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terça-feira, 21 de abril de 2020

HISTÓRIAS EXEMPLARES EM DEFESA DOS DIREITOS À VIDA E À LIBERDADE POLÍTICA: O INSTITUTO DO ASILO DIPLOMÁTICO NO CONTEXTO DAS DITADURAS SUL AMERICANAS.


HISTÓRIAS EXEMPLARES EM DEFESA DOS DIREITOS À VIDA E À LIBERDADE POLÍTICA: O INSTITUTO DO ASILO DIPLOMÁTICO NO CONTEXTO DAS DITADURAS SUL AMERICANAS.



O passado tem grandes lições a dar ao presente. Algumas, dignas de serem celebradas e reverenciadas. Outras, de serem lembradas com pesar e evitadas. Assim concebido, o passado é um tempo vivo, que habita uma dimensão mnemônica do presente, e um relicário inesgotável de exemplos que pode ser acionado em determinadas situações para injetar valores e sangue novo nas artérias do presente. Este uso moral do passado, com propósito exemplar e educativo, tem familiaridade com a função do historiador, apontada por Antoine Proust, “de alargar e enriquecer o presente da sociedade” (1996). A celebração das virtudes e lições do passado, acrescentaríamos, também amplia e delineia o horizonte ético do presente. A história é um campo de disputas políticas e sociais e em certas ocasiões a rememoração de exemplos do passado é um exercício oportuno e um contraponto necessário aos usos desinformados e/ou mal-intencionados de acontecimentos pretéritos.

Diversos “historiadores” (nome genérico para designar prosadores, oradores, políticos e filósofos que se interessaram pela história e escreveram narrativas históricas), da antiguidade e da modernidade europeia, escreveram sobre o passado com o propósito de dar lições ao presente, ou endereça-las ao futuro. Cada um à sua maneira, e atendendo ao que o seu tempo e o seu meio social exigiam, entendiam que o passado era uma espécie de reservatório de virtudes, de equívocos, de bons e de maus exemplos. A história deveria reter os bons exemplos e transmiti-los às futuras gerações para serem imitados. O valor e a utilidade da história eram avaliados em função desta capacidade de fornecer bons exemplos. O historiador ateniense Tucídides viveu e narrou a Guerra do Peloponeso. O registro da guerra, que ele considerava ser a maior de todas, era uma “aquisição para sempre”, exemplar para aquelas gerações que estavam por vir. Por conta da imutabilidade da natureza humana, guerras como aquela irromperiam novamente no futuro (Hartog, 2001).


Políbio, historiador e geógrafo grego romanizado, pretendia que sua obra fosse um guia para conduzir as ações no presente e no futuro, imitando os êxitos e evitando os erros cometidos. Cícero, advogado, orador e escritor romano, denominou este uso moral e pedagógico de historia magistra vitae (história mestra da vida). A história, definida por Cícero como “testemunha dos séculos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, mensageira do passado” (Hartog, 2001), forneceria exemplos úteis tanto por aquilo que deveria ser imitado quanto por aquilo que deveria ser evitado.  Maquiavel, na obra Comentário sobre a Primeira Década de Tito Lívio, exortava os governantes de sua época a “apoiar-se no exemplo da Antiguidade”. Espantava-se com a ignorância em relação ao “espírito genuíno da história”.  As lições da antigidade eram de vital importância quando se tratava de “ordenar uma república, manter um Estado, governar um reino, comandar exércitos e administrar a guerra, ou distribuir justiça aos cidadãos”. Disposto a “salvar os homens deste erro”, Maquiavel compôs “uma comparação entre fatos antigos e contemporâneos”, para facilitar a compreensão. E esperava que seus leitores pudessem “tirar daqueles livros toda a utilidade que se deve buscar no estudo histórico” (Maquiavel, 1994). Dois séculos depois de Maquiavel, em pleno século das Luzes, Voltaire (2007) reafirmou que a história era a mestra da vida e recomendou que os governantes podiam e deviam aprender com os exemplos históricos.

Para estes “historiadores”, a exceção de Voltaire, a história era cíclica e a natureza humana imutável. Os seres humanos eram os mesmos de sempre, movidos pelas mesmas paixões, e tendiam a repetir suas ações, virtuosas ou não. A história, por sua vez, repetia ciclicamente as mesmas formas de governo (Monarquia, Aristocracia e Democracia) e suas expressões degeneradas (Tirania, Oligarquia e Anarquia). Por isso, o olhar atento para o passado evitaria a repetição dos mesmos e recorrentes erros.

Não pensamos mais como estes “historiadores” e não entendemos a história e a natureza humana da mesma forma, mas a ideia de que os exemplos do passado podem orientar e iluminar as ações no presente continua sendo muito inspiradora. Cabe a nós, no tempo em que vivemos, decidirmos que aspectos e personagens do passado devem servir de guias das nossas lutas e das nossas escolhas éticas, morais e políticas.

Em tempos difíceis para os direitos humanos e para as liberdades políticas, como os que estamos vivendo, no Brasil e no mundo, relembrar as atitudes corajosas em defesa destes direitos no passado pode ser uma das alternativas para enfrentarmos a dureza do presente e construirmos caminhos para futuros possíveis, menos asfixiantes. Na década de 1970 os embaixadores do México e da Suécia, vivendo sob as ditaduras do Chile e do Uruguai, utilizaram-se do Asilo Diplomático e abriram as portas das Embaixadas para abrigar homens, mulheres e crianças perseguidos pelos militares. A atitude corajosa e humana dos embaixadores preservou a dignidade e salvou a vida de milhares de pessoas.

Asilo Diplomático, variação do asilo em sentido amplo, é o conjunto de regras e tratados que protege o indivíduo perseguido em seu próprio país por motivos políticos e que, por isso, não pode permanecer ou retornar ao convívio pátrio. A prática de buscar proteção contra perseguições é recorrente desde os tempos antigos, embora tenha assumido nomes e sentidos diversos em diferentes épocas. A palavra deriva do termo grego ásilon e do latim asylum, que significavam lugar inviolável, templo, local de proteção e refúgio (Ramos, 2011).

O Asilo Diplomático desenvolveu-se a partir de práticas antigas, gregas e romanas, como o refúgio em templos para fugir de perseguições, e o asilo religioso medieval, que tinha nas igrejas um espaço de proteção contra as violências e arbitrariedades decorrentes do desmoronamento das instituições políticas e da justiça romana. Na modernidade europeia a prática se secularizou, deixou de ter um caráter exclusivamente religioso e assumiu contornos mais próximos do que conhecemos hoje. A formação das monarquias centralizadas e a gênese de um ambiente internacional impuseram a necessidade de se firmar acordos e tratados e criar corpos e missões diplomáticas permanentes para representar os Estados soberanos em territórios estrangeiros. Aos Embaixadores eram concedidos privilégios para desempenhar suas funções sem pressões e constrangimentos. No século XVI, quando a noção de soberania ainda estava em gestação, Carlos V instruiu que as casas dos Embaixadores servissem “de Asilo inviolável, como outrora os templos dos deuses e que não seja permitido a ninguém violar este Asilo, qualquer que seja o pretexto invocado" (Fernandes, 1961). A inviolabilidade das residências dos representantes diplomáticos, efeito da consolidação da moderna diplomacia, era um inequívoco sinal de respeito pelo Estado representado. A inviolabilidade estendeu-se também aos meios de transporte dos diplomatas e, em alguns casos, aos anexos e ao bairro da Embaixada. Os sentidos e os propósitos do Asilo Diplomático se ampliaram e se estenderam também aos perseguidos em geral, inclusive criminosos comuns. O cenário modificou-se com as revoluções liberais, nos séculos XXVII e XVIII, que colocaram freios ao poder arbitrário dos reis absolutistas. O Asilo concedido a qualquer criminoso que se arrependesse passou a ser concedido apenas aos perseguidos políticos, indivíduos que sofriam ataque injustificado do poder. O Asilo assumiu um sentido mais específico, de garantia essencial à promoção de direitos, pois impedia a violação da liberdade de expressão e direitos de participação política (Ramos, 2001, p.16). O A auge do Instituto do Asilo na Europa foi no século XVIII, mas a prática estendeu-se até a segunda metade do século XIX, quando conheceu um recuo. Durante a reunião de 1895 do Instituto de Direito Internacional, em Cambridge, um dos participantes declarou que julgava, na Europa, ser tão raro e improvável o Asilo Diplomático, que não haveria utilidade em ocupar-se do tema (Fernandes, 1961).

O Asilo Diplomático é uma invenção europeia, mas foi na América Latina que a prática se enraizou e se notabilizou por meio de Tratados e Convenções promovidos no final do século XIX e na primeira metade do século XX. O turbulento contexto de formação e consolidação dos Estados nacionais gerou enorme instabilidade política na região, provocada pelas lutas entre diferentes grupos que disputavam a primazia política, nas entranhas dos estados em gestação, que explodiu em diversas guerras civis, golpes de estado e revoluções. Diferenças políticas inconciliáveis resultaram em represálias e perseguições aos adversários. Dezenas de indivíduos utilizaram as fronteiras extraterritoriais - Embaixadas, navios de guerra, Consulados - para escapar das perseguições políticas. Na grande maioria dos casos foram as grandes potências europeias e os Estados Unidos que concederam o Asilo. Um dos casos mais conhecidos foi o governador de Buenos Aires, o general Juan Manuel de Rosas. As tropas rosistas foram derrotadas em 1952, na Guerra Civil que envolveu Uruguai, Argentina e Brasil, pela influência sobre o Paraguai e hegemonia na região. Logo depois de renunciar, Rosas se dirigiu à legação britânica e solicitou Asilo Diplomático. Robert Gore, Encarregado dos Negócios em Buenos Aires, sabendo da gravidade da situação, acompanhou o ex-governador e sua filha até o porto para embarcar numa fragata inglesa (Gigena, 1960).

O primeiro esforço multilateral para regulamentar regionalmente o Asilo Diplomático teve como ponto de partida uma iniciativa do Peru, em 1867. O Ministro de relações exteriores convocou uma Conferência para discutir o tema, mas as controvérsias impediram o avanço dos debates. Em 1889 um passo importante foi dado com a assinatura do Tratado de Direito Penal Internacional, em Montevideo, que consagrou o Asilo Diplomático. As normativas estabelecidas na capital do Uruguai, no entanto, não detalharam satisfatoriamente as formas de utilização do Instituto. Em Convenções posteriores, em Havana, em 1928, em Montevideo, em 1933 e 1939, e em Caracas, em 1954, dedicadas especificamente ao tema, a definição de Asilo Diplomático, e as regras de funcionamento, para evitar abusos, foram sendo aos poucos firmadas (Fernandes, 1961).

A prática da concessão do Asilo, utilizada desde o século XIX, e as Convenções e Tratados para dar-lhe forma jurídica mais precisa, criaram uma cultura jurídica e política que o consagraram regionalmente. A prova de fogo viria nas décadas de 1960 e 1970, com as ditaduras civil-militares que dominaram o cenário político sul americano. Num contexto de intensa perseguição política e de brutal violação dos direitos humanos, o Asilo Diplomático foi respeitado. As Embaixadas tornaram-se ilhas invioláveis de liberdade provisória até a formalização e a concessão do salvo-conduto, que autorizava as pessoas a saírem do país. No caso chileno, que registrou o maior número de asilados diplomáticos, milhares de perseguidos políticos (funcionários do governo, artistas, militantes de vários grupos políticos e estudantes), procuraram Asilo nas representações diplomáticas estrangeiras, especialmente do México e da Suécia. As Embaixadas receberam apoio de vários organismos internacionais, como o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), que colaboravam intensamente alocando os asilados em vários países. Mas nem todas as Embaixadas estavam dispostas a receber os perseguidos. A concessão do Asilo dependia de duas coisas: da posição política do governo e da posição pessoal do Embaixador. Não adiantaria nesta época, por exemplo, recorrer à Embaixada do Brasil, cujas orientações e instruções estavam alinhadas com os governos ditatoriais.

A atuação e intervenção de três Embaixadores em defesa dos perseguidos pelas ditaduras, fazendo valer o instituto do Asilo Diplomático, são dignas de serem lembradas e celebradas. Vicente Muñis Arroyo (Embaixador mexicano no Uruguai), Harald Edelstam (Embaixador sueco no Chile) e Gonzalo Martínes Corbalá (Embaixador mexicano no Chile), não hesitaram no socorro às vítimas e não cederam às pressões dos ditadores.

Vicente Muñiz Arroyo, Embaixador mexicano no Uruguai, outorgou centenas de Asilos Diplomáticos e abrigou os perseguidos políticos, entre 1974 e 1977, tanto na Embaixada quanto em sua própria residência oficial em Montevideo. Ambas as instalações não apresentavam condições e infraestrutura para receber tanta gente. Por isso, o Embaixador assumia as despesas com alimentação, roupas e colchões para os asilados, em virtude da emergência da situação. Arroyo chegou a abrigar, em 1976, quase 200 pessoas em sua residência.  Além de sua casa, disponibilizava para os inesperados hóspedes suas louças, seus discos, sua roupa, sua cama, suas próprias toalhas, e o que faltava comprava e pagava do próprio bolso e não enviava as contas e despesas mensais ao governo mexicano. Entre os asilados havia um número considerável de crianças. Arroyo passou então a promover escolas infantis improvisadas e festas de aniversário, decorando a Embaixada com balões e enfeites (Bielous, 2011). Além da corajosa postura política de sair em defesa e abrigar os perseguidos, o Embaixador ainda demonstrou grande sensibilidade em relação à infância, preservando a inocência das crianças e lhes oferecendo um pouco de alegria em meio à violência incompreensível que as cercava e ameaçava as famílias.

O testemunho de um asilado mostra o empenho do Embaixador para tornar a experiência do Asilo menos traumática: “[...] nos trasladaron a finales de enero a la embajada. [...] Cuando llegamos, el cuento de todos los niños era que todos tenían un regalo que habían recibido de don Vicente el día de Reyes; a lo largo de la escalera que subía a su habitación él habia dejado un paquetito en cada escalón. A los adultos les entregaba regalos en broma [...] a los niños pequeños, juguetes”. Para outro asilado, Muñiz Arroyo: “Fue una gente sumamente generosa, que en ningún momento nos hizo sentir como personas que teníamos que irnos de nuestro país por circunstancias ajenas a nuestro deseo [...] nos hizo sentir como sus huéspedes” (Bielous; Castro, 2008).

Numa linha de atuação semelhante, o embaixador sueco no Chile, Harald Edelstam, saiu em socorro dos que tiveram seus direitos violados. Nos primeiros meses da ditadura chilena, concedeu diversos Asilos Diplomáticos a perseguidos políticos. Segundo estimativas, baseadas em relatos de testemunhas, teria salvo mais de 1300 pessoas da prisão ou da morte, inclusive brasileiros, entre setembro e dezembro de 1973. Desde os primeiros momentos do golpe, Edelstam escondeu refugiados na Embaixada sueca e, dirigindo o próprio carro, saiu em expedições noturnas em busca de outros que necessitavam de ajuda. Com frequência, ia até o centro de detenção montado no Estádio Nacional e salvava prisioneiros da execução. De uma só vez retirou 54 uruguaios que iriam ser executados no dia seguinte (Camacho, 2006).

 Edelstam também emitia salvo-condutos, ajudava a criar documentos falsos para perseguidos, fez contato com outras embaixadas para abrigar refugiados e coordenou ações com organizações internacionais para a fuga dos ameaçados. Desafiando abertamente a ditadura, declarou vários locais como território sueco, e dizia que se fossem atacados seria uma declaração de guerra à Suécia. (Wallin, 2015). Num primeiro momento, Edelstam tentou convencer as pessoas que buscavam ajuda na Embaixada sueca a se dirigir às embaixadas dos países latino-americanos com os quais o Chile possuía convênio de Asilo para perseguidos políticos. A atitude do Embaixador demonstra que o Instituto do Asilo Diplomático estava em vigor e era reconhecido, mesmo naquela situação excepcional de ruptura democrática. Mas nem todas as sedes diplomáticas se dispunham ou podiam receber os perseguidos. As embaixadas do Brasil e do Uruguai, por exemplo, representavam países que também estavam sob ditaduras militares, e outras, como a do México e da Argentina, estavam no limite das suas capacidades. Por isso, Edelstam decidiu abrir as portas aos que buscavam ajuda (Camacho, 2006).

A embaixada cubana, representada naquele momento pela Suécia, por conta da ruptura entre Cuba e Chile, também passou a receber asilados. A sede cubana, de dimensões maiores, foi a que acomodou o maior número de pessoas. Foram utilizados também uma oficina comercial e o Consulado cubanos.  A própria residência do Embaixador sueco, sob imunidade diplomática, serviu de abrigo para os perseguidos. Para atender aos asilados, Edelstam contratou temporariamente vários cidadãos suecos que estavam no Chile para que ajudassem com a compra de alimentos, com a limpeza e a lavanderia, e no resgate de pessoas e materiais valiosos (Camacho, 2006).

Poucas semanas após o golpe, diversos asilados suecos, uruguaios, brasileiros, bolivianos, cubanos, equatorianos, peruanos, argentinos e chilenos, estavam divididos entre as delegações sob a responsabilidade de Edelstam. Krister Wickman, Ministro de Assuntos Exteriores da Suécia, afinado com a determinação do Embaixador, autorizava a ida dos asilados para a Suécia. No final de setembro, mês do golpe, foram 200 autorizações; em janeiro de 1974, chegou a 700 (Camacho, 2006).

As ações do embaixador sueco, e a atenção que a imprensa lhe dedicava, se tornaram um incômodo para a Junta Militar chilena. Em dezembro de 1973, foi declarado persona non grata, e obrigado a deixar o Chile. Edlestam, segundo Camacho, era um “humanista comprometido com os direitos humanos e a democracia, mas cuja personalidade o levou a ter conflitos com os governos de alguns dos países em que exerceu suas funções, especialmente onde ocorriam perseguições políticas, como a Noruega, durante a Segunda Guerra Mundial, e Indonésia ou Guatemala, nos anos sessenta” (2006, p.37, tradução livre). Edelstam foi o único Embaixador expulso do Chile, mas a sua partida não representou o fim dos Asilos concedidos pela Suécia. Seu sucessor, Carl-Johan Groth, de uma maneira mais discreta, manteve a linha política (Camacho, 2006, p.37).

 
Edelstam, com a bandeira do Chile no pescoço e flores na mão, sendo recebido no aeroporto, na Suécia, por asilados chilenos e latino-americanos, em 10 de dezembro de 1973. Foto: Sven-Erik Sjöberg / DN / Scanpix

O Embaixador mexicano no Chille, Gonzalo Martínes Corbalá, também enfrentou a violência da ditadura e usou da inviolabilidade da sua condição e do seu prestígio para acolher os solicitantes de Asilo. A sede da Embaixada abrigou 720 adultos e 36 crianças. Corbalá relatou que as pessoas que solicitavam Asilo "chegavam de 10 em 10, chegavam em grupo de 20”, e ele imediatamente os fazia entrar, pois “não se podia protege-los se não entrassem". Da Embaixada, os asilados partiam para México. O primeiro dos cinco voos, lavando 120 asilados, partiu 4 dias após o golpe. Entre os passageiros, estavam Hortensia Bussi, a viúva de Allende, e suas duas filhas. Pablo Neruda também recebeu oferta de Asilo no México, mas “desistiu” na última hora, alegando falta de ânimo. Corbalá chegou a receber, de Matilde, esposa do poeta, um casaco, o chapéu e as malas para a viagem, mas não deu tempo. Neruda foi hospitalizado e morreu, 12 dias após o golpe, e um dia antes do voo para o México (Quesada; Santaeulalia, 2015). Embora o laudo médico indique o agravamento do câncer da próstata, indícios fortíssimos sugerem que Neruda foi envenenado na véspera da viagem.

Na ficha de solicitação de Asilo, as pessoas escreviam os motivos de buscar proteção junto à delegação mexicana: "porque o México protege os perseguidos nesta noite escura que açoita meu país", escreveu um dos asilados. As fichas foram preenchidas e assinadas por sindicalistas, operários, historiadores, militantes socialistas, limpadores de vidraças, artistas, editores de livros e por políticos próximos a Allende (Quesada; Santaeulalia, 2015). Os Asilos na delegação mexicana ocorreram até 1974, quando o governo mexicano rompeu relações diplomáticos com o Chile, retomando-as somente em 1990.

Os gestos humanitários e a intransigente defesa dos direitos dos asilados promovidos pelos Embaixadores, infelizmente pouco conhecidos, são valorosas lições de virtude política, de dignidade e ajuda ao próximo, que contrastam com os horrores e violências implacáveis praticados pelos militares e pelos Estados ditatoriais sul-americanos.

A polarização política no Brasil e na América do Sul, agudizada nos últimos anos, reabilitou forças obscuras, identificadas com a tortura, com a censura e com a truculência política, trouxe de volta projetos conservadores e autoritários e abriu espaços para os militares retornarem à política. É neste contexto que devemos escavar o passado em busca de bons exemplos. Uma arqueologia das virtudes dignas de serem “imitadas”, diriam os historiadores antigos, pode nos servir de norte político e moral. Imitar os exemplos do passado, por óbvio, não tem a ver com a replicação ou com o simples arremedo do que já foi feito. Além de impossível e indesejável, porque as condições nunca são as mesmas. No nosso caso, podemos substituir imitação por inspiração.  Arroyo, Edelstan e Corbalá são figuras que nos inspiram a atravessar períodos de turbulência sem perder a dignidade, sem se acovardar e sem se curvar aos tiranos. Como bem disse Eliane Brum, numa reflexão inspiradora para a virada do ano: “Este é o desafio de 2020. O ano novo não está dado. 2020 só será novo se nossa resistência resgatar o presente das mãos dos déspotas. Esta é a única resolução possível diante do que vivemos e do que testemunhamos. Cada um de nós precisa se responsabilizar pelo horror do nosso tempo”.
O futuro não está dado. Nossas escolhas no presente refletem as leituras que fazemos do passado. Alguns preferem lembrar Goebbels e homenagear Brilhante Ustra e Pinochet. As escolhas e os exemplos que nos guiam refletem o caráter, o norte ético e os valores que praticamos. Estes homens, e o horror que seus nomes evocam, turvam o presente e apontam para pesadelos futuros.

As minhas escolhas são outras. Eu fico do lado de Corbalá, de Edlestain e de Arroyo, de homens que enfrentaram o horror, desafiaram tiranos e se posicionaram em defesa da vida, da decência e da dignidade humana. E fizeram o que fizeram sem esperar nada em troca. Uma lição para sempre!

Referências Bibliográficas
CAMACHO, Fernando. Los asilados de las Embajadas de Europa Occidental en Chile tras el golpe militar y sus consecuencias diplomáticas: El caso de Suecia. Revista Europea de Estudios Latinoamericanos y del Caribe, Espanha, n.81, 2006.
BIELOUS, Silvia Dutrénit. La embajada indoblegable. Montevideo: Fin de Siglo, 2011.
BIELOUS, Silvia Dutrénit; CASTRO, Ana Buriano. Refugio en el sur, un embajador inolvidable: eje memorístico e identitario en nuevas experiencias testimoniales. CUADERNOS DEL CLAEH n.° 96-97 Montevideo, 2.' serie, año 31, 2008.
FERNANDES, Carlos Augusto. Do Asilo Diplomático. Coimbra: 1961.
GIGENA, Carlos Torres. Asilo Diplomático: su práctica y su teoría. Buenos Aires: La Ley S. A. Editora e Impresora, 1960.
HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacynto Lins Brandão. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2006.
MAQUIAVEL. Comentário sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Brasília: Editora a UNB, 1994.
PROUST, Antoine. Dez lições sobre a história. Autêntica, 2009.
SILVA, João Jorge Massaneiro da. A utilização do Asilo Diplomático na América do Sul durante as Ditaduras Militares nas décadas de 1960, 1970 e 1980: um estudo de caso do Chile sob a ditadura de Pinochet. Monografia defendida no curso de relações Internacionais, da UNIVALI, em 2016.
POLÍBIO. História. Brasília: Editora da UNB, 1985.
QUESADA, Juan Diego; SANTAEULALIA, Inés. “Porque o México protege os perseguidos nesta noite negra...”. Em País, 2015.
RAMOS, André de Carvalho. Asilo e Refúgio: semelhanças, diferenças e perspectivas. In: ______: RODRIGUES, Gilberto; ALMEIDA, Guilherme Assis de (Orgs.). 60 anos de ACNUR: perspectivas de futuro. São Paulo: CLA Cultural, 2011. p. 15-44.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: Universidade de Brasília, 1986.
VOLTAIRE. A filosofia da história. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
WALLIN, Claudia Varejão. Filme conta história de ‘Schindler sueco’ da ditadura chilena. ESTADÃO, São Paulo, 23 nov. 2007. Cultura Cinema.


sábado, 29 de fevereiro de 2020

NEM “REVOLUÇÃO”, NEM “MOVIMENTO DE 1964”: FOI G O L P E.


NEM “REVOLUÇÃO”, NEM “MOVIMENTO DE 1964”: FOI G O L P E.



A situação política do Brasil é preocupante. Mais uma vez, em nome da democracia, atropelam-na sem constrangimentos. Fala-se abertamente no fechamento do Congresso e do STF e se referem ao tempo da ditadura como uma idade heroica e de ouro, quando o suposto perigo comunista foi varrido do Brasil. O presidente da república, o chanceler e um ministro do STF declararam recentemente que a tomada do poder pelos militares em março de 1964 não foi golpe. As declarações foram públicas e sintonizadas com o relativismo histórico peculiar (porque meramente opinativo) de setores da classe média, do empresariado e de alas das forças armadas, que se populariza no Brasil do WhatsApp.

Não sou avesso às revisões históricas, muito menos à reformulação ou ao questionamento dos conceitos e noções que explicam acontecimentos do passado. Pelo contrário. As demandas e as novas perspectivas do presente exigem dos historiadores e dos cientistas sociais, de tempos em tempos, uma reavaliação rigorosa dos seus pressupostos, categorias e a proposição de novos ângulos de observação que nos permitam um olhar mais amplo e matizado sobre o passado. Sem isso, corremos o risco de naturalizar conceitos e absolutizar certas interpretações. Revisão, no entanto, não pode ser confundida com relativismo conveniente. É preciso ter muito cuidado, especialmente quando o tema revisto mexe com questões ainda muito vivas na sociedade brasileira, como o golpe de 64 e a subsequente ditadura civil-militar. Opinar irresponsavelmente para plateias volúveis e leitores desinformados sobre assuntos delicados é colocar a bola na marca do pênalti para aventureiros oportunistas e milícias digitais.


“Movimento de 1964”

Em outubro de 2018, numa palestra na Faculdade de Direito da USP sobre os 30 anos da Constituição de 1988, o ministro do STF, Dias Toffoli, expôs sua mais recente convicção: “Hoje, não me refiro nem mais a golpe nem a revolução. Me refiro à movimento de 1964”.

Toffoli não detalhou nem fundamentou as razões da mudança de posição. Apenas disparou-a na direção da plateia. Neste caso, estamos diante de um relativismo inconsequente, baseado no mero achismo. Não se trata de uma revisão séria do passado, com base em pesquisas e estudos.

Uma afirmação como esta - no momento delicado que estamos vivendo, com a ascensão política de militares abertamente identificados com a intervenção de 1964, apoiados por setores expressivos da classe média e do empresariado - pode ser lida de duas maneiras: Toffoli está sendo ingenuamente inoportuno e irresponsável (o que me parece mais provável) ou manifesta uma tendência política em conformidade com o conservadorismo antidemocrático em voga.

O ministro atribui a mudança de perspectiva ao aprendizado que teve com o ministro da Justiça do governo Temer, Torquato Jardim. No caso do Torquato, o emprego da terminologia “movimento” tem um que de auto-absolvição. Ele exerceu inúmeros cargos e funções nas décadas de 1970 e 1980, sob os governos Médici, Geisel e Figueiredo. Entre outras ocupações, foi chefe do Gabinete Civil da Presidência da República durante o governo do general João Figueiredo. Assumir que houve um golpe que resultou numa ditadura é admitir que prestou serviços importantes para um regime ilegítimo e anticonstitucional.

Ainda que entendamos que se trata apenas de uma visão (inoportuna) do ministro sobre os acontecimentos, a situação é mais delicada. A posição que ocupa exige dele mais cuidado com certas afirmações e um olhar mais acurado sobre o passado recente. Na sequência do discurso, Toffoli detalhou um pouco mais o argumento: “Os militares foram um instrumento de intervenção. Se algum erro cometeram foi de, ao invés de serem o [poder] moderador, que, em outros momentos da história, interveio e saiu, eles acabaram optando por ficar, e o desgaste de toda a legitimidade desse período acabou recaindo sobre essa importante instituição nacional que são as Forças Armadas, também responsáveis pela nossa unidade nacional.”

Se algum erro cometeram”, ministro? O senhor tem alguma dúvida? E o erro, se é que foi cometido, foi o de “ficar” no comando político do país? Só isso? A tomada do poder pela força das armas foi acertada? A violência de estado, a derrubada de um presidente democraticamente eleito, as perseguições políticas, a censura, os expurgos das instituições, as torturas, nada disso, na sua avaliação, pode ser visto como erro?

Chamar o Golpe de “movimento” é descaracterizar a violência política que o presidiu, atenuar o caráter disruptivo da ação dos militares e relativizar o ataque à Constituição (Logo ele, um juiz, num evento sobre a Constituição). A ideia de “movimento” empresta certa legitimidade à intervenção de 64 e tira das costas dos militares o peso e a responsabilidade pelo que se fez.

A opinião do ministro não espelha um novo olhar, que nos ajuda a entender melhor o que aconteceu há 50 anos. Não conheço as intenções do ministro, mas a declaração, da maneira como foi dada, e observando o momento político do país, acaba por reforçar os argumentos em favor de uma nova intervenção das forças armadas. É um flerte público com a indecência.

A terminologia “movimento” absolve os militares e reforça, mesmo que não seja esta a intenção, a versão de que a intervenção foi necessária. Aliás, o conteúdo do discurso de Toffoli tem um indisfarçável tom de absolvição. A ideia de que “os militares foram um instrumento de intervenção”, sobre os quais recaiu todo o ônus, é quase um pedido de desculpas às forças armadas por terem sido levadas pela pressão que vinha da sociedade a intervir e, posteriormente, arcarem sozinhas com a culpa. No limite, o argumento infantiliza as forças armadas e as transforma num joguete de forças políticas mais consistentes.

Pare reforçar seu ponto de vista, Toffoli citou o historiador Daniel Aarão Reis Filho e sugeriu que, na época, tanto a esquerda quanto a direita conservadora tiveram a conveniência de não assumir seus erros que antecederam 1964, passando a atribuir os problemas aos militares. De acordo. Mas isso não é argumento para sustentar que não houve um Golpe.

O apoio que Toffoli foi buscar no Daniel Aarão foi indevido e equivocado. O próprio historiador o desacreditou. Segundo Aarão: “foi muito infeliz da parte dele dizer que abandona a terminologia ditadura, que expressa perfeitamente o estado de exceção que se passou no País, para assumir um outro conceito. Vindo da parte de um juiz, presidente do STF, é uma coisa que provoca espanto. Eu estou estarrecido de ver um juiz, que deveria ser o guardião da lei, relativizando o desrespeito à lei”. Aarão foi ainda mais incisivo: “Toffoli imagina amaciar a extrema direita com acenos conciliadores”.

A ideia de “movimento” só é possível se considerarmos que houve manifestações em favor de uma intervenção militar, que levaram ao Golpe e, consequentemente, à ditadura. Os anos anteriores a 64 foram de fato marcados por articulações políticas, explicitas e veladas, passeatas e apelos à intervenção dos quarteis. A confluência destas manifestações, civis e militares, que poderíamos caracterizar como um movimento, levou ao Golpe. Uma coisa não elimina a outra. Os termos (movimento e golpe) não são excludentes. Enfatizar o “movimento” e descaracterizar o golpe, como fez Toffoli, é uma escolha política desamparada de estudos sérios.

O nome correto, portanto, para a intervenção militar de 64, com apoio de parte da sociedade civil, é GOLPE. Ainda que o governo do presidente João Goulart não agradasse aos militares, à classe média, à igreja e a setores da imprensa e do empresariado, a ação dos militares foi um ataque direto à democracia e a Constituição. Havia de fato um movimento pela renúncia ou deposição do presidente, orquestrado pela mídia, principalmente o jornal carioca Correio da Manhã que, por meio de sucessivos editoriais às vésperas do golpe, atacando o governo de Jango, construiu o caminho para a legitimidade da ação militar. Num dos editoriais mais famosos e inflamados, intitulado “Basta”, estampava-se o apelo: “O Brasil já sofreu demasiado com o atual governo. Agora basta!” De mãos dadas com o jornalismo lacerdista, a igreja católica, na linha de frente do golpismo, distribuía livrinhos anticomunistas nas missas, demonizando a esquerda e alertando para o perigo que estava a caminho. Este material, que circulou fartamente em todo o Brasil, muito contribuiu para a histeria anticomunista que precedeu e, em larga medida, legitimou socialmente o Golpe. Mas nada disso autoriza dizer que não houve um Golpe. Jango fora eleito democraticamente pelo voto popular e ocupava a cadeira presidencial, conforme mandava a Constituição, por conta da renúncia de Jânio Quadros. Depor o seu governo sem um fundamento constitucional foi um Golpe de Estado. E não se trata de simpatia ou antipatia pelo Jango. Trata-se de precisão conceitual e da utilização da terminologia correta, do ponto de vista da ciência política. Se o governo desagradava tanto, havia uma solução democrática para “depô-lo”: as eleições presidências marcadas para 1965.

Norberto Bobbio, filósofo político e historiador do pensamento político, defensor da democracia social liberal, crítico de Marx, do bolchevismo e do fascismo, nos ajuda a colocar os pingos nos is. “Na maioria dos casos”, diz Bobbio, “o Golpe de Estado moderno consiste em apoderar-se, por parte de um grupo de militares ou das forças armadas em seu conjunto, dos órgãos e das atribuições do poder político, mediante uma ação repentina, que tenha uma certa margem de surpresa e reduza, de maneira geral, a violência intrínseca do ato com o mínimo emprego possível de violência física”. O golpe militar, ou pronunciamento, segundo palavra cunhada pela tradição espanhola, tornou-se, na segunda metade do século XX, a forma mais frequente do Golpe de Estado.

O que aconteceu em março de 64 foi um golpe perpetrado pela direita golpista, que no Brasil nunca conviveu bem com a diferença política. Direita e esquerda, naquele contexto, não eram nada democráticas. A diferença é que a esquerda não tinha força e não tinha base popular para uma revolução do tipo socialista. Politicamente, a esquerda era pouco expressiva, embora bastante ativa nos meios estudantil, sindical e cultural. A suposta esquerdização do governo Jango foi a desculpa (ou farsa) que as forças golpistas ofereceram para justificar uma intervenção para “salvar” o Brasil do perigo comunista (naquele momento, representado pelas reformas de base do governo Jango). Um parêntese (Sobre a acusação falaciosa de que Jango transformaria o Brasil numa nova Cuba, vale a pena ler as declarações de sua esposa, Maria Thereza Goulart, numa entrevista à Paula Sperb, da Folha de São Paulo. Em resposta à pergunta sobre a implantação de um regime comunista no Brasil, Maria Thereza respondeu: “Imagina, comunista! Nunca passou pela cabeça dele. Ele vem de uma família extremamente católica, uma família bonita, dedicada, muito católicos. Era uma coisa que não tinha explicação. Não tinha nada de comunista.” Jango era um rico fazendeiro, nacionalista e desenvolvimentistas, que, a exemplo de outros políticos da época, como JK, recebeu apoio dos comunistas. No comício das reformas de base, Maria Tereza, quando viu as bandeiras vermelhas na multidão, disse ao então ministro da educação Darcy Ribeiro: “São muitas bandeiras vermelhas. Isso não é coisa boa!”).
No Brasil de 64 e no Brasil de hoje, a tática empregada pela direita farisaica é a mesma: acusar de comunistas e esquerdistas todos os que discordam de suas visões conspiratórias e se opõe ao seu projeto fascista e autoritário.
Menos de um mês depois do discurso pronunciado na USP, Toffoli tropeçou na própria fala. Em reação ao vídeo desastroso de Eduardo Bolsonaro, sugerindo que um soldado e um cabo eram suficientes para fechar o STF, disse que “atacar o judiciário é atacar democracia”. De acordo, ministro. Então não custa lembrar que o ataque à democracia promovido pelo golpe de 64 também atingiu duramente o STF. Dois casos se tornaram celebres e emblemáticos: “o caso das chaves” e o da “lei da mordaça”. Assim que tomou posse, Castelo Branco fez uma visita de “cortesia” ao STF. Era uma tentativa de enquadrar o Tribunal nas diretrizes e orientações “da revolução”. A resposta do ministro Álvaro Ribeiro da Costa, presidente do STF, foi corajosa e exemplar. Disse que o Tribunal não deveria seguir nenhuma ideologia revolucionária, sobretudo um golpe. Diante da resposta de Castelo Branco de que quem mandava era o Executivo, Ribeiro da Costa retrucou que se algum ministro fosse cassado, ele fecharia as portas do Tribunal e entregaria as chaves ao porteiro do palácio. As coisas não ficaram apenas nesta troca dura de palavras entre o ministro e o presidente. Castelo Branco não cassou os ministrou, mas, por meio do AI2, em outubro de 1965, aumentos de 11 para 16 o número de magistrados e nomeou 5 ministros, alinhados com o regime. Pretendia com este gesto ter a maioria dos juízes a favor do governo. Em 1967 nomeou Adaucto Lucio Cardoso, para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria de Ribeiro da Costa. Mas o tiro saiu pela culatra. No governo Médici, foi aprovado pelo Congresso o decreto-lei 1.077, de março de 1971, que trazia para o ordenamento jurídico brasileiro a censura prévia de qualquer livro que se desejasse publicar (A fiscalização dos escritos ficaria a cargo da Polícia Federal). O decreto, no entender da oposição, e do MDB, era inconstitucional e atentava contra a liberdade de expressão. Muito apropriadamente, a norma ficou conhecida como “lei da mordaça”. Acionado, o STF informou que não se intrometeria nos assuntos da “revolução”. Na sessão que examinaria a reclamação da oposição, Adaucto Cardoso, o ministro indicado por Castelo Branco, levantou-se inconformado, tirou a toga e anunciou que não voltaria mais ao Tribunal. Em seguida, o ministro solicitou a aposentadoria. Adaucto dava uma lição de autonomia e inconformismo aos seus pares que, se comportando como rebanho ilustrado, abaixavam docilmente a cabeça para a truculência da ditadura. O STF, criado para ser o guardião da Constituição, havia se tornado um “enfeite institucional” (expressão utilizada por Ivan Furman), inútil e indecoroso. Toffoli deveria se espelhar nas lições de independência de Álvaro Ribeiro e Adaucto Cardoso e não nos ensinamentos duvidosos de Torquato Jardim.


A “revolução de 64”.

Tão equivocado quanto o conceito de “movimento” é o de “revolução”. Os militares golpistas chamavam, e continuam chamando, o golpe de 64 de “revolução redentora”, ou contrarrevolução, argumentado que havia uma revolução socialista em curso. Apoiadores civis, como Roberto Marinho, também denominavam o golpe de revolução. No editorial do jornal O Globo, em março de 1984, por ocasião dos 20 anos do golpe, o jornalista deixou o seguinte testemunho: “Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada.”]

Em nenhum sentido podemos afirmar, a não ser por conveniência, que os militares, apoiados pelos civis, foram protagonistas de uma “revolução”. Nem o movimento que levou ao golpe nem os desdobramentos do golpe foram revolucionários. Um golpe na democracia, que encurralou o país numa ditadura vergonhosa e criminosa que durou 21 anos, não pode ser chamado de revolução. A bem da verdade, o Brasil retrocedeu, tropeçou na democracia e deixou para o futuro, para a nossa cultura política, uma herança de violência, autoritarismo e impunidade com a qual nos defrontamos hoje (O bolsonarismo é herdeiro do que de pior o golpe de 64 legou para o Brasil). Chamar o golpe de 64 de revolução, a exemplo do que se fez com o golpe de 1930, consagrado até hoje na historiografia como “Revolução de 1930”, é uma tentativa de conferir legitimidade à ação truculenta de derrubada de governos pela força das armas, característico da instabilidade política brasileira (Mas é importante destacar que o golpe de 1930, diferentemente do golpe de 64, abriu caminho para mudanças sociais e políticas significativas no Brasil. A legislação trabalhista, o projeto nacional baseado na industrialização e o sepultamento das práticas políticas da república oligárquica, são alguns exemplos das transformações, revolucionárias do ponto vista político e sociológico, que modernizaram o país, ainda que de forma autoritária).

O argumento da contrarrevolução é ainda mais vazio. Nem de longe havia uma revolução em curso no Brasil, para admitir uma contrarrevolução. As reformas de base propostas pelo governo de João Goulart visavam o desenvolvimento de um capitalismo nacional autônomo. O apoio que Jango recebia de parte da esquerda não fazia do seu governo um governo com tendências socialistas. Era um apoio estratégico que tinha a ver com as expectativas da esquerda, não de Jango. Além disso, as forças de esquerda no Brasil, naquele momento, não tinham a força e a articulação que a cabeça conspiratória dos militares e dos grupos civis anticomunistas imaginavam. Não passava de paranoia anticomunista. A mesma paranoia que vimos renascer recentemente e que embalou a eleição de Jair Bolsonaro. Naquela época, a estrutura de poder mundial conhecida como guerra fria explicava, de alguma forma, a histeria anticomunista. Hoje, não passa de conspiracionismo requintado, de charlatanice. Para o delírio dos fanáticos, vamos lembrar a ironia mordaz do velho Marx: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Pegando carona na sacada de Marx, e modelando-a à nossa tragicômica paróquia, diria que farsescamente o presidente Jair Bolsonaro declarou, às vésperas do 55º aniversário do golpe, que o exército deveria comemorar a tragédia política de 64.

Otávio Rêgo Barros, porta voz da presidência, explicou a posição do presidente: “O presidente não considera 31 de março de 1964 o golpe militar. Ele considera que a sociedade reunida, e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se civis e militares e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país num rumo que, salvo melhor juízo, se isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém. E o presidente já determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com relação a 31 de março de 1964, incluindo uma Ordem do Dia, patrocinada pelo Ministério da Defesa, que já foi aprovada pelo nosso presidente”.

Nenhuma surpresa em relação a Bolsonaro. Se até o presidente do STF suavizou a intervenção dos quartéis em 64, o que esperar de um presidente da república que se declara publicamente admirador do coronel Ustra, um torturador covarde que foi condenado duas vezes pela justiça brasileira!

Sob o efeito da declaração da presidência, o vice-presidente e um empresário bolsonarista realimentaram a retórica anticomunista. Hamilton Mourão disse que as celebrações do 31 de março deveriam ter um tom conciliador. “O que vai ser feito em termos de ordem do dia vai ser algo muito conciliador, colocando que as Forças Armadas combateram o nazi-fascismo, combateram o comunismo e isso é passado, faz parte da história”. Luciano Hang, dono da Havan, costuma dizer que se lançou nas redes sociais para evitar que o Brasil se torne um país comunista/socialista. A fala do Mourão é previsível, e o tom moderado e conciliador, adotado já nos primeiros dias do governo, é o de quem sabe, ou presume, que a presidência pode, mais cedo ou mais tarde, cair no seu colo. Mourão é um defensor da velha guarda dos militares de 64, e já foi mais inflamado nas suas declarações. Na condição de vice-presidente, atento aos efeitos políticos da polarização, que tornou Bolsonaro refém das próprias falas, soube adaptar seu discurso aos novos tempos. O caso de Luciano Hang é um pouco mais sério. O empresário, popular nas mídias sociais, se julga numa cruzada heroica, do bem contra o mal, típica dos fanáticos maniqueístas, contra o fantasma do comunismo, tema que ele demonstra desconhecer profundamente. Popular e desinformado, misto de empresário bem-sucedido com macartista fora de época, tornou-se uma celebridade proferindo discursos rasos e espalhando bobagens nas redes sociais. Hang é figura emblemática do bolsonarismo. No twitter, o empresário manifestou-se pela comemoração das vitórias contra o comunismo, em 1964 e em 2018, e negou que tenha havido um golpe em 64: “Jamais o Brasil irá reconhecer o que nunca ouve. Sem os militares o país seria uma Cuba desde 1964. Viva os militares que venceram os guerrilheiros”. Daqui alguns anos, quando estes tempos tiverem passado, ele será lembrado como figura caricata e folclórica do conservadorismo truculento, autoritário e vazio de ideias que ameaçou a jovem democracia brasileira.

A mais recente declaração de que não houve golpe em 1964 foi a do chanceler Ernesto Araújo. Em audiência na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, em 27 de março de 2019, em resposta à pergunta sobre à orientação dada pelo presidente Jair Bolsonaro para que os quartéis celebrassem o 31 de março, Araújo disse: “Vossa Excelência me perguntava se eu considero 1964 um golpe. Eu não considero um golpe. Considero que foi um movimento necessário para que o Brasil não se tornasse uma ditadura. Não tenho a menor dúvida disso. Essa é minha leitura da história”.

Araújo, como alguns militares, tem uma visão salvacionista e patriótica da intervenção militar. Mas o curioso é que o “movimento” que deveria salvar o Brasil de uma ditadura, meteu o país numa ditadura que durou 21 anos. A “leitura da história” do ministro não passa de conveniência que ajusta o passado histórico às suas convicções políticas. É uma simples rejeição do que ele, equivocadamente, considera ser uma interpretação de esquerda.

Para o chanceler, e para esta turma patriótica que quer celebrar o 31 de março, ditadura mesmo só em Cuba e na Venezuela. É uma “leitura da história” bem conveniente, com dois pesos e duas medidas, avaliada com base numa moral dupla (O que vale lá para fora não vale aqui dentro).

Deixo com os ministros do STF e das Relações Exteriores, e com os “patriotas” de plantão, convertidos ao bolsonarismo, a lição de Rui Barbosa, que não praticava a moral dupla. Entre 1893 e 1895, Rui combateu energicamente o militarismo dos tempos de Floriano Peixoto. Numa polêmica com o militar autoproclamado “patriota” Carlos Sampaio, Rui lembrou que: “todos os violentos fizeram sempre, a seu favor, monopólio do patriotismo. Todos eles têm o privilégio tradicional de patriotas por decreto próprio e patriotas com exclusão dos que com eles não militam”. Como não era um patriota de ocasião, nem adulador de ditadores, Rui teve que exilar-se em Buenos Aires por dois anos, até o furacão florianista passar.

Rui não era contra o exército. Era contra a presença do exército na política. E chamou esta intromissão de militarismo. Para Rui, analogamente, “o militarismo está para o exército, como o clericalismo para a religião, como o mercantilismo para o comércio, como o cesarismo para a monarquia, como o demagogismo para o governo popular, como o egoísmo para o eu”.

Nossa república nasceu sob o signo do militarismo. Foi o nosso pecado político original. A sucessão de golpes perpetrados pelos militares (1889, 1930, 1937 e 1964) parece não deixar dúvidas de que o militarismo paira sobre a república como uma sombra tutelar. Por isso, nos dias que correm, com o STF na mira do conservadorismo bolsonarista, que marcha “patrioticamente” pelas ruas, aliado à pior linhagem evangélica e aos setores golpistas e militaristas do exército, é bom tomar cuidado com o que se diz sobre o passado. Absolver o golpismo da forma como Toffoli fez abre uma porta perigosa para certos “movimentos” do presente. Militares pouco afeitos à democracia, que acumulam cargos no governo, podem se sentir muito à vontade e encorajados a manifestar seu desprezo pelas instituições democráticas (Como fez recentemente o general Heleno, mandando um “foda-se” ao Congresso).

Em certos momentos, senhor ministro, guardar silêncio é uma grande virtude. Declarações inconsequentes e infundadas ajudam a normalizar o absurdo e autorizam pronunciamentos, como o do filho do presidente, que ressuscitam instrumentos pavorosos, como o AI5, para ameaçar e silenciar a oposição.



      
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Bibliografia
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 2. ed. Brasília: UNB, 1986.
CHAGAS, Carlos. A Ditadura Militar e os Golpes Dentro do Golpe (1964-1969). Editora Record, 2014.
D´ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Célio. Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Relume Dumará, 1994.
FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Editora Record, 2004.
FILHO, Daniel Aarão. Entrevista ao El País. Neste endereço: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/02/politica/1538497133_463693.html
MACHADO, Juremir. 1964: golpe midiático-civil-militar. Editora Sulina, 2014.
MARINHO, Roberto. Editorial do jornal O Globo de 1984.
RECONDO, Felipe. Tanques e Togas: o STF e a ditadura militar. São Paulo: Cia das Letras, 2018.