HISTÓRIAS EXEMPLARES EM DEFESA DOS DIREITOS À VIDA E À LIBERDADE
POLÍTICA: O INSTITUTO DO ASILO
DIPLOMÁTICO NO CONTEXTO DAS DITADURAS SUL AMERICANAS.
O passado tem grandes lições a
dar ao presente. Algumas, dignas de serem celebradas e reverenciadas. Outras,
de serem lembradas com pesar e evitadas. Assim concebido, o passado é um tempo
vivo, que habita uma dimensão mnemônica do presente, e um relicário inesgotável
de exemplos que pode ser acionado em determinadas situações para injetar
valores e sangue novo nas artérias do presente. Este uso moral do passado, com
propósito exemplar e educativo, tem familiaridade com a função do historiador, apontada
por Antoine Proust, “de alargar e enriquecer o presente da sociedade” (1996). A
celebração das virtudes e lições do passado, acrescentaríamos, também amplia e
delineia o horizonte ético do presente. A história é um campo de disputas políticas
e sociais e em certas ocasiões a rememoração de exemplos do passado é um
exercício oportuno e um contraponto necessário aos usos desinformados e/ou mal-intencionados
de acontecimentos pretéritos.
Diversos “historiadores” (nome
genérico para designar prosadores, oradores, políticos e filósofos que se
interessaram pela história e escreveram narrativas históricas), da antiguidade
e da modernidade europeia, escreveram sobre o passado com o propósito de dar
lições ao presente, ou endereça-las ao futuro. Cada um à sua maneira, e
atendendo ao que o seu tempo e o seu meio social exigiam, entendiam que o
passado era uma espécie de reservatório de virtudes, de equívocos, de bons e de
maus exemplos. A história deveria reter os bons exemplos e transmiti-los às
futuras gerações para serem imitados. O valor e a utilidade da história
eram avaliados em função desta capacidade de fornecer bons exemplos. O
historiador ateniense Tucídides viveu e narrou a Guerra do Peloponeso. O
registro da guerra, que ele considerava ser a maior de todas, era uma
“aquisição para sempre”, exemplar para aquelas gerações que estavam por vir. Por
conta da imutabilidade da natureza humana, guerras como aquela irromperiam
novamente no futuro (Hartog, 2001).
Políbio, historiador e geógrafo
grego romanizado, pretendia que sua obra fosse um guia para conduzir as ações
no presente e no futuro, imitando os êxitos e evitando os erros cometidos. Cícero,
advogado, orador e escritor romano, denominou este uso moral e pedagógico de historia magistra vitae (história mestra
da vida). A história, definida por Cícero como “testemunha dos séculos,
luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, mensageira do passado”
(Hartog, 2001), forneceria exemplos úteis tanto por aquilo que deveria ser
imitado quanto por aquilo que deveria ser evitado. Maquiavel, na obra Comentário sobre a Primeira
Década de Tito Lívio, exortava os governantes de sua época a “apoiar-se no
exemplo da Antiguidade”. Espantava-se com a ignorância em relação ao “espírito
genuíno da história”. As lições da
antigidade eram de vital importância quando se tratava de “ordenar uma
república, manter um Estado, governar um reino, comandar exércitos e
administrar a guerra, ou distribuir justiça aos cidadãos”. Disposto a “salvar
os homens deste erro”, Maquiavel compôs “uma comparação entre fatos antigos e
contemporâneos”, para facilitar a compreensão. E esperava que seus leitores
pudessem “tirar daqueles livros toda a utilidade que se deve buscar no estudo
histórico” (Maquiavel, 1994). Dois séculos depois de Maquiavel, em pleno século
das Luzes, Voltaire (2007) reafirmou que a história era a mestra da vida e recomendou
que os governantes podiam e deviam aprender com os exemplos históricos.
Para estes “historiadores”, a exceção de
Voltaire, a história era cíclica e a natureza humana imutável. Os seres humanos
eram os mesmos de sempre, movidos pelas mesmas paixões, e tendiam a repetir
suas ações, virtuosas ou não. A história, por sua vez, repetia ciclicamente as
mesmas formas de governo (Monarquia, Aristocracia e Democracia) e suas expressões
degeneradas (Tirania, Oligarquia e Anarquia). Por isso, o olhar atento para o
passado evitaria a repetição dos mesmos e recorrentes erros.
Não pensamos mais como estes “historiadores”
e não entendemos a história e a natureza humana da mesma forma, mas a ideia de
que os exemplos do passado podem orientar e iluminar as ações no presente continua
sendo muito inspiradora. Cabe a nós, no tempo em que vivemos, decidirmos que
aspectos e personagens do passado devem servir de guias das nossas lutas e das
nossas escolhas éticas, morais e políticas.
Em tempos difíceis para os
direitos humanos e para as liberdades políticas, como os que estamos vivendo,
no Brasil e no mundo, relembrar as atitudes corajosas em defesa destes direitos
no passado pode ser uma das alternativas para enfrentarmos a dureza do presente
e construirmos caminhos para futuros possíveis, menos asfixiantes. Na década de
1970 os embaixadores do México e da Suécia, vivendo sob as ditaduras do Chile e
do Uruguai, utilizaram-se do Asilo Diplomático e abriram as portas das Embaixadas
para abrigar homens, mulheres e crianças perseguidos pelos militares. A atitude
corajosa e humana dos embaixadores preservou a dignidade e salvou a vida de
milhares de pessoas.
Asilo Diplomático, variação do
asilo em sentido amplo, é o conjunto de regras e tratados que protege o
indivíduo perseguido em seu próprio país por motivos políticos e que, por isso,
não pode permanecer ou retornar ao convívio pátrio. A prática de buscar
proteção contra perseguições é recorrente desde os tempos antigos, embora tenha
assumido nomes e sentidos diversos em diferentes épocas. A palavra deriva do termo
grego ásilon e do latim asylum, que significavam lugar
inviolável, templo, local de proteção e refúgio (Ramos, 2011).
O Asilo Diplomático
desenvolveu-se a partir de práticas antigas, gregas e romanas, como o refúgio
em templos para fugir de perseguições, e o asilo religioso medieval, que tinha
nas igrejas um espaço de proteção contra as violências e arbitrariedades decorrentes
do desmoronamento das instituições políticas e da justiça romana. Na
modernidade europeia a prática se secularizou, deixou de ter um caráter
exclusivamente religioso e assumiu contornos mais próximos do que conhecemos
hoje. A formação das monarquias centralizadas e a gênese de um ambiente
internacional impuseram a necessidade de se firmar acordos e tratados e criar
corpos e missões diplomáticas permanentes para representar os Estados soberanos
em territórios estrangeiros. Aos Embaixadores eram concedidos privilégios para
desempenhar suas funções sem pressões e constrangimentos. No século XVI, quando
a noção de soberania ainda estava em gestação, Carlos V instruiu que as casas
dos Embaixadores servissem “de Asilo inviolável, como outrora os templos dos
deuses e que não seja permitido a ninguém violar este Asilo, qualquer que seja
o pretexto invocado" (Fernandes, 1961). A inviolabilidade das residências
dos representantes diplomáticos, efeito da consolidação da moderna diplomacia, era
um inequívoco sinal de respeito pelo Estado representado. A inviolabilidade
estendeu-se também aos meios de transporte dos diplomatas e, em alguns casos, aos
anexos e ao bairro da Embaixada. Os sentidos e os propósitos do Asilo
Diplomático se ampliaram e se estenderam também aos perseguidos em geral,
inclusive criminosos comuns. O cenário modificou-se com as revoluções liberais,
nos séculos XXVII e XVIII, que colocaram freios ao poder arbitrário dos reis
absolutistas. O Asilo concedido a qualquer criminoso que se arrependesse passou
a ser concedido apenas aos perseguidos políticos, indivíduos que sofriam ataque
injustificado do poder. O Asilo assumiu um sentido mais específico, de garantia
essencial à promoção de direitos, pois impedia a violação da liberdade de
expressão e direitos de participação política (Ramos, 2001, p.16). O A auge do
Instituto do Asilo na Europa foi no século XVIII, mas a prática estendeu-se até
a segunda metade do século XIX, quando conheceu um recuo. Durante a reunião de
1895 do Instituto de Direito Internacional, em Cambridge, um dos participantes
declarou que julgava, na Europa, ser tão raro e improvável o Asilo Diplomático,
que não haveria utilidade em ocupar-se do tema (Fernandes, 1961).
O Asilo Diplomático é uma
invenção europeia, mas foi na América Latina que a prática se enraizou e se
notabilizou por meio de Tratados e Convenções promovidos no final do século XIX
e na primeira metade do século XX. O turbulento contexto de formação e
consolidação dos Estados nacionais gerou enorme instabilidade política na
região, provocada pelas lutas entre diferentes grupos que disputavam a primazia
política, nas entranhas dos estados em gestação, que explodiu em diversas
guerras civis, golpes de estado e revoluções. Diferenças políticas
inconciliáveis resultaram em represálias e perseguições aos adversários.
Dezenas de indivíduos utilizaram as fronteiras extraterritoriais - Embaixadas,
navios de guerra, Consulados - para escapar das perseguições políticas. Na
grande maioria dos casos foram as grandes potências europeias e os Estados
Unidos que concederam o Asilo. Um dos casos mais conhecidos foi o governador de
Buenos Aires, o general Juan Manuel de Rosas. As tropas rosistas foram
derrotadas em 1952, na Guerra Civil que envolveu Uruguai, Argentina e Brasil,
pela influência sobre o Paraguai e hegemonia na região. Logo depois de
renunciar, Rosas se dirigiu à legação britânica e solicitou Asilo Diplomático.
Robert Gore, Encarregado dos Negócios em Buenos Aires, sabendo da gravidade da
situação, acompanhou o ex-governador e sua filha até o porto para embarcar numa
fragata inglesa (Gigena, 1960).
O primeiro esforço multilateral
para regulamentar regionalmente o Asilo Diplomático teve como ponto de partida
uma iniciativa do Peru, em 1867. O Ministro de relações exteriores convocou uma
Conferência para discutir o tema, mas as controvérsias impediram o avanço dos
debates. Em 1889 um passo importante foi dado com a assinatura do Tratado de
Direito Penal Internacional, em Montevideo, que consagrou o Asilo Diplomático.
As normativas estabelecidas na capital do Uruguai, no entanto, não detalharam
satisfatoriamente as formas de utilização do Instituto. Em Convenções
posteriores, em Havana, em 1928, em Montevideo, em 1933 e 1939, e em Caracas,
em 1954, dedicadas especificamente ao tema, a definição de Asilo Diplomático, e
as regras de funcionamento, para evitar abusos, foram sendo aos poucos firmadas
(Fernandes, 1961).
A prática da concessão do Asilo, utilizada
desde o século XIX, e as Convenções e Tratados para dar-lhe forma jurídica mais
precisa, criaram uma cultura jurídica e política que o consagraram
regionalmente. A prova de fogo viria nas décadas de 1960 e 1970, com as
ditaduras civil-militares que dominaram o cenário político sul americano. Num
contexto de intensa perseguição política e de brutal violação dos direitos
humanos, o Asilo Diplomático foi respeitado. As Embaixadas tornaram-se ilhas
invioláveis de liberdade provisória até a formalização e a concessão do
salvo-conduto, que autorizava as pessoas a saírem do país. No caso chileno, que
registrou o maior número de asilados diplomáticos, milhares de perseguidos
políticos (funcionários do governo, artistas, militantes de vários grupos
políticos e estudantes), procuraram Asilo nas representações diplomáticas
estrangeiras, especialmente do México e da Suécia. As Embaixadas receberam
apoio de vários organismos internacionais, como o ACNUR (Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados), que colaboravam intensamente alocando os
asilados em vários países. Mas nem todas as Embaixadas estavam dispostas a
receber os perseguidos. A concessão do Asilo dependia de duas coisas: da
posição política do governo e da posição pessoal do Embaixador. Não adiantaria
nesta época, por exemplo, recorrer à Embaixada do Brasil, cujas orientações e
instruções estavam alinhadas com os governos ditatoriais.
A atuação e intervenção de três
Embaixadores em defesa dos perseguidos pelas ditaduras, fazendo valer o
instituto do Asilo Diplomático, são dignas de serem lembradas e celebradas. Vicente
Muñis Arroyo (Embaixador mexicano no Uruguai), Harald Edelstam (Embaixador
sueco no Chile) e Gonzalo Martínes Corbalá (Embaixador mexicano no Chile), não
hesitaram no socorro às vítimas e não cederam às pressões dos ditadores.
Vicente Muñiz Arroyo, Embaixador
mexicano no Uruguai, outorgou centenas de Asilos Diplomáticos e abrigou os
perseguidos políticos, entre 1974 e 1977, tanto na Embaixada quanto em sua
própria residência oficial em Montevideo. Ambas as instalações não apresentavam
condições e infraestrutura para receber tanta gente. Por isso, o Embaixador assumia
as despesas com alimentação, roupas e colchões para os asilados, em virtude da
emergência da situação. Arroyo chegou a abrigar, em 1976, quase 200 pessoas em
sua residência. Além de sua casa,
disponibilizava para os inesperados hóspedes suas louças, seus discos, sua
roupa, sua cama, suas próprias toalhas, e o que faltava comprava e pagava do
próprio bolso e não enviava as contas e despesas mensais ao governo mexicano. Entre
os asilados havia um número considerável de crianças. Arroyo passou então a
promover escolas infantis improvisadas e festas de aniversário, decorando a
Embaixada com balões e enfeites (Bielous, 2011). Além da corajosa postura
política de sair em defesa e abrigar os perseguidos, o Embaixador ainda
demonstrou grande sensibilidade em relação à infância, preservando a inocência
das crianças e lhes oferecendo um pouco de alegria em meio à violência
incompreensível que as cercava e ameaçava as famílias.
O testemunho de um asilado mostra o
empenho do Embaixador para tornar a experiência do Asilo menos traumática: “[...]
nos trasladaron a finales de enero a la embajada. [...] Cuando llegamos, el cuento de todos los
niños era que todos tenían un regalo que habían recibido de don Vicente el día
de Reyes; a lo largo de la escalera que subía a su habitación él habia dejado
un paquetito en cada escalón. A los adultos les entregaba regalos en broma
[...] a los niños pequeños, juguetes”. Para outro
asilado, Muñiz Arroyo: “Fue una gente sumamente generosa, que en ningún momento
nos hizo sentir como personas que teníamos que irnos de nuestro país por
circunstancias ajenas a nuestro deseo [...] nos hizo sentir como sus huéspedes”
(Bielous; Castro, 2008).
Numa linha de atuação semelhante,
o embaixador sueco no Chile, Harald Edelstam, saiu em socorro dos que tiveram
seus direitos violados. Nos primeiros meses da ditadura chilena, concedeu
diversos Asilos Diplomáticos a perseguidos políticos. Segundo estimativas,
baseadas em relatos de testemunhas, teria salvo mais de 1300 pessoas da prisão
ou da morte, inclusive brasileiros, entre setembro e dezembro de 1973. Desde os
primeiros momentos do golpe, Edelstam escondeu refugiados na Embaixada sueca e,
dirigindo o próprio carro, saiu em expedições noturnas em busca de outros que
necessitavam de ajuda. Com frequência, ia até o centro de detenção montado no
Estádio Nacional e salvava prisioneiros da execução. De uma só vez retirou 54
uruguaios que iriam ser executados no dia seguinte (Camacho, 2006).
Edelstam também emitia salvo-condutos, ajudava
a criar documentos falsos para perseguidos, fez contato com outras embaixadas
para abrigar refugiados e coordenou ações com organizações internacionais para
a fuga dos ameaçados. Desafiando abertamente a ditadura, declarou vários locais
como território sueco, e dizia que se fossem atacados seria uma declaração de
guerra à Suécia. (Wallin, 2015). Num primeiro momento, Edelstam tentou
convencer as pessoas que buscavam ajuda na Embaixada sueca a se dirigir às
embaixadas dos países latino-americanos com os quais o Chile possuía convênio
de Asilo para perseguidos políticos. A atitude do Embaixador demonstra que o
Instituto do Asilo Diplomático estava em vigor e era reconhecido, mesmo naquela
situação excepcional de ruptura democrática. Mas nem todas as sedes
diplomáticas se dispunham ou podiam receber os perseguidos. As embaixadas do
Brasil e do Uruguai, por exemplo, representavam países que também estavam sob
ditaduras militares, e outras, como a do México e da Argentina, estavam no
limite das suas capacidades. Por isso, Edelstam decidiu abrir as portas aos que
buscavam ajuda (Camacho, 2006).
A embaixada cubana, representada
naquele momento pela Suécia, por conta da ruptura entre Cuba e Chile, também
passou a receber asilados. A sede cubana, de dimensões maiores, foi a que
acomodou o maior número de pessoas. Foram utilizados também uma oficina
comercial e o Consulado cubanos. A
própria residência do Embaixador sueco, sob imunidade diplomática, serviu de
abrigo para os perseguidos. Para atender aos asilados, Edelstam contratou
temporariamente vários cidadãos suecos que estavam no Chile para que ajudassem
com a compra de alimentos, com a limpeza e a lavanderia, e no resgate de
pessoas e materiais valiosos (Camacho, 2006).
Poucas semanas após o golpe,
diversos asilados suecos, uruguaios, brasileiros, bolivianos, cubanos,
equatorianos, peruanos, argentinos e chilenos, estavam divididos entre as
delegações sob a responsabilidade de Edelstam. Krister Wickman, Ministro de
Assuntos Exteriores da Suécia, afinado com a determinação do Embaixador,
autorizava a ida dos asilados para a Suécia. No final de setembro, mês do
golpe, foram 200 autorizações; em janeiro de 1974, chegou a 700 (Camacho,
2006).
As ações do embaixador sueco, e a
atenção que a imprensa lhe dedicava, se tornaram um incômodo para a Junta
Militar chilena. Em dezembro de 1973, foi declarado persona non grata, e
obrigado a deixar o Chile. Edlestam, segundo Camacho, era um “humanista
comprometido com os direitos humanos e a democracia, mas cuja personalidade o
levou a ter conflitos com os governos de alguns dos países em que exerceu suas
funções, especialmente onde ocorriam perseguições políticas, como a Noruega,
durante a Segunda Guerra Mundial, e Indonésia ou Guatemala, nos anos sessenta”
(2006, p.37, tradução livre). Edelstam foi o único Embaixador expulso do Chile,
mas a sua partida não representou o fim dos Asilos concedidos pela Suécia. Seu
sucessor, Carl-Johan Groth, de uma maneira mais discreta, manteve a linha política
(Camacho, 2006, p.37).
Edelstam,
com a bandeira do Chile no pescoço e flores na mão, sendo recebido no
aeroporto, na Suécia, por asilados chilenos e latino-americanos, em 10 de
dezembro de 1973. Foto: Sven-Erik Sjöberg / DN / Scanpix
O Embaixador mexicano no Chille,
Gonzalo Martínes Corbalá, também enfrentou a violência da ditadura e usou da
inviolabilidade da sua condição e do seu prestígio para acolher os solicitantes
de Asilo. A sede da Embaixada abrigou 720 adultos e 36 crianças. Corbalá
relatou que as pessoas que solicitavam Asilo "chegavam de 10 em 10,
chegavam em grupo de 20”, e ele imediatamente os fazia entrar, pois “não se
podia protege-los se não entrassem". Da Embaixada, os asilados partiam
para México. O primeiro dos cinco voos, lavando 120 asilados, partiu 4 dias
após o golpe. Entre os passageiros, estavam Hortensia Bussi, a viúva de
Allende, e suas duas filhas. Pablo Neruda também recebeu oferta de Asilo no
México, mas “desistiu” na última hora, alegando falta de ânimo. Corbalá chegou
a receber, de Matilde, esposa do poeta, um casaco, o chapéu e as malas para a
viagem, mas não deu tempo. Neruda foi hospitalizado e morreu, 12 dias após o
golpe, e um dia antes do voo para o México (Quesada; Santaeulalia, 2015).
Embora o laudo médico indique o agravamento do câncer da próstata, indícios
fortíssimos sugerem que Neruda foi envenenado na véspera da viagem.
Na ficha de solicitação de Asilo,
as pessoas escreviam os motivos de buscar proteção junto à delegação mexicana:
"porque o México protege os perseguidos nesta noite escura que açoita meu
país", escreveu um dos asilados. As fichas foram preenchidas e assinadas por
sindicalistas, operários, historiadores, militantes socialistas, limpadores de
vidraças, artistas, editores de livros e por políticos próximos a Allende (Quesada;
Santaeulalia, 2015). Os Asilos na delegação mexicana ocorreram até
1974, quando o governo mexicano rompeu relações diplomáticos com o Chile,
retomando-as somente em 1990.
Os gestos humanitários e a
intransigente defesa dos direitos dos asilados promovidos pelos Embaixadores,
infelizmente pouco conhecidos, são valorosas lições de virtude política, de
dignidade e ajuda ao próximo, que contrastam com os horrores e violências
implacáveis praticados pelos militares e pelos Estados ditatoriais sul-americanos.
A polarização política no Brasil
e na América do Sul, agudizada nos últimos anos, reabilitou forças obscuras, identificadas
com a tortura, com a censura e com a truculência política, trouxe de volta
projetos conservadores e autoritários e abriu espaços para os militares
retornarem à política. É neste contexto que devemos escavar o passado em busca
de bons exemplos. Uma arqueologia das virtudes dignas de serem “imitadas”,
diriam os historiadores antigos, pode nos servir de norte político e moral. Imitar
os exemplos do passado, por óbvio, não tem a ver com a replicação ou com o
simples arremedo do que já foi feito. Além de impossível e indesejável, porque
as condições nunca são as mesmas. No nosso caso, podemos substituir imitação por inspiração. Arroyo, Edelstan
e Corbalá são figuras que nos inspiram a atravessar períodos de turbulência sem
perder a dignidade, sem se acovardar e sem se curvar aos tiranos. Como bem
disse Eliane Brum, numa reflexão inspiradora para a virada do ano: “Este é o desafio
de 2020. O ano novo não está dado. 2020 só será novo se nossa resistência
resgatar o presente das mãos dos déspotas. Esta é a única resolução possível
diante do que vivemos e do que testemunhamos. Cada um de nós precisa se
responsabilizar pelo horror do nosso tempo”.
O futuro não está dado. Nossas
escolhas no presente refletem as leituras que fazemos do passado. Alguns
preferem lembrar Goebbels e homenagear Brilhante Ustra e Pinochet. As escolhas
e os exemplos que nos guiam refletem o caráter, o norte ético e os valores que
praticamos. Estes homens, e o horror que seus nomes evocam, turvam o presente e
apontam para pesadelos futuros.
As minhas escolhas são outras. Eu fico
do lado de Corbalá, de Edlestain e de Arroyo, de homens que enfrentaram o
horror, desafiaram tiranos e se posicionaram em defesa da vida, da decência e da
dignidade humana. E fizeram o que fizeram sem esperar nada em troca. Uma lição para sempre!
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