diferente do que se é”.

O Barão do Rio Branco, para Lima Barreto, encarnava uma espécie de síntese do bovarismo e da frivolidade exibicionista que afetava as elites da época.

Na sátira política “Bruzundanga”, escrita em 1917, Lima desfere críticas mordazes ao Brasil das oligarquias, das elites bovaristas (que fingiam ser o que não eram), do abuso de poder, dos privilégios e das injustiças. Bruzundanga, na trilha de Jonathan Swift e Thomas More, é um país imaginário, visitado por um narrador brasileiro, que em tudo se parece com o Brasil. O Capítulo VII é dedicado à diplomacia da Bruzundanga. O Barão do Rio Branco é retratado cartunescamente na figura do Visconde de Pancome, “um embaixador gordo e autoritário, megalômano e inteligente”, que veio ser “ministro dos Estrangeiros”. “Empossado no ministério”, continua Lima, “a primeira coisa que fez foi acabar com as leis e regulamentos que governavam o seu departamento. A lei era ele. O novo ministro era muito popular na Bruzundanga”. Os habitantes da República dos Estados Unidos da Bruzundanga eram “assim como nós, que temos grande admiração pelo Barão do Rio Branco por ter adjudicado ao Brasil não sei quantos milhares de quilômetros quadrados de terras, embora, em geral, nenhum de nós tenha de seu nem sete palmos de terra para ditarmos o cadáver”.

Na República da Bruzundanga, o Visconde de Pancome exercia a diplomacia baseado na sua vontade e “não houve bonequinho mais ou menos vazio e empomadado que ele não nomeasse para esta ou aquela legação”. “Não ha mal algum que assim seja a diplomacia daquelas paragens”, arremata Lima. “A Bruzundanga é um país de terceira ordem e sua diplomacia é meramente decorativa. Não faz mal, nem bem: enfeita”.

No romance “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá”, publicado em 1919, Lima fixou uma imagem nada lisonjeira do herói nacional. Por meio do narrador Augusto Machado, que recorda o falecido Gonzaga de Sá, o Barão é visto como um homem de uma “mediocridade supimpa”. “Sempre voltado para tolices diplomáticas (...) era um atrazado, que a ganância das gazetas sagrou e a bobagem da multidão fez um Deus”.

Autoritário e egocêntrico, o Barão teria feito “do Rio de janeiro a sua chácara”. Não dava satisfação a ninguém e se julgava acima da Constituição. Armava situações diplomáticas para “mostrar seu atilamento de Tayllerand, ou sua astúcia Bismarkeana”. Para Lima, Rio Branco era “egoísta, vaidoso e ingrato.”

O chanceler, na apreciação de Lima, era demasiado apegado aos detalhes cerimonias, caprichosos e inúteis. O seu ideal de estadista não é fazer a vida fácil e commoda a todos; é o apparato, a filigrana dourada, a solennidade cortezan das velhas monarchias europeas - é a figuração theatral, a imponência de um ceremonial chinez, é a observância das regras de precedência e outras vetustas tolices versalhezas”.

A imagem que Lima tinha do Barão é um contraponto, cáustico e demolidor, à decantada unanimidade que se supunha existir em torno do seu nome. Embora, por antipatia, Lima possa ter exagerado e carregado nas tintas (os apologistas do Barão, por simpatia, não fazem o mesmo?), ele parece ter expressado um ponto de vista que, supomos, era compartilhado entre aqueles que se opunham à diplomacia das oligarquias cafeeiras, da qual o Barão era o olímpico condutor.

A unanimidade só veio mesmo depois da morte. O discurso de Oliveira Lima utilizado por Celso Lafer e Francisco Weffort, em 2002, para justificar a inscrição do nome de Rio Branco no livro dos Heróis da Pátria é um bom exemplo disso (ver o post anterior sobre o Barão). Oliveira Lima, diplomata visto como dissidente, foi desafeto e crítico do Barão ao longo da sua gestão no MRE. Além de ser contrário à política pan-americana, acusava-o de dificultar a sua carreira diplomática. Depois da morte, recolheu as críticas e rendeu-lhe as mais honrosas homenagens. O mesmo aconteceu com Estanisláo Zeballos, chanceler argentino e rival do Barão desde o litígio lindeiro de Palmas, que conduziu uma política externa abertamente antibrasileira. Num artigo publicado logo após a morte do Barão, Zeballos abandonou o tom crítico e escreveu um discurso de homenagem ao velho rival: “Si el Brasil consolida la obra territorial del Barón de Rio Branco, le deberá el título de su primer servidor y del mas grande de los benefactores de su amor proprio nacional y de su mapa”.

A morte do Barão, as pomposas e intermináveis homenagens que se seguiram e o culto que se ergueu em sua memória, só não diminuíram a verve crítica de Lima Barreto. “Os Bruzundangas” e “Morte e Vida” foram escritos, respectivamente, cinco e sete anos depois da morte do Barão, e em plena maturidade literária de Lima (Barbosa). Lima não deu descanso ao Barão nem depois de morto. Em vida, criticou a conduta, os valores ultrapassados e o autoritarismo esnobe do chanceler. Posteriormente, não se rendeu à comoção nacional e à força do mito. Continuou implacável!

Na Bruzundanga contemporânea, Lima se indignaria e se deliciaria com os personagens, de todas as cores políticas, que nada ficam devendo às formidáveis caricaturas que pintou em sua época. A corrupção, as enormes desigualdades, as trocas de favores, o racismo, os abusos de autoridade e o saque aos bens públicos, que tanto o incomodaram, continuam, quase cem anos depois de sua morte, a dar as cartas e a esculhambar o país.

A Bruzundanga é aqui, e agora! E em repúblicas onde barões são heróis, mulatos pobres continuam tropeçando nas barreiras de cor e de classe.



Referências bibliográficas.
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de janeiro: José Olympio, 2002.
BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 2000.
BARRETO, Lima. Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá. Rio de janeiro-Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1990.
BARRETO, Lima. Obras completas de Lima Barreto. (Francisco de Assis Barbosa. Org.). São Paulo: Brasiliense, 1956.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.



segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

AS LIÇÕES DE TÉRSITES: notas sobre o saber memorável (do Aedo) e o poder da linguagem (domínio das Musas) na instituição e conservação da ordem do mundo.

AS LIÇÕES DE TÉRSITES: notas sobre o saber memorável (do Aedo) e o poder da linguagem (domínio das Musas) na instituição e conservação da ordem do mundo.

 Odisseu, Agamêmnon e Térsites.
Canta, ó Musa, a ira de Aquiles, filho de Peleu, que incontáveis males trouxe às hostes dos aqueus (Versos iniciais da Ilíada).
 Mas se porventura via um homem do povo metido numa rixa, batia-lhe com o cetro, repreendendo-o com estas palavras: “Desvairado! Senta-te sossegado e ouve o que dizem outros, melhores que tu! Não passas de um covarde, de um fraco! Não serves para nada, nem na guerra, nem pelo conselho. Não penses que, aqui, nós Aqueus somos todos reis! Não é bom serem todos a mandar. É um que manda; um é o rei, a quem deu o Crônida de retorcidos conselhos o cetro e o direito de legislar, para que decida por todos” (Ilíada, Canto II).

Ilíada, o extraordinário e aristocrático poema épico grego, atribuído a Homero, é um hino à guerra e aos valores da nobreza. O Aedo canta e celebra a moral heroica, a honra (timé), a coragem, a destreza guerreira, os laços de parentesco, a arte de bem falar e faz demorado elogio ao ideal de excelência (areté) dos Basileus (reis), reunidos diante de Ílion (Tróia). Agamêmnon, Ajax, Aquiles, Odisseu, Nestor, Menelau, Diomedes, são alguns dos personagens homéricos que desfilam suas habilidades, militares e oratórias, e esperam uma morte heroica vislumbrando a glória (kléos).
No Canto II, destoando do ethos guerreiro dominante no poema, somos surpreendidos por um homem do povo, um soldado comum chamado Térsites que, em plena assembleia da nobreza, toma ousadamente a palavra e enfrenta Agamêmnon, o rei-comandante em armas dos aqueus. Cansado da guerra, que se arrasta há dez anos, reclama dos espólios tomados dos troianos (bronze e belas mulheres), que ficam sempre com os chefes, e propõe aos aqueus que voltassem para casa (o que pode denotar falta de coragem) e deixassem Agamêmnon em Tróia, por si mesmo, com os despojos, refletindo sobre a utilidade ou não dos soldados. Além da queixa, Térsites condenou o comportamento ganancioso do rei que roubou de Aquiles o prêmio de guerra, a bela Briseida.
A sequência dos acontecimentos é uma verdadeira lição sobre a ética guerreira e o ideal aristocrático cantados na Ilíada. Odisseu, herói épico e excelente conselheiro, reprova duramente a conduta insolente do tagarela Térsites e lhe aplica um humilhante castigo público: uma surra exemplar de cetro, que lhe deixa um indisfarçável vergão nas costas. O soldado, humilhado e machucado, volta ao seu lugar, senta-se trêmulo, enxuga as lágrimas e vira motivo de risos dos expectadores.
O cetro, arma simbólica utilizada para castigar o ousado soldado, merece um pouco mais de atenção. A insígnia tem uma genealogia própria que representa a transmissão do poder no seio da aristocracia (Vidal-Naquet). Tomemos o exemplo de Agamêmnon. No Canto II, em meio a uma tumultuada assembleia, o “poderoso” Atrida se levanta:
“[...] segurando o cetro que com seu esforço fabricara Hefesto. Hefesto deu-o depois a Zeus Crônida soberano, e por sua vez o deu Zeus ao forte Matador de Argos, Hermes soberano, que o deu a Pélope, condutor de cavalos; por sua vez de novo o deu Pélope a Atreu, pastor do povo; e Atreu ao morrer deixou-o a Tiestes dos muitos rebanhos; por sua vez o deixou Tiestes a Agamêmnon para que o detivesse, assim regendo muitas ilhas e toda a região de Argos” (Ilíada, Canto II).

                                                                             Zeus sentado com o raio e o cetro.

Foi com este mesmo cetro, que Agamêmnon lhe emprestou para conter o impulso dos soldados de arrastar as naus para o mar e abandonar a guerra, que Odisseu golpeou o soldado. A genealogia do cetro remonta aos Deuses que, por divina transmissão, o repassa aos Basileus que o empunham com soberana autoridade para o exercício do poder e a distinção das hierarquias. Poder e hierarquias inobservados por Térsites. Os golpes de cetro, vistos desta maneira, têm um caráter pedagógico. A atitude espontânea de Odisseu não foi intempestiva ou irrefletida. Representa, antes, o paternalismo aristocrático do Basileu que repreende duramente o seu subordinado, na frente de todos, reforça o lugar social de cada um e retoma o privilégio do uso da palavra, especialmente naquela situação. Lendo a desventura de Térsites com a lente de Foucault, a surra foi um castigo corretivo, disciplinar. O cetro é um dispositivo de poder aristocrático empunhado exemplarmente para silenciar o inconveniente orador e reestabelecer a ordem.
Térsites é um anti-herói épico (não se enquadrava no esquema de valores subjacente ao ponto de vista narrativo). Ao povo cabia apenas escutar. O uso da palavra, especialmente numa assembleia, era prerrogativa dos nobres. Embora a fala de Térsites fizesse algum sentido, e talvez representasse o ponto de vista da maioria dos soldados, a atitude era inconveniente. Os aqueus andavam ressentidos, rancorosos e com o coração doído, mas foi Térsites que, à sua maneira, soltou o grito contra a ganância e a arrogância de Agamêmnon. Disparou um discurso fulminante, mas pagou um preço alto pela ousadia.
À violência física, soma-se, diríamos hoje, a violência simbólica das palavras empregadas pelo poeta para descrever Térsites, o mais feio entre todos: vesgo, corcunda, de pernas arqueadas, manco, cabeça pontuda e cabelos ralos. Uma ridícula figura, que ninguém levava a sério. A feiura e o aspecto repulsivo do soldado saltam aos olhos, especialmente quando consideramos que a beleza e a virilidade eram atributos admirados e cultivados pela nobreza. Os heróis homéricos cuidavam do corpo e o tratavam com óleos e unguentos. A beleza física era o corolário da moral guerreira (Claude Mossé). O porte físico e o refinamento da armadura e das armas de bronze, a panóplia do guerreiro, distinguiam os heróis dos soldados comuns. “O esplendor que dimana do corpo do herói, vem antes do fulgor do bronze de que se reveste, do faiscar de suas armas, da sua couraça, do seu capacete, da chama que emana dos seus olhos, do irradiante ardor que o consome” (Claude Mossé). A beleza está associada ao valor guerreiro. São belos não porque ostentam uma beleza física notável. São belos porque são fortes, vigorosos, corajosos e admiravelmente revestidos do esplendor do bronze. Térsites, de feiura inigualável, representa a encarnação do completo oposto ao herói homérico.
O modo como Homero se refere à Térsites encerra uma significativa lição. Inspirado pelas Musas, divindades que presidem a linguagem e o conhecimento, o poeta tem o poder de dizer. As palavras escolhidas para descrevê-lo e desacreditá-lo são revestidas de uma autoridade que está além do mundo dos homens. As Musas são o produto da mais importante conjunção mítica. São filhas de Zeus (raiz e fonte do poder) com Mnemósine (memória), e decidem entre o que deve ser revelado e o que vai ser esquecido (origem de todo poder). Elas conferem ao poeta o poder de trazer à lembrança o que merece ser lembrado.
O Aedo articula, portanto, um tipo de poder que lhe é conferido pela Memória, pela palavra cantada (Musas). O canto do Aedo é uma epifania do poder divino que configura o mundo e ilumina as relações de poder entre os mortais.
                                                                                                             Homero
Não passou despercebido por Vidal-Naquet um importante detalhe: o nome do pai de Térsites, em nenhum momento, foi mencionado. Não foi um descuido do poeta (um cultor da Memória). A menção aos antepassados (Aquiles, filho de Peleu), fórmula repetida inúmeras vezes, é um exercício de fixação das linhagens familiares e a afirmação de um passado heroico e honrado dos personagens. As genealogias, demoradamente cantadas, são a celebração e a conservação da memória da aristocracia. O esquecimento, neste caso, é uma manifestação do poder que o canto épico, iluminado pela Memória, impõe. No extraordinário exercício de memorização e declamação dos nomes, dos nobres parentescos (Odisseu, filho de Laerte), entoado pelo Aedo, o pai de Térsites foi esquecido. O poder de lembrar, articulado pela linguagem e pela memória, tem o seu contraponto: o esquecimento. O nome do pai do homem que tomou a palavra e insultou o rei, mesmo sendo ele um conhecido herói eólio (Ágrio), não merece ser lembrado.
A lição de Térstites é sobre um saber que o poeta detém (uma outorga do divino), que lhe autoriza o exercício de um poder, circunscrito pela linguagem, e tutelado pela memória, que nomeia e institui a ordem mundo. Ordem da qual o poeta, criador e criatura, era o intérprete oficial. Térsites desafiou este poder, ameaçou, com ligeira e humana desordem, a duradoura ordem imposta pelo sagrado e foi submetido a uma humilhação à altura da sua ousadia e da ofensa que fez à aristocracia!

De acordo com um dos poemas cíclicos, do Ciclo Troiano (poemas épicos posteriores e complementares à Ilíada e à Odisseia e, segundo Aristóteles, literariamente inferiores), intitulado Etiópida, Térsites, filho de Ágrio, morreu violentamente pelas mãos de Aquiles. Depois de tirar a vida de Pentesiléia, rainha das Amazonas, o filho de Tétis foi às lágrimas contemplando a beleza do corpo sem vida. Térsites teria zombado da ternura do herói e ameaçado furar os olhos da morta. Aquiles tirou-lhe a vida com um único golpe. Uma morte nada gloriosa para o soldado descrito por Homero como “o homem mais feio que veio para Ílion”.

Referências Bibliográficas.
BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. São Paulo: Vozes, 1993.
FINLEY, Moses. O mundo de Ulisses. Lisboa: Editorial Presença, 1982.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1989.
HOMERO. Ilíada; tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2003.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Benvirá, 2010.
MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1984.
TORRANO, Jaa. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1992.

VIDAL-NAQUET. O mundo de Homero. São Paulo: Companhia da Letras, 2002.

domingo, 10 de dezembro de 2017

“ESCOLA SEM PARTIDO”: Uma ilha de neutralidade seletiva no mar tempestuoso do mundo político.

“ESCOLA SEM PARTIDO”: Uma ilha de neutralidade seletiva no mar tempestuoso do mundo político.


As observações e as críticas que faço ao projeto de lei “Escola Sem Partido” levam em conta, principalmente, quem está na linha de frente do projeto e a minha experiência como aluno e como professor.

De autoria do senador Magno Malta, porta-voz (ou testa-de-ferro?) de um conservadorismo rasteiro e desinformado que (re)surgiu no Brasil na última década, o projeto de lei “Escola Sem Partido” representa uma tentativa oportunista e grosseira de invadir o ambiente escolar, patrulhar as condutas dos professores e transformá-los em transmissores passivos e apolíticos de conhecimentos estéreis. Afastar das escolas, por imposição legal, os debates/embates políticos que vicejam no mundo é pretender transformar as escolas em ilhas de neutralidade, em ambientes ascéticos e apolíticos descolados do mundo social.

O projeto de lei é um retorno ao positivismo do século XIX e à crença na neutralidade axiológica do conhecimento. Mas duvido que os proponentes deste modelo de Escola saibam disso. Se soubessem, saberiam também que a “crença” na neutralidade do conhecimento era uma entre as tantas utopias racionalistas do século XIX (como o socialismo) que foram derrubadas no século XX. Mas todos nós sabemos que os interesses que movem os defensores do projeto são outros.

Magno Malta, a ponta do iceberg, é figura folclórica do anticomunismo paranoico e anacrônico que tomou conta do Brasil nos últimos anos, ressuscitado na esteira dos graves deslizes éticos e morais dos governos do PT. Histérico e barulhento, pegou carona na onda antiesquerdista e se projetou como defensor, no senado federal, de um modelo de escola que se pretende neutra. Magno Malta é presidente da ‘Frente Parlamentar em Defesa da Família Brasileira’ e um típico “ficha suja”. Seu nome aparece em escândalos como o esquema de superfaturamento das ambulâncias (escândalo dos sanguessugas) e a aprovação de uma emenda para favorecer uma empresa fabricante de armários de cozinha (Será que é esta a relação que o senador estabelece entre o exercício do mando parlamentar e a defesa da família: armários de cozinha para a família brasileira?).

É esse senador exemplar que está propondo o projeto de lei. Malta e os defensores deste modelo de escola “neutra” não são nada neutros. Eles têm um partido. Eles são inimigos declarados das esquerdas e do marxismo e fazem disso a sua profissão de fé. São fanáticos antiesquerdistas que querem, em nome disso, varrer das escolas a pluralidade de pensamentos. Não é necessário nomear os demais defensores do projeto. Magno Malta os representa perfeitamente bem.

Na página do “Escola Sem Partido” está escrito em letras garrafais que o PT e o Sindicato dos Professores são contra o projeto de lei. O truque é manjado. A estratégia é vender a ideia de que apenas petistas e professores esquerdistas, por óbvios interesses, se opõe ao projeto. O descrédito político do PT e o macarthismo de ocasião os favorece. Pois bem. Eu não sou petista, não simpatizo com o PT, não sou filiado a nenhum Sindicato, e sou absolutamente contra a ideia da “Escola sem Partido”. Aliás, não conheço nenhum colega professor, das escolas e das universidades, que apoie o projeto. Tenho colegas de diversas tendências políticas: de socialistas à liberais, de keynesianos à admiradores da Hayek, de petistas à tucanos. Nenhum deles simpatiza com a ideia.

Sou professor há mais de vinte anos. Lecionei em escolas de primeiro e segundo grau, públicas e particulares, e há vinte anos leciono em Universidades, em cursos de graduação e pós-graduação. Como professor, sempre procurei exercer democraticamente o meu ofício oferecendo aos meus alunos diferentes pontos de vistas sobre os temas abordados, para que fizessem suas escolhas. Não procuro e nunca procurei orientar a conduta política de ninguém. E isso não é neutralidade. Nunca foi um professor neutro. Não acredito na neutralidade. Acredito no diálogo e na troca democrática e respeitosa de ideias.

Encontrei na minha trajetória todo tipo de professor. Conheci liberais radicais, convivi com colegas de tendências fascistas e tive contato com esquerdistas exaltados. Mas eles sempre foram não mais do que alguns gatos pingados. Uma minoria caricata que os próprios alunos se encarregavam de desacreditar. Eram figuras folclóricas, como Magno Malta e, por isso mesmo, não eram levadas a sério (A grande maioria era de professores equilibrados e ponderados, quer à esquerda, quer à direita). Alunos e colegas davam apelidos apropriados e faziam gracinhas com os excessos de idealismo ou de autoritarismo dos professores mais extremados. Numa das escolas que trabalhei, no começo dos anos 90, o professor com tendências fascistas era chamado nos corredores de Adolfinho, e o exaltado de esquerda, de cumpanheiro. Eram verdadeiras caricaturas! O primeiro vestia-se formalmente, com a calça acima do abdômen, camisa caprichosamente para dentro da calça, cintos e sapatos impecáveis e sempre muito bem barbeado. Segundo os murmúrios do corredor, o sujeito não admitia a menor desatenção dos alunos. Fulminava com os olhos e chamava atenção com o dedo em riste. Embora não fosse professor de história, gostava de falar da segunda guerra mundial. Na hora do intervalo, parava na porta da sala dos professores em pose marcial, com as mãos para trás, cumprimentando todos que chegavam: “satisfação revê-lo, professor”, dizia sempre. Era intimidador. Nunca o vi sentado, relaxado. O segundo usava barba irregular, vestia-se com certo desleixo e usava uma indefectível bolsa de couro. Qualquer que fosse o assunto tratado em aula, ela dava um jeito de falar de revolução e luta de classes. Tinha mau hálito e explicava absolutamente tudo com base nos escritos de Trotsky. Embora, a julgar pelas poucas vezes que conversamos, parecesse nunca ter realmente lido “A Revolução Permanente”. Adolfinho e cumpanheiro não se cumprimentavam. Pareciam se odiar, embora, aos meus olhos, fossem tão parecidos (assimetricamente iguais). Em outra escola, conheci uma professora que, em sala de aula, se dizia admiradora da ditadura militar. Dizia que naquele tempo tudo era melhor e que os alunos deveriam se inspirar no exemplo dos militares. Tinha fama de autoritária e de perseguir alunos do centro acadêmico ou os que discordassem dela. Quando passava nos corredores, os alunos batiam continência e juntavam as pernas, sem ela ver, claro. Na sala dos professores, mantinha um tom mais discreto. Mesmo assim, não escapou da zombaria: o professor de física a apelidou de sargentão. Quando sargentão entrava ereta na sala dos professores o ambiente mudava. Ficava um clima artificial. Ela nunca percebeu. Se esforçava para ser simpática. Usava laquê no cabelo, maquiagem permanente e sempre combinava a cor da bolsa com a cor do sapato. Sargentão tinha cheiro de roupa guardada. Anos mais tarde encontrei o professor de física num bar e fiquei sabendo que a professora abandonou a sala de aula, queixando-se da indisciplina dos alunos, e foi trabalhar no setor administrativo da escola.

Todos os três professores eram autoritários e usavam a sala de aula para exercitar sua profissão de fé. Mas não pensem que os(as) alunos(as) são presas fáceis e vítimas inocentes de predadores com diplomas. Professores com tendências autoritárias e catequizadores voluntariosos viram rapidinho motivo de piadas e chacotas. Quantas vezes vi no recreio alunos fazendo a saudação nazista, pelas costas, quando Adolfinho passava. Não foram poucas as vezes também que ouvi um aluno mais saidinho gritar para o outro professor: o que Trotsky diria sobre isso, cumpanheiro?

O “abuso da liberdade de ensinar”, como querem os defensores do projeto, existe, mas é a exceção, não a regra. Não se pode interferir na liberdade de ensino para conter um punhado de professores exaltados. E não são apenas professores ditos de esquerda que praticam esse abuso. Mas os defensores do “Escola Sem Partido” não querem saber disso. Eles demonizam os professores de esquerda como se eles fossem de alguma maneira perigosos. Ora, se as escolas vivessem uma epidemia ideológica, como pretendem os alarmistas, e os tais doutrinadores de esquerda tivessem de fato o poder de converter crianças e adolescentes em militantes esquerdistas, seríamos uma “república sindicalista”, para usar uma velha expressão, ou viveríamos numa sociedade do tipo socialista há muito tempo.


O ideal de escola que emerge do projeto nem chega a ser o bicho de sete cabeças que estão pintando. O projeto é ingênuo e, em certo sentido, inofensivo. Mas é bom ter cuidado!  Na atual conjuntura de polarização ideológica, ele pode se transformar numa forma policialesca e vigilante de fiscalização do trabalho dos professores. Não que eu ache que os professores não devam prestar contas do seu trabalho. Pelo contrário. Tem que prestar sim e devem ser avaliados constantemente. Mas isso é diferente do tipo de controle pretendido pelos idealizadores do projeto. A atitude do vereador de São Paulo, Fernando Holiday, eleito pelo MBL, é um bom exemplo do exercício de um poder abusivo e inquisitorial, seletivamente exercido. O vereador anunciou na sua página na internet que está fazendo visitas surpresas nas escolas da rede municipal de São Paulo para fiscalizar o conteúdo das aulas. Justificando as “visitas”, o vereador disse num vídeo que: “Temos de ver se está tendo algum tipo de doutrinação ideológica, se os professores estão dando aquilo que realmente deveriam dar de acordo com a grade curricular ou se tem professor entrando com camisa do PT, do MST, jogando tudo pro alto e fazendo aquela doutrinação porca”. Holiday se julga um verdadeiro fiscal do conhecimento, investido de um poder e de uma verdade que o habilitam a se lançar na heroica missão de limpar as escolas da “doutrinação porca”. Que tipo de isenção o representante do MBL tem para adentrar de surpresa nas escolas para fiscalizar a conduta dos professores?  Na verdade, o vereador é um fanático antiesquerdista que está à caça de tudo o que não se parece com ele. Se os defensores e simpatizantes da sigla quisessem de fato um Brasil decente, livre da corrupção, estariam nas redes sociais e nas ruas pedindo o afastamento de Michel Temer. O silêncio deles diz muito sobre o que entendem por uma “Escola sem Partido”. Será que o vereador “do bem” se importaria com professores que fazem em sala de aula a apologia do regime militar?

Nossos alunos não precisam deste tipo de “proteção” e nossas escolas não precisam ser expurgadas e higienizadas de supostas infecções ideológicas, e transformadas em redomas do conhecimento “puro”. Os pais que defendem o “Escola Sem Partido” estão passando um atestado de imbecilidade e de incapacidade dos filhos de lidar com a diferença de pensamento. As escolas precisam de investimentos, não de castração. Precisam de laboratórios e boas bibliotecas, não do sequestro da reflexão política e, se for o caso, dos embates políticos. Nossos alunos precisam de professores mais bem pagos e melhor preparados. Conviver com vozes dissonantes, com ideias diferentes e conflitantes com as que trazem de casa, não é nenhum problema. Pelo contrário, é também um aprendizado para crescerem no mundo, conviverem com os embates políticos e poderem fazer suas escolhas. Estudei na escola primária, no final dos anos 70 e início dos anos 80, com professores (não todos) que exaltavam as virtudes das forças armadas, nos faziam marchar, cantar o hino (como pretende Magno Malta) e escrever pequenos textos laudatórios do governo militar. No entanto, minha postura, desde o final do primário, sempre foi de oposição à ditadura. Os professores doutrinadores de OSPB e de Educação Moral e Cívica, do meu tempo de aluno, que adaptavam as duas disciplinas às exigências dos governos militares, também eram motivo de piadas e imitações. Aliás, acho que devo a eles a decisão de fazer a faculdade de história. Não tive a disciplina na escola. O que era para ser “aula de história” era, na verdade, um exercício laudatório das virtudes cívicas, segundo a ótica do regime militar. Fui estudar história por fora, nos livros, longe da escola. Na universidade, estudei com professores marxistas, liberais, positivistas e nacionalistas. Soube, como a maioria dos meus colegas, tirar de cada um o que me interessava.

O projeto de lei encabeçado por Magno Malta, equivocado e descabido, está sendo proposto numa conjuntura de extremismos e de polarização política. Ainda que tivesse pertinência, o que não é o caso, não seria este o melhor momento para se apreciar este tipo de interferência na vida escolar. Além disso, os propositores e defensores do projeto, pelo que se depreende das falas e dos discursos, não têm a ciência nem a competência para pensar um tema tão delicado. São, com efeito, motivados por um antiesquerdismo febril, circunstancial, oportunista e bastante mal informado. Querem amputar as ideias de esquerda da vida do país como se fosse uma doença, como se os extremismos vicejassem apenas à esquerda. São, portanto, antidemocráticos. Numa democracia se convive com valores, projetos e ideias antagônicas.


Espero que o Escola Sem Partido, verdadeiro delírio reacionário, seja uma dessas perturbações passageiras da jovem democracia brasileira, e que logo vire piada. A melhor forma de se livrar de besteiras perigosas é rir delas, como os alunos riam, e continuam rindo, dos professores que usam a sala de aula para exaltar as suas preferências políticas.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

SOCIEDADE DO APLICATIVO: Os Apps como dispositivos de controle e orientação das vontades e dos desejos.

SOCIEDADE DO APLICATIVO: Os Apps como dispositivos de controle e orientação das vontades e dos desejos.

Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira (Deleuze).

Quanto maior o número de informações em relação aos indivíduos, maior a possibilidade de controle de comportamento desses indivíduos (Foucault).






Cada época inventou e experimentou suas próprias tecnologias de controle e submissão dos sujeitos (aqueles que são assujeitados por diferentes formas e combinações de saber e poder). Das técnicas de vigilância modernas às câmeras de monitoramento, das estruturas arquitetônicas das fábricas e das escolas aos dispositivos de localização dos smartphones, as novidades tecnológicas, que atuam como modeladores dos gestos e adestradores dos comportamentos, sempre foram apresentadas como facilitadoras da vida e maximizadoras de segurança.

Em “Vigiar e Punir”, lançado originalmente em 1975, Michel Foucault identificou, entre os séculos XVIII e XIX, a emergência de um novo sistema de poder, baseado na disciplina e no confinamento, que chamou de sociedade disciplinar. Em diversas instituições como escolas, fábricas, hospitais, quarteis e prisões, foram introduzidas tecnologias de controle e vigilância do tempo, do espaço e dos corpos dos indivíduos, com vistas a torna-los obedientes, úteis e molda-los às exigências da produção. A criação do panóptico, por Jeremy Benthan, representou a sofisticação dos mecanismos de vigilância. Os dispositivos disciplinares são constituídos por uma polarização entre a opacidade do poder e a transparência dos indivíduos. O panóptico ilustra perfeitamente bem esta polarização. A torre de controle ficaria fora do alcance dos indivíduos, enquanto os indivíduos estariam o tempo todo ao alcance do olhar supervisor da torre. Expostos à permanente visibilidade, estariam sujeitos à invisibilidade do mecanismo de controle que os observa. O que fazer diante de um poder que se exerce na invisibilidade?

                                                                           Panóptico.

Em 1990, num artigo intitulado “Post-scripton Sobre as Sociedades de Controle”, publicado no L´Autre Journal, Gilles Deleuze identificou os elementos, sobretudo tecnológicos, que articulariam uma nova ordem social: a sociedade de controle. A mudança teria ocorrido na segunda metade do século XX, no pós-segunda guerra. Os mecanismos de vigilância foram aprimorados e se generalizaram. A invasão das câmaras de segurança nos diversos espaços sociais (lojas, bancos, supermercados, estradas, e por aí a fora) o uso de transponders, de aparelhos celulares, cartões de crédito e da popularização da internet e das tecnologias de comunicação, ampliaram e tornaram mais eficientes as possibilidades de controle e vigilância. Antes circunscrita à lugares fechados, aos interiores das instituições disciplinares, a vigilância assumiria um caráter mais abrangente e alcançaria os espaços abertos. Para Deleuze, Kafka, que viveu no ponto e intersecção entre as duas ordens, anteviu, em O Processo, aspectos que anunciariam a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle.




Da Sociedade do Controle à Sociedade do Aplicativo.

E hoje, estaríamos vivendo em que tipo de sociedade? Na sociedade do aplicativo? Exploremos a possibilidade. Os programas de computadores, conhecidos como Apps, que nos ajudam em tarefas específicas, estão assumindo o controle nas mais variadas atividades. Nos auxiliam na hora de pegar um taxi, de pedir comida, de dirigir, de cuidar dos bebês, de estudar, de escrever e de meditar, de dormir e de acordar. Dormindo ou acordados, os aplicativos controlam nossos fluxos de relacionamentos e atividades. São vistos como facilitadores úteis da vida diária. E minha intenção não é afirmar o contrário. Chamo a atenção apenas para a centralidade que estes dispositivos vêm, cada vez mais, ocupando em nossas vidas. Estaríamos à beira de uma ditadura do App? Num blog sobre tecnologia, a frase de abertura de um texto sobre os 10 aplicativos que você tem que usar em 2017, é: “Sem aplicativos o ser humano moderno não vive”. Tirando o exagero da afirmação, compreensível num blog sobre tecnologia, nota-se o lugar vital que os arautos destes dispositivos, que habitam as pequenas divindades digitais (os smartphones), pretendem que eles assumam em nossas vidas.

Se considerarmos a maneira como as pessoas expõem seus hábitos nas diversas redes sociais, disponibilizando dados e informações sobre quase tudo o que fazem, onde estão, como estão e com que frequência visitam certos lugares, os aplicativos assumem, cada vez mais, a função de dispositivos de controle.

A sociedade do aplicativo, se embarcarem na minha “brincadeira”, seria uma espécie de variação, ou sofisticação, da sociedade do controle. Mas que forma de controle é essa que está na palma da mão e, aparentemente, sob o nosso comando? É exatamente esta a sofisticação. Julgamos comandar a tecnologia, porque está sob o nosso controle, mas na verdade somos dirigidos por ela (creio que o seriado inglês Black Mirror capturou isso de maneira inteligente). Por meio destes dispositivos, criados freneticamente, introjectamos e assimilamos inúmeras formas de controle sobre nossas vidas e passamos a usá-las no dia-a-dia sem se dar conta do espaço que vão ocupando nas nossas relações e na mediação da nossa comunicação com o mundo e, sobretudo, da forma como vão ditando nosso comportamento e orientando os nossos desejos. Os Aplicativos estão para a sociedade de controle assim como o Panóptico estava paras a sociedade disciplinar.

Em alguns casos, os Apps são um substitutivo para a memória, pois nos avisam e nos lembram a todo instante das coisas que devemos fazer. Parece cômodo (e é), mas cria dependência. Um estudo realizado pela Flurry, empresa que desenvolve e comercializa uma plataforma para analisar as interações do consumidor com aplicativos móveis, revelou que há em torno de 280 milhões de viciados em aplicativos para celular no mundo (considerando que a pesquisa já tem mais de dois anos, o número deve ter aumentado exponencialmente). Especialistas do Hospital das Clínicas, de São Paulo, afirmaram que 10% dos internautas brasileiros já foram diagnosticados com dependência de tecnologia: são pessoas que ficam até 12 horas conectadas e, quando desconectadas, apresentam sintomas de tremedeira, sudorese, taquicardia e, em casos mais complicados, com tentativas de suicídio. Todavia, advertiu um especialista, não é o tempo conectado que define uma situação de dependência, mas a perda de controle sobre a tecnologia (Link para consultar estas informações: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/07/viciados-em-tecnologia-usam-app game-e-celular-como-se-fosse-droga.html).

A dependência é alarmante, não há dúvidas, e atinge os consumidores de tecnologia em diferentes graus. Mas eu estou chamando a atenção para os dispositivos de controle que os Apps carregam, e os efeitos coletivos sobre milhões de pessoas, comandadas pelos mesmos programas. Além de saber onde os usuários estão e o que estão fazendo, à maneira de um panóptico móvel, os Apps, cada vez mais, definem os gostos, as escolhas, os procedimentos, o lazer e as formas de mobilidade de milhões de usuários, que são induzidos a determinadas ações, gerando um comportamento de manada. Uma manada montada na tecnologia e facilmente dirigida para os caminhos ditados pelo poder pastoral dos Apps.

A cadeia de Apps criada para facilitar as nossas vidas estão roubando, com o nosso consentimento, a nossa liberdade, a liberdade de decidir, de improvisar, de errar. O filósofo francês Jean-Michel Besnier disse recentemente numa entrevista que “estamos cada vez mais cercados de máquinas que são pensadas para facilitar nossa vida”, para melhorar a circulação, a segurança e nos poupar tempo.  Mas isso também tem sequestrado as nossas iniciativas. “Nós nos tornamos cada vez menos livres - portanto, menos morais - e nos comportamos cada vez mais como máquinas. Isso abre as portas para uma desumanização. Ser livre é aceitar a sorte, tomar riscos (Besnier).”

“A visibilidade é uma armadilha [...] É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar" (Foucault). Eis a nossa condição, mas com um agravante: as tecnologias de controle e vigilância contemporâneas, diferentemente das fábricas-prisões e das câmeras de vigilância, são atraentes, sedutoras, viciantes, pagamos caro por elas e acreditamos que elas ampliam nossas redes de sociabilidade e nossas liberdades de escolha e movimento (Ou será que nós nos enredamos como peixes na poderosa rede (a armadilha) e usamos a tecnologia das redes para manter o outro sob nosso controle, vigilância e monitoramento, fiscalizando seus passos, gostos e comportamentos?).