PENSANDO
SOBRE A PONTE.
As formas que regem a dinâmica da nossa vida
são de certo modo trazidas pela ponte (...) à duração sólida de uma criação
visível.
Simmel
A ponte reúne enquanto passagem que
atravessa.
Heidegger
(...) e sobre o riacho havia uma ponte perfeita formada por um tronco
caído (...).
Jack Kerouac
"As meninas na ponte". Edvard Munch (1901).
1.
A Dimensão
Afetiva e Mnemônica da Ponte.
Passei minha infância e adolescência
observando e atravessando pontes. Pequenas e grandes. Sobre rios e sobre
trilhos. Pontes urbanas e pontes construídas no meio do mato. Pontes que
levavam para diferentes destinos. Hoje, beirando os cinquenta anos, continuo
observando, atravessando e pensando sobre pontes.
As pontes, figuras de
fronteira que, na sua mais perfeita ambivalência, ligam e separam, despertam em
mim, ao mesmo tempo, fascínio e apreensão. Fascínio, pela majestade, pela travessia,
pelo que oferece na outra margem. Apreensão, certamente, pela altura. A
acrofobia, que me acompanha desde a infância, seguramente tem a ver com minha
experiência com pontes.
Minha casa situava-se no
ponto equidistante entre duas pontes. Ambas ligavam meu bairro, em Santa Maria,
ao bairro Itararé, onde frequentemente visitava parentes, jogava futebol e me
divertia no clube 21 de Abril. As pontes eram passagens obrigatórias para o
outro lado. Por baixo delas, corriam os trilhos dos trens. Adorava e morria de
medo das pontes. Elas me atraíam, à distância, como paisagem imóvel, ou quando
passava por baixo, admirando os pilares e a poderosa estrutura. Mas sentia
vertigem quando andava sobre elas. Não tinha coragem de olhar para baixo.
Tomava como verdadeiro desafio me debruçar na cabeceira da ponte e olhar para
os trilhos do trem lá embaixo. Era um verdadeiro teste de limites e de
coragem. Fiz isso poucas vezes. Costumo levar meus medos a sério. Se não
atrapalham minha vida, não tento superá-los.
Ponte sobre o rio Jacuí.
Viajei muito de trem na
infância e adolescência para pescar com meu pai, para visitar parentes na
grande Porto Alegre e conhecidos em Rio Pardo e para acampar nas Tunas, em
Restinga Seca, com amigos. Os trens que saíam da estação de Santa Maria tomavam
duas direções. Uma delas levava para Livramento e Uruguaiana (neste trecho,
pescávamos no rio Santa Maria, no Caverá, no Jacaquá, em Saicã e na ponte do
rio Ibicuí, em Dilermando de Aguiar). A outra direção levava para Porto Alegre.
O trem, nos dois sentidos, passava sobre muitas pontes. A estrutura suspensa,
sem contato com o solo, produzia um barulho singular do atrito dos trilhos com
as rodas dos trens. A pesada e enferrujada estrutura de metal que avistava da
janela e o rio que corria silencioso lá embaixo tornavam a travessia
divertidamente perigosa. Duas pontes me impressionavam pelo tamanho e altura: a
ponte do Rio Jacuí, decorada nas duas extremidades com casinhas de pescadores,
e a ponte sobre o rio Santa Maria (ao lado), em Cacequi, construída em 1907, e que tinha
quase um quilômetro e meio de extensão (a maior na América Latina). Cruzei esta
ponte a pé, com meu irmão e meus primos. Foi assustador, mas não podia
decepcionar a turma. Os dormentes, peças de madeira sobre as quais os trilhos são
fixados, eram distantes uns dos outros, o que tornava a travessia bastante
arriscada. Lá embaixo, o rio e a praia de Dourados, de areias incrivelmente
brancas. O nome da praia evocava o peixe que, noutros tempos, era pescado em
abundância no rio. Nas sete ou oito vezes que fomos pescar ali, capturamos
apenas um Dourado. Foi o almoço do dia, num fogão improvisado embaixo da ponte.
Meu pai, pescador experiente, preparou um caldo de Dourado com batatas, cebolas
e tomates. Inesquecível!! Além de pescador de fim de semana, meu pai era
ferroviário (como o pai do Neruda). Construía e concertava as ligas de metal
dos trens, os trilhos e a estrutura das pontes. Um dos privilégios, senão o único,
da profissão era viajarmos quase de graça nos trens. Eu sentava sempre na
janela, atento à paisagem do pampa, esperando pelas pontes. Sabia de cor todas
elas. Sabia os nomes e conhecia histórias de assombrações e de pescador
envolvendo as pontes. Não dormia nas viagens de trem. Não queria perder nada,
nenhuma ponte e, atento aos conselhos do pai, não colocava a cabeça para fora
da janela enquanto as atravessávamos. Anos mais tarde, na adolescência, já
bastante independente e com outros interesses, viajava sozinho e, quando o trem
passava nas pontes, ficava na porta olhando para baixo, para os rios. A vista
era bem melhor que a da janela. Minha paixão por pontes só rivaliza com minha
paixão pelos rios. Gosto do mar, moro perto de lindas praias, mas não troco o
rio, qualquer rio, pelo mar. Rios e pontes são presenças constantes em minha
vida. Passei por muitas mudanças, abandonei muita coisa, descobri outras
tantas, mas as pontes e os rios são constâncias, são regularidades que nunca
sumiram do meu horizonte. Acho que descobri a importância que pontes e rios têm para mim com o Pablo Neruda. Li “Confesso que vivi” na adolescência e
voltei a lê-lo mais tarde. Levei o livro comigo em algumas viagens de trem. José del Carmen Reys Morales, pai do Neruda e amante das
pontes, era maquinista de um trem lastreiro. As narrativas das viagens de trem
com o pai são alguns dos momentos mais bonitos das memórias do poeta.
Neste
fragmento, Neruda declara seu amor às pontes:
“Em Chungking meus amigos
chineses me levaram para ver a ponte da cidade. Sempre amei as pontes. Meu pai,
ferroviário, inspirou-me grande respeito por elas. Nunca as chamava de pontes;
teria sido uma profanação. Chamava-as de obras de arte, qualificativo que não
concedia às pinturas, às esculturas e nem, é claro, a meus poemas; somente às
pontes”.
Meu pai também admirava as
pontes, embora não verbalizasse. Homem de poucas palavras, expressava-se melhor
com o ferro, criando pequenas obras de arte para entreter os filhos (Brinquedos
e quebra-cabeças de ligas de ferro). E ajudava a construir pontes, as grandes “obras
de arte” que encantavam o senhor Morales. Embarcando
no trem do poeta-maquinista dos bosques chilenos, diria que as pontes, signos
da associação, são poemas suspensos, escritos na linguagem do ferro e do fogo
(sem metáforas), que comunicam margens e ligam o que antes estava dissociado.
Ônibus? Não. Na época, era
um luxo que não podíamos ter.
Outras duas pontes, de
dimensões bem mais modestas, eu atravessava quase diariamente para ir à escola ou
para ir ao centro da cidade. A menor delas, que chamávamos de pontilhão, era uma
pontezinha sinistra localizada na antiga linha do trem, a duzentos metros da
minha casa. Circulavam narrativas no bairro sobre uma mulher que foi atropelada
pelo trem e caiu da ponte. Desde então o seu fantasma assombrava o lugar e
perseguia quem se atrevia passar por ali à noite. Nunca vi o tal fantasma, mas
gelava de medo quando, no cair da noite, passava no pontilhão. Se pudesse
evitar passar ali, evitava. A outra era a ponte do Itaimbé, na rua Silva
Jardim, onde me encontrava com a turma do skate e os amigos das bebedeiras. A
ponte, pela velha incompetência do poder público, ficou por um bom tempo
inacabada, sem ligar os dois lados da rua. Sorte a nossa, que não tínhamos carro
e nos divertíamos com pouco. Subir na ponte em construção, e ficar “planando
entre o céu e a terra”, era a diversão da minha turma de adolescentes roqueiros,
pobres e desempregados. Levávamos violões surrados, toca fitas e vinho barato,
e fazíamos daquele lugar um pequeno santuário suspenso, encravado no coração da
urbe.
Se as pontes falassem, e
fossem indiscretas, teriam muito que contar sobre namoros relâmpagos,
escondidos, interrompidos. Pontes também são esconderijos urbanos para amantes
de passagem.
Havia ainda a Garganta do
Diabo, ponte de dimensões colossais, inacreditavelmente alta, que levava aos
balneários e as cachoeiras da serra. Histórias de suicídios e acidentes
terríveis tornaram a ponte lendária. Passei uma única vez a pé pela Garganta do
Diabo. Foi deliciosamente aterrorizante!
Hoje moro na ilha de Florianópolis.
Três pontes ligam a ilha ao continente. Duas delas são o meu caminho de todos
os dias, para entrar ou sair da ilha. São pontes funcionais, pesadas e frias. A
outra, é o cartão postal da cidade. Bela, melancólica, superfaturada, a ponte
Hercílio Luz é o signo metonímico da modernidade e da nossa Belle Époque. Sinto-me
em casa quando, chegando de uma viagem, avisto a ponte.
Das pontes
reais, feitas de ferro, concreto e travessias, vieram as pontes poéticas,
cinematográficas, que me levaram para outras margens. Em alguns dos filmes mais
marcantes na minha vida, as pontes são verdadeiras entidades. Em “Era uma vez
na América”, a magnífica ponte sobre o East River, que liga
Manhattan ao Brooklyn, é a moldura poética da narrativa épica de Sergio Leone
sobre a vida, as amizades, os amores e a lealdade entre seis garotos judeus pobres
que crescem no Brooklyn em meio à criminalidade.
A ponte, capturada pela bela fotografia de Tonino Delli
Colli, em tom sépia, para recriar a atmosfera dos anos 20 e 30, é testemunha
imóvel e silenciosa dos encontros e desencontros dos personagens. A trilha
insuperável de Ennio Morricone é de chorar. Quero um dia me sentar próximo à
ponte, ali onde Noodles e seus amigos passavam, e ouvir a trilha do filme num
fone de ouvidos.
No filme “Os Amantes da ponte Neuf”, de Leos Carax, de
1991, a ponte (acima) é o cenário de uma história louca de amor, na contramão dos
romances clichês e convencionais ambientados em Paris, entre Michèle (Juliete
Binoche), uma estudante de arte cega de um olho que vive na rua depois do fim
de uma relação e Alex (Denis Lavant), um mendigo que sobrevive cometendo pequenos
furtos e se apresentando na rua cuspindo fogo. O improvável e imprevisível romance
se passa quase que inteiramente na ponte Neuf, a mais antiga das pontes
construídas sobre o Sena. A ideia é uma grande sacada! A ponte, lugar de
passagem, de fluxo, de pessoas em trânsito (o não-lugar, portanto),
transforma-se no “lar” provisório do estranho e irresistível casal de desajustados.
Quando estive em Paris fui conhecer a ponte. Passei por baixo e por cima, como
nos tempos de criança, atento a tudo. Para quem está apenas de passagem, com olhares
fugidios, ela não oferece grandes atrativos e não se destaca das tantas outras
que atravessam o Sena. Apesar de linda, se observada com cuidado, a ponte é aparentemente
discreta. Vista com mais atenção, revela a solidez e a gravidade das pedras e a
beleza dos arcos romanos. É uma das mais bonitas pontes europeias. Para quem
viu, e se viu, no filme, e guardou as imagens daquele amor visceral, pungente e
tão profundamente romântico quanto à aspereza do chão onde Alex
desesperadamente esfrega a cabeça, a ponte tem um apelo quase mítico.
Neste pequeno inventário das
pontes da minha vida não poderia faltar René Magritte. Na tela intitulada
“Saudade”, de 1940, um homem de asas, vestido de preto, está sobre uma ponte,
ao lado de um leão. Homem e leão, indiferentes um ao outro, não pertencem
àquele lugar. A ponte, que não liga nada a lugar algum, encerra a melancolia
dos dois seres que parecem saber que o sentido de tudo está em lugar nenhum.
Destituída dos seus significados mais imediatos e reconhecíveis – ligação,
travessia, passagem -, bem ao gosto do pintor, a ponte se converte numa prisão
da qual nem mesmo o homem com asas consegue escapar.
2.
A Dimensão
Teórica da Ponte.
Na escrita da minha tese de
doutorado, inesperadamente, me deparei com uma ponte batizada com o nome do
personagem central das minhas pesquisas: padre Roque Gonzáles. Aproveitei a
oportunidade e tentei pensar sobre os significados que a ponte, como signo de
fronteira, de passagem e de divisa, comporta. Passei a entender melhor estas
poderosas e duradouras estruturas (ou simples arranjos provisórios) que tornam
nossos caminhos mais fluídos.
Vamos explorar a ponte Roque
González?
A ponte que leva o nome do
missionário jesuíta é a famosa ponte internacional sobre o Rio Paraná,
inaugurada em 1990, que liga, de um lado, Posadas, na Argentina, e de outro,
Encarnación, no Paraguai. É o espetacular encontro do rio com a ponte! Por
sugestão do Bispo Diocesano de Missiones a obra foi batizada de Ponte Roque
González de Santa Cruz. A homenagem ao jesuíta foi motivada pela obra de
evangelização que realizou na região. No início do século XVII fundou a redução
de Nuestra Señora de la Anunciación de Itapúa, na região da atual cidade de
Posadas, que posteriormente foi transferida para a outra margem do rio com o
nome de Nuestra Señora de la Encarnación. Embora no presente estejam situadas
em territórios nacionais distintos e separadas por fronteiras políticas bem
precisas, Posadas e Vila Encarnación estão ligadas a um passado colonial e
jesuítico em comum. O nome da ponte é ao mesmo tempo uma referência e um apelo
a este passado.
Nos dois lados do Rio, Roque
Gonzáles é reconhecido hoje, nos discursos oficiais, como o Fundador da atual
cidade de Posadas e da Villa Encarnación. É visto nas crônicas oficiais locais
como uma espécie de cruzador de fronteiras e herói civilizador, pois sua
entrada naquelas terras remotas e selvagens
marca o advento da ordem racional e civilizadora na região. Isso equivale a
dizer, nos termos tradicionais, que com a chegada dos primeiros jesuítas o
antigo Paraguai deixa para trás a pré-história e entra definitivamente nos
domínios da história.
Mas o nome da ponte não se
resume a uma simples homenagem ao fundador
das duas cidades. Apesar de levar o nome do santo paraguaio, a ponte emerge em
meio a conflitos internacionais entre os países que tem no rio Paraná uma
fronteira comum. Os discursos da integração, que buscam no padre Roque um ponto
identitário e uma história em comum no passado, escondem antagonismos e tensões
fronteiriças que se arrastam há séculos, que vem dos tempos coloniais,
atravessam a formação dos estados nacionais e se projetam no século XX. O
período que se estende desde a expulsão dos jesuítas até o final da guerra da
Tríplice Aliança foi marcado por diferentes tentativas de demarcação de
fronteiras, que terminou por identificar o Rio Paraná como limite político
entre Brasil e Paraguai e entre Paraguai e Argentina. Desde então o rio e suas
disputadas águas tem sido alvo de estratégias geopolíticas e conflitos
diplomáticos pelos usos dos recursos da região. Os conflitos entre Brasil e
Argentina em torno da construção das hidrelétricas de Itaipú e Yacyretá revelam
as manobras políticas dos dois países pelo predomínio regional. A hidrelétrica
argentina foi uma resposta geopolítica a crescente influência brasileira na
região. Foi, portanto, uma obra visando mais o jogo político do que o
desenvolvimento econômico (Alejandro Grimson mostrou que a construção da
represa argentina era um projeto anti-econômico, porém estratégico para a
equivalência de forças na região. A preocupação da Argentina era não tornar-se
um simples satélite do Brasil). A ideia da construção da ponte nasceu em meio a
estes conflitos das hidrelétricas. A ponte, inaugurada em 1990 foi, na verdade,
uma forma de ressarcimento econômico ao Paraguai pelos prejuízos provocados
pela construção de Yacyretá. O lado paraguaio, mais baixo que o argentino,
sofreu mais com a represa das águas, que atingiu maior quantidade de terras. A
construção da ponte foi uma recompensa indenizatória para poder avançar com a
construção da represa.
É em meio a estas disputas
nacionais e jogos de influência regionais que o nome de Roque González vai ser
lembrado. Para além dos conflitos, um consenso: padre Roque é visto na região,
outrora integrada pelos trinta povos jesuíticos, como o fundador. Percorreu
heroicamente os três países e semeou as bases da civilização. A escolha da
figura de Roque González para dar nome à ponte sugere a evocação do tempo das
reduções, anterior aos Estados Nacionais platinos, em que o rio Paraná não
representava um corte político a separar os povos. Padre Roque, e depois os
seus companheiros, fizeram do rio um canal de comunicação entre a margem
espanhola e a margem indígena. Irmanaram os dois lados do rio pela pregação do
evangelho. Prova disso são as ruínas das antigas reduções, encontradas em ambas
as margens. Do lado argentino, encontram-se as ruínas de San Ignácio, e do lado
paraguaio, as de Trinidad e Santos Cosme y Damian. São testemunhos inequívocos
de um passado em comum. Os discursos identitários, expressos pelos periódicos e
discursos políticos, apelam para esta suposta irmandade entre as duas cidades,
que remontam a sua fundação, como legitimadora da integração regional.
Prevalece a imagem de que, para além das fronteiras, subjaz um substrato
identitário que permanece indiferente aos limites trazidos pelos estados
nacionais. Roque González simboliza, na região que se diz o “corazón del Mercosur”, o laço identitário que amarra a
integração. A ponte que leva seu nome é mais um exemplo dos usos que se fazem
do passado para legitimar projetos políticos, identitários e de integração
regional. Mas o meu interesse na ponte, neste momento, é outro.
Georg Simmel, num
inspiradíssimo ensaio de 1909, fez uma ontologia da ponte, explorando os pares
antitéticos associar-dissociar, separar-reunir, como “dois aspectos do mesmo
ato”, para discorrer sobre a ação volitiva do homem no espaço. A ponte, diz
Simmel, simboliza “as formas que regem a dinâmica da nossa vida”. “Porque o
homem é o ser de ligação que deve sempre separar, e que não pode religar sem
ter antes separado - precisamos primeiro conceber em espírito como uma
separação a existência indiferente de duas margens, para ligá-las por meio de
uma ponte. E o homem é de tal maneira um ser-fronteira, que não tem fronteira.”
Parto desta visão quase vertiginosa de Simmel para explorar os múltiplos
significados que a ponte sugere.
Mais do que a obra de arte,
cruzamento da engenharia com a arquitetura, interessa-me a ponte como metáfora.
Intervalo fluído entre duas margens, a ponte evoca um amplo conjunto de
significados e perspectivas. A ponte, como a fronteira, combina simultaneamente
um aspecto de fixidez e outro de fluidez. Ela fixa um caminho entre duas
extremidades, antes separadas, ao mesmo tempo em que é passagem fluída,
deslizante. É a estranha sensação de estar em lugar nenhum, ou como disse
Simmel, planando entre o céu e a terra. À imagem da ponte sobrevém a do
deslocamento: deslocamento geográfico, humano, linguístico, cultural. Ponte
evoca o que não está fixo, o que esta em trânsito, portanto, transitório. É o
vir a ser. A possibilidade de outras margens. Não é de onde se parte, nem aonde
se chega. É a travessia, a passagem, via de comunicação entre dois registros
territoriais ou culturais. Lembro-me de quando saía de casa para visitar meus
tios no Itararé. Antes de chegar à ponte, estava no meu bairro, no meu lugar.
Na travessia, sobre a ponte, estava em lugar nenhum, suspenso no tempo e no espaço
entre o meu lugar e o outro lado. Quando alcançava a outra margem, estava em
território estrangeiro.
A ideia de ponte como
travessia, passagem, ligação e diálogo, acompanhou minha vida até aqui, e
atravessou minha tese de doutorado de ponta a ponta. Na tese, tomei a ponte, na
sua polissemia e ambivalência, como metáfora das inúmeras injunções. Explorei
pelo menos quatro sentidos metafóricos: 1. ponte como passagem da barbárie à
civilização, da selva à vida política (que presidem o ideal reducional); 2.
ponte como fluxo semântico, que está presente na tradução cultural; 3. ponte
como diálogo/passagem entre os tempos, que define minha ideia de História; 4.
ponte como símbolo de fronteira e da situação fronteiriça da evangelização.
Se na minha vida a ponte,
que separa e junta, era e é a passagem para o outro lado da cidade, do rio, na
tese, a homenagem ao padre Roque é a minha ponte para o século XVII, uma forma
de diálogo/passagem entre o presente e o passado. Como símbolo da associação,
nas palavras de Simmel, a ponte traça um caminho entre dois lugares, entre duas
culturas. Tomo esta ideia de empréstimo para lançar então uma ponte entre os
tempos. Se a História é um diálogo dos sentidos do presente com os do passado,
a metáfora da ponte pode orientar esse diálogo. Contudo, lanço uma ponte não
para capturar o fluxo contínuo da história, mas para escavar o descontínuo, para
ressaltar as diferenças, sublinhar a singularidade das experiências. Não vou ao
passado para encontrar raízes, nem as causas do presente. Um retorno ao
passado, pelo fio da memória escrita dos jesuítas, não é uma viagem nostálgica
guiada pela “ideologia do retorno”. Remontar ao século XVII só tem sentido se
encontramos lá modos de existência, ou outras racionalidades, que possam, nos
termos de Foucault, confrontar as nossas e tornar “possível uma crítica do
presente.” O passado pelo passado é uma obsessão de antiquário.
Afinal, nós não atravessamos
pontes para encontrar o mesmo.
3.
Uma Ponte no
fim de Tudo.
Fosse eu um homem de fé,
religioso e espiritualizado, diria que a morte seria minha última ponte, a
passagem para o “outro lado”. Cairia bem, encerraria o texto de maneira
elevada, criando uma ponte com a eternidade. Mas não é o caso. Minhas pontes
dizem respeito a este mundo e regem a dinâmica da minha vida mundana, mortal e completamente
destituída de transcendência. A morte é a ponte para o fim. É a passagem da
vida para o nada. É ponte de uma margem só. Não quero viver para sempre. Não
desejo a eternidade. Quero a beleza trágica da travessia, este tempo suspenso,
ponte entre o nascimento e a morte.