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sexta-feira, 10 de abril de 2015

PENSANDO SOBRE A PONTE.

PENSANDO SOBRE A PONTE.


As formas que regem a dinâmica da nossa vida são de certo modo trazidas pela ponte (...) à duração sólida de uma criação visível.
Simmel

A ponte reúne enquanto passagem que atravessa.
Heidegger

(...) e sobre o riacho havia uma ponte perfeita formada por um tronco caído (...).

Jack Kerouac



"As meninas na ponte". Edvard Munch (1901).




1.      A Dimensão Afetiva e Mnemônica da Ponte.

Passei minha infância e adolescência observando e atravessando pontes. Pequenas e grandes. Sobre rios e sobre trilhos. Pontes urbanas e pontes construídas no meio do mato. Pontes que levavam para diferentes destinos. Hoje, beirando os cinquenta anos, continuo observando, atravessando e pensando sobre pontes.

As pontes, figuras de fronteira que, na sua mais perfeita ambivalência, ligam e separam, despertam em mim, ao mesmo tempo, fascínio e apreensão. Fascínio, pela majestade, pela travessia, pelo que oferece na outra margem. Apreensão, certamente, pela altura. A acrofobia, que me acompanha desde a infância, seguramente tem a ver com minha experiência com pontes.

Minha casa situava-se no ponto equidistante entre duas pontes. Ambas ligavam meu bairro, em Santa Maria, ao bairro Itararé, onde frequentemente visitava parentes, jogava futebol e me divertia no clube 21 de Abril. As pontes eram passagens obrigatórias para o outro lado. Por baixo delas, corriam os trilhos dos trens. Adorava e morria de medo das pontes. Elas me atraíam, à distância, como paisagem imóvel, ou quando passava por baixo, admirando os pilares e a poderosa estrutura. Mas sentia vertigem quando andava sobre elas. Não tinha coragem de olhar para baixo. Tomava como verdadeiro desafio me debruçar na cabeceira da ponte e olhar para os trilhos do trem lá embaixo. Era um verdadeiro teste de limites e de coragem. Fiz isso poucas vezes. Costumo levar meus medos a sério. Se não atrapalham minha vida, não tento superá-los.




Ponte sobre o rio Jacuí.


Viajei muito de trem na infância e adolescência para pescar com meu pai, para visitar parentes na grande Porto Alegre e conhecidos em Rio Pardo e para acampar nas Tunas, em Restinga Seca, com amigos. Os trens que saíam da estação de Santa Maria tomavam duas direções. Uma delas levava para Livramento e Uruguaiana (neste trecho, pescávamos no rio Santa Maria, no Caverá, no Jacaquá, em Saicã e na ponte do rio Ibicuí, em Dilermando de Aguiar). A outra direção levava para Porto Alegre. O trem, nos dois sentidos, passava sobre muitas pontes. A estrutura suspensa, sem contato com o solo, produzia um barulho singular do atrito dos trilhos com as rodas dos trens. A pesada e enferrujada estrutura de metal que avistava da janela e o rio que corria silencioso lá embaixo tornavam a travessia divertidamente perigosa. Duas pontes me impressionavam pelo tamanho e altura: a ponte do Rio Jacuí, decorada nas duas extremidades com casinhas de pescadores, e a ponte sobre o rio Santa Maria (ao lado), em Cacequi, construída em 1907, e que tinha quase um quilômetro e meio de extensão (a maior na América Latina). Cruzei esta ponte a pé, com meu irmão e meus primos. Foi assustador, mas não podia decepcionar a turma. Os dormentes, peças de madeira sobre as quais os trilhos são fixados, eram distantes uns dos outros, o que tornava a travessia bastante arriscada. Lá embaixo, o rio e a praia de Dourados, de areias incrivelmente brancas. O nome da praia evocava o peixe que, noutros tempos, era pescado em abundância no rio. Nas sete ou oito vezes que fomos pescar ali, capturamos apenas um Dourado. Foi o almoço do dia, num fogão improvisado embaixo da ponte. Meu pai, pescador experiente, preparou um caldo de Dourado com batatas, cebolas e tomates. Inesquecível!! Além de pescador de fim de semana, meu pai era ferroviário (como o pai do Neruda). Construía e concertava as ligas de metal dos trens, os trilhos e a estrutura das pontes. Um dos privilégios, senão o único, da profissão era viajarmos quase de graça nos trens. Eu sentava sempre na janela, atento à paisagem do pampa, esperando pelas pontes. Sabia de cor todas elas. Sabia os nomes e conhecia histórias de assombrações e de pescador envolvendo as pontes. Não dormia nas viagens de trem. Não queria perder nada, nenhuma ponte e, atento aos conselhos do pai, não colocava a cabeça para fora da janela enquanto as atravessávamos. Anos mais tarde, na adolescência, já bastante independente e com outros interesses, viajava sozinho e, quando o trem passava nas pontes, ficava na porta olhando para baixo, para os rios. A vista era bem melhor que a da janela. Minha paixão por pontes só rivaliza com minha paixão pelos rios. Gosto do mar, moro perto de lindas praias, mas não troco o rio, qualquer rio, pelo mar. Rios e pontes são presenças constantes em minha vida. Passei por muitas mudanças, abandonei muita coisa, descobri outras tantas, mas as pontes e os rios são constâncias, são regularidades que nunca sumiram do meu horizonte. Acho que descobri a importância que pontes e rios têm para mim com o Pablo Neruda. Li “Confesso que vivi” na adolescência e voltei a lê-lo mais tarde. Levei o livro comigo em algumas viagens de trem. José del Carmen Reys Morales, pai do Neruda e amante das pontes, era maquinista de um trem lastreiro. As narrativas das viagens de trem com o pai são alguns dos momentos mais bonitos das memórias do poeta.

Neste fragmento, Neruda declara seu amor às pontes:

“Em Chungking meus amigos chineses me levaram para ver a ponte da cidade. Sempre amei as pontes. Meu pai, ferroviário, inspirou-me grande respeito por elas. Nunca as chamava de pontes; teria sido uma profanação. Chamava-as de obras de arte, qualificativo que não concedia às pinturas, às esculturas e nem, é claro, a meus poemas; somente às pontes”.

Meu pai também admirava as pontes, embora não verbalizasse. Homem de poucas palavras, expressava-se melhor com o ferro, criando pequenas obras de arte para entreter os filhos (Brinquedos e quebra-cabeças de ligas de ferro). E ajudava a construir pontes, as grandes “obras de arte” que encantavam o senhor Morales. Embarcando no trem do poeta-maquinista dos bosques chilenos, diria que as pontes, signos da associação, são poemas suspensos, escritos na linguagem do ferro e do fogo (sem metáforas), que comunicam margens e ligam o que antes estava dissociado.

Ônibus? Não. Na época, era um luxo que não podíamos ter.

Outras duas pontes, de dimensões bem mais modestas, eu atravessava quase diariamente para ir à escola ou para ir ao centro da cidade. A menor delas, que chamávamos de pontilhão, era uma pontezinha sinistra localizada na antiga linha do trem, a duzentos metros da minha casa. Circulavam narrativas no bairro sobre uma mulher que foi atropelada pelo trem e caiu da ponte. Desde então o seu fantasma assombrava o lugar e perseguia quem se atrevia passar por ali à noite. Nunca vi o tal fantasma, mas gelava de medo quando, no cair da noite, passava no pontilhão. Se pudesse evitar passar ali, evitava. A outra era a ponte do Itaimbé, na rua Silva Jardim, onde me encontrava com a turma do skate e os amigos das bebedeiras. A ponte, pela velha incompetência do poder público, ficou por um bom tempo inacabada, sem ligar os dois lados da rua. Sorte a nossa, que não tínhamos carro e nos divertíamos com pouco. Subir na ponte em construção, e ficar “planando entre o céu e a terra”, era a diversão da minha turma de adolescentes roqueiros, pobres e desempregados. Levávamos violões surrados, toca fitas e vinho barato, e fazíamos daquele lugar um pequeno santuário suspenso, encravado no coração da urbe.

Se as pontes falassem, e fossem indiscretas, teriam muito que contar sobre namoros relâmpagos, escondidos, interrompidos. Pontes também são esconderijos urbanos para amantes de passagem.

Havia ainda a Garganta do Diabo, ponte de dimensões colossais, inacreditavelmente alta, que levava aos balneários e as cachoeiras da serra. Histórias de suicídios e acidentes terríveis tornaram a ponte lendária. Passei uma única vez a pé pela Garganta do Diabo. Foi deliciosamente aterrorizante!  







Hoje moro na ilha de Florianópolis. Três pontes ligam a ilha ao continente. Duas delas são o meu caminho de todos os dias, para entrar ou sair da ilha. São pontes funcionais, pesadas e frias. A outra, é o cartão postal da cidade. Bela, melancólica, superfaturada, a ponte Hercílio Luz é o signo metonímico da modernidade e da nossa Belle Époque. Sinto-me em casa quando, chegando de uma viagem, avisto a ponte.



Das pontes reais, feitas de ferro, concreto e travessias, vieram as pontes poéticas, cinematográficas, que me levaram para outras margens. Em alguns dos filmes mais marcantes na minha vida, as pontes são verdadeiras entidades. Em “Era uma vez na América”, a magnífica ponte sobre o East River, que liga Manhattan ao Brooklyn, é a moldura poética da narrativa épica de Sergio Leone sobre a vida, as amizades, os amores e a lealdade entre seis garotos judeus pobres que crescem no Brooklyn em meio à criminalidade. 

A ponte, capturada pela bela fotografia de Tonino Delli Colli, em tom sépia, para recriar a atmosfera dos anos 20 e 30, é testemunha imóvel e silenciosa dos encontros e desencontros dos personagens. A trilha insuperável de Ennio Morricone é de chorar. Quero um dia me sentar próximo à ponte, ali onde Noodles e seus amigos passavam, e ouvir a trilha do filme num fone de ouvidos.  



No filme “Os Amantes da ponte Neuf”, de Leos Carax, de 1991, a ponte (acima) é o cenário de uma história louca de amor, na contramão dos romances clichês e convencionais ambientados em Paris, entre Michèle (Juliete Binoche), uma estudante de arte cega de um olho que vive na rua depois do fim de uma relação e Alex (Denis Lavant), um mendigo que sobrevive cometendo pequenos furtos e se apresentando na rua cuspindo fogo. O improvável e imprevisível romance se passa quase que inteiramente na ponte Neuf, a mais antiga das pontes construídas sobre o Sena. A ideia é uma grande sacada! A ponte, lugar de passagem, de fluxo, de pessoas em trânsito (o não-lugar, portanto), transforma-se no “lar” provisório do estranho e irresistível casal de desajustados. Quando estive em Paris fui conhecer a ponte. Passei por baixo e por cima, como nos tempos de criança, atento a tudo. Para quem está apenas de passagem, com olhares fugidios, ela não oferece grandes atrativos e não se destaca das tantas outras que atravessam o Sena. Apesar de linda, se observada com cuidado, a ponte é aparentemente discreta. Vista com mais atenção, revela a solidez e a gravidade das pedras e a beleza dos arcos romanos. É uma das mais bonitas pontes europeias. Para quem viu, e se viu, no filme, e guardou as imagens daquele amor visceral, pungente e tão profundamente romântico quanto à aspereza do chão onde Alex desesperadamente esfrega a cabeça, a ponte tem um apelo quase mítico.



Neste pequeno inventário das pontes da minha vida não poderia faltar René Magritte. Na tela intitulada “Saudade”, de 1940, um homem de asas, vestido de preto, está sobre uma ponte, ao lado de um leão. Homem e leão, indiferentes um ao outro, não pertencem àquele lugar. A ponte, que não liga nada a lugar algum, encerra a melancolia dos dois seres que parecem saber que o sentido de tudo está em lugar nenhum. Destituída dos seus significados mais imediatos e reconhecíveis – ligação, travessia, passagem -, bem ao gosto do pintor, a ponte se converte numa prisão da qual nem mesmo o homem com asas consegue escapar. 






2.      A Dimensão Teórica da Ponte.

Na escrita da minha tese de doutorado, inesperadamente, me deparei com uma ponte batizada com o nome do personagem central das minhas pesquisas: padre Roque Gonzáles. Aproveitei a oportunidade e tentei pensar sobre os significados que a ponte, como signo de fronteira, de passagem e de divisa, comporta. Passei a entender melhor estas poderosas e duradouras estruturas (ou simples arranjos provisórios) que tornam nossos caminhos mais fluídos.

Vamos explorar a ponte Roque González?


A ponte que leva o nome do missionário jesuíta é a famosa ponte internacional sobre o Rio Paraná, inaugurada em 1990, que liga, de um lado, Posadas, na Argentina, e de outro, Encarnación, no Paraguai. É o espetacular encontro do rio com a ponte! Por sugestão do Bispo Diocesano de Missiones a obra foi batizada de Ponte Roque González de Santa Cruz. A homenagem ao jesuíta foi motivada pela obra de evangelização que realizou na região. No início do século XVII fundou a redução de Nuestra Señora de la Anunciación de Itapúa, na região da atual cidade de Posadas, que posteriormente foi transferida para a outra margem do rio com o nome de Nuestra Señora de la Encarnación. Embora no presente estejam situadas em territórios nacionais distintos e separadas por fronteiras políticas bem precisas, Posadas e Vila Encarnación estão ligadas a um passado colonial e jesuítico em comum. O nome da ponte é ao mesmo tempo uma referência e um apelo a este passado.

Nos dois lados do Rio, Roque Gonzáles é reconhecido hoje, nos discursos oficiais, como o Fundador da atual cidade de Posadas e da Villa Encarnación. É visto nas crônicas oficiais locais como uma espécie de cruzador de fronteiras e herói civilizador, pois sua entrada naquelas terras remotas e selvagens marca o advento da ordem racional e civilizadora na região. Isso equivale a dizer, nos termos tradicionais, que com a chegada dos primeiros jesuítas o antigo Paraguai deixa para trás a pré-história e entra definitivamente nos domínios da história. 

Mas o nome da ponte não se resume a uma simples homenagem ao fundador das duas cidades. Apesar de levar o nome do santo paraguaio, a ponte emerge em meio a conflitos internacionais entre os países que tem no rio Paraná uma fronteira comum. Os discursos da integração, que buscam no padre Roque um ponto identitário e uma história em comum no passado, escondem antagonismos e tensões fronteiriças que se arrastam há séculos, que vem dos tempos coloniais, atravessam a formação dos estados nacionais e se projetam no século XX. O período que se estende desde a expulsão dos jesuítas até o final da guerra da Tríplice Aliança foi marcado por diferentes tentativas de demarcação de fronteiras, que terminou por identificar o Rio Paraná como limite político entre Brasil e Paraguai e entre Paraguai e Argentina. Desde então o rio e suas disputadas águas tem sido alvo de estratégias geopolíticas e conflitos diplomáticos pelos usos dos recursos da região. Os conflitos entre Brasil e Argentina em torno da construção das hidrelétricas de Itaipú e Yacyretá revelam as manobras políticas dos dois países pelo predomínio regional. A hidrelétrica argentina foi uma resposta geopolítica a crescente influência brasileira na região. Foi, portanto, uma obra visando mais o jogo político do que o desenvolvimento econômico (Alejandro Grimson mostrou que a construção da represa argentina era um projeto anti-econômico, porém estratégico para a equivalência de forças na região. A preocupação da Argentina era não tornar-se um simples satélite do Brasil). A ideia da construção da ponte nasceu em meio a estes conflitos das hidrelétricas. A ponte, inaugurada em 1990 foi, na verdade, uma forma de ressarcimento econômico ao Paraguai pelos prejuízos provocados pela construção de Yacyretá. O lado paraguaio, mais baixo que o argentino, sofreu mais com a represa das águas, que atingiu maior quantidade de terras. A construção da ponte foi uma recompensa indenizatória para poder avançar com a construção da represa.




É em meio a estas disputas nacionais e jogos de influência regionais que o nome de Roque González vai ser lembrado. Para além dos conflitos, um consenso: padre Roque é visto na região, outrora integrada pelos trinta povos jesuíticos, como o fundador. Percorreu heroicamente os três países e semeou as bases da civilização. A escolha da figura de Roque González para dar nome à ponte sugere a evocação do tempo das reduções, anterior aos Estados Nacionais platinos, em que o rio Paraná não representava um corte político a separar os povos. Padre Roque, e depois os seus companheiros, fizeram do rio um canal de comunicação entre a margem espanhola e a margem indígena. Irmanaram os dois lados do rio pela pregação do evangelho. Prova disso são as ruínas das antigas reduções, encontradas em ambas as margens. Do lado argentino, encontram-se as ruínas de San Ignácio, e do lado paraguaio, as de Trinidad e Santos Cosme y Damian. São testemunhos inequívocos de um passado em comum. Os discursos identitários, expressos pelos periódicos e discursos políticos, apelam para esta suposta irmandade entre as duas cidades, que remontam a sua fundação, como legitimadora da integração regional. Prevalece a imagem de que, para além das fronteiras, subjaz um substrato identitário que permanece indiferente aos limites trazidos pelos estados nacionais. Roque González simboliza, na região que se diz o “corazón del  Mercosur”, o laço identitário que amarra a integração. A ponte que leva seu nome é mais um exemplo dos usos que se fazem do passado para legitimar projetos políticos, identitários e de integração regional. Mas o meu interesse na ponte, neste momento, é outro.

Georg Simmel, num inspiradíssimo ensaio de 1909, fez uma ontologia da ponte, explorando os pares antitéticos associar-dissociar, separar-reunir, como “dois aspectos do mesmo ato”, para discorrer sobre a ação volitiva do homem no espaço. A ponte, diz Simmel, simboliza “as formas que regem a dinâmica da nossa vida”. “Porque o homem é o ser de ligação que deve sempre separar, e que não pode religar sem ter antes separado - precisamos primeiro conceber em espírito como uma separação a existência indiferente de duas margens, para ligá-las por meio de uma ponte. E o homem é de tal maneira um ser-fronteira, que não tem fronteira.” Parto desta visão quase vertiginosa de Simmel para explorar os múltiplos significados que a ponte sugere.

Mais do que a obra de arte, cruzamento da engenharia com a arquitetura, interessa-me a ponte como metáfora. Intervalo fluído entre duas margens, a ponte evoca um amplo conjunto de significados e perspectivas. A ponte, como a fronteira, combina simultaneamente um aspecto de fixidez e outro de fluidez. Ela fixa um caminho entre duas extremidades, antes separadas, ao mesmo tempo em que é passagem fluída, deslizante. É a estranha sensação de estar em lugar nenhum, ou como disse Simmel, planando entre o céu e a terra. À imagem da ponte sobrevém a do deslocamento: deslocamento geográfico, humano, linguístico, cultural. Ponte evoca o que não está fixo, o que esta em trânsito, portanto, transitório. É o vir a ser. A possibilidade de outras margens. Não é de onde se parte, nem aonde se chega. É a travessia, a passagem, via de comunicação entre dois registros territoriais ou culturais. Lembro-me de quando saía de casa para visitar meus tios no Itararé. Antes de chegar à ponte, estava no meu bairro, no meu lugar. Na travessia, sobre a ponte, estava em lugar nenhum, suspenso no tempo e no espaço entre o meu lugar e o outro lado. Quando alcançava a outra margem, estava em território estrangeiro.

A ideia de ponte como travessia, passagem, ligação e diálogo, acompanhou minha vida até aqui, e atravessou minha tese de doutorado de ponta a ponta. Na tese, tomei a ponte, na sua polissemia e ambivalência, como metáfora das inúmeras injunções. Explorei pelo menos quatro sentidos metafóricos: 1. ponte como passagem da barbárie à civilização, da selva à vida política (que presidem o ideal reducional); 2. ponte como fluxo semântico, que está presente na tradução cultural; 3. ponte como diálogo/passagem entre os tempos, que define minha ideia de História; 4. ponte como símbolo de fronteira e da situação fronteiriça da evangelização.

Se na minha vida a ponte, que separa e junta, era e é a passagem para o outro lado da cidade, do rio, na tese, a homenagem ao padre Roque é a minha ponte para o século XVII, uma forma de diálogo/passagem entre o presente e o passado. Como símbolo da associação, nas palavras de Simmel, a ponte traça um caminho entre dois lugares, entre duas culturas. Tomo esta ideia de empréstimo para lançar então uma ponte entre os tempos. Se a História é um diálogo dos sentidos do presente com os do passado, a metáfora da ponte pode orientar esse diálogo. Contudo, lanço uma ponte não para capturar o fluxo contínuo da história, mas para escavar o descontínuo, para ressaltar as diferenças, sublinhar a singularidade das experiências. Não vou ao passado para encontrar raízes, nem as causas do presente. Um retorno ao passado, pelo fio da memória escrita dos jesuítas, não é uma viagem nostálgica guiada pela “ideologia do retorno”. Remontar ao século XVII só tem sentido se encontramos lá modos de existência, ou outras racionalidades, que possam, nos termos de Foucault, confrontar as nossas e tornar “possível uma crítica do presente.” O passado pelo passado é uma obsessão de antiquário.
Afinal, nós não atravessamos pontes para encontrar o mesmo.


3.      Uma Ponte no fim de Tudo.

Fosse eu um homem de fé, religioso e espiritualizado, diria que a morte seria minha última ponte, a passagem para o “outro lado”. Cairia bem, encerraria o texto de maneira elevada, criando uma ponte com a eternidade. Mas não é o caso. Minhas pontes dizem respeito a este mundo e regem a dinâmica da minha vida mundana, mortal e completamente destituída de transcendência. A morte é a ponte para o fim. É a passagem da vida para o nada. É ponte de uma margem só. Não quero viver para sempre. Não desejo a eternidade. Quero a beleza trágica da travessia, este tempo suspenso, ponte entre o nascimento e a morte.