TransUcrânia: a guerra contra a transfobia no interior da guerra
imperial do Putin.
Prédio no centro de Kiev
O
guerra do Putin contra a Ucrânia é destacadamente o assunto mais comentado na
mídia internacional e nos principais veículos de comunicação no Brasil. Diferentes
aspectos da guerra são exploradas à exaustão, com destaque para as estratégias
de ataque e defesa, os horrores enfrentados pela população, a ameaça de uma guerra
nuclear e as tentativas de negociação. (Quase) nada escapa à hiper-cobertura da
imprensa mundial. A guerra é transmitida ao vivo, 24 horas, e mobiliza, sem
reservas, recursos humanos e novas tecnologias de captação e transmissão de
imagens via satélite, que transformam o horror da guerra num espetáculo
televisivo depurado e estranhamente convidativo. Um lado menos atraente da
guerra, no entanto, vem sendo esquecido e/ou ignorado: a luta da comunidade trans para sobreviver à guerra e à transfobia. É uma guerra invisível
contra o preconceito e a violência de gênero, travada no interior e à margem da
guerra-espetáculo.
Fugindo
da guerra, parte da população ucraniana que vive nas áreas e cidades mais
atingidas pelos conflitos, está atravessando as fronteiras para os países
vizinhos, que se mostram solidários e receptivos. Mas a saída pela fronteira
não é para todo mundo. Pessoas trans, que
já fizeram a transição de gênero, e estão tentando buscar um lugar mais seguro para
viver, não estão conseguindo deixar o país porque os militares ucranianos não
aceitam os documentos, que ainda trazem a identificação do gênero masculino e
os nomes de batismo. Para estas pessoas a fronteira não é trans (do prefixo
grego que significa “através”, “além de”, e sugere a possibilidade da
travessia, de “atravessar para o outro lado”). A fronteira ucraniana é uma
barreira física transfóbica, não um
lugar de passagem para longe da guerra.
Segundo diversos grupos de direitos
humanos, o reconhecimento legal da identidade de gênero é demorada, humilhante
e abusiva na Ucrânia. Por isso, a maioria trans
ainda usa os documentos antigos. Ao longo do processo de redesignação de sexo,
um conjunto extenso de exames psiquiátricos, que violam a privacidade e a
integridade física das pessoas, são exigidos pelo governo para a realização da
cirurgia e a obtenção dos documentos. Em alguns casos, elas ficam confinadas por
meses em instituições psiquiátricas, submetidas a testes psicológicos e físicos
para comprovar o seu gênero. Uma nova legislação foi proposta em 2017, para facilitar
o processo, mas as novas regras, de acordo com Human
Rights Watch, não saíram do papel. Um importante Relatório elaborado em 2021
pela Nash Mir aponta a pressão dos conservadores e da extrema direita sobre o hesitante
presidente Zelensky. Aponta também a omissão e o incômodo silêncio da imprensa
sobre casos de violência contra a comunidade LGBTQIA+. O Relatório chama a
atenção ainda para o silêncio em torno das manifestações abertas e
agressivamente homofóbicas de
políticos ligados ao Servo do Povo, partido governista, e ao partido Plataforma
da Oposição.
Em 2021
a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais,
também apresentou um Relatório informando a descontinuidade da elaboração do
novo protocolo de saúde para pessoas trans
e denunciando uma ofensiva intimidatória de grupos de extrema direita.
A
guerra contra a transfobia é anterior
a invasão russa e certamente vai continuar depois dos acordos de cessar fogo. O
inimigo doméstico encara o combate à transexualidade
como uma cruzada moral, tem força parlamentar, poder de intimidação e conta com
o silêncio cúmplice da imprensa. A deflagração de guerra pelo também homofóbico Vladimir Putin colocou a
população trans ucraniana numa condição
de abandono e vulnerabilidade ainda maior, lutando em duas guerras, em duas
frentes. Na guerra doméstica o adversário é conhecido, e controla as
fronteiras, impedindo a passagem. Mas a violência não ocorre apenas nas
fronteiras. A discriminação também vem sendo denunciada ao longo da jornada
migratória. A violência é continuada[1],
permanente e acompanha a população trans
do lugar onde mora às fronteiras e vai além. Buscar refúgio em países como a
Polônia, Hungria, Romênia e Eslováquia, onde a identidade trans é “ridicularizada”, segundo uma ucraniana não-binária, pode
envolve-las em outras guerras em território estrangeiro. A perseguição à
comunidade LGBTQIA+ cresceu muito nos últimos anos nestes países, incentivada
pelas ações e declarações de líderes políticos como Viktor Orbán (Hungria) e
Andrzej Duda (Polônia).
Os depoimentos que a cantora
ucraniana Zi Faámelu deu à Vice World News, no dia 2 de março, tem corrido
o mundo por caminhos alternativos e chamado a atenção para esta dimensão invisível
da guerra. Ela está presa em
sua casa, quase sem comida e com medo de sair. No depoimento, denunciou o
abandono de pessoas como ela e fez um apelo: “Pessoas
trans agora se sentem esquecidas, negligenciadas, abandonadas.
Nós realmente somos invisíveis no momento. Nós precisamos das Nações Unidas,
nós precisamos de organizações dos direitos humanos. Precisamos de pessoas para
nos ajudar a sermos percebidos. Há
centenas de nós presos assim, vivendo vidas miseráveis. Precisamos de
alguma influência do exterior. Precisamos que as pessoas escrevam para
seus políticos e instituições de caridade para nos ajudar.”
A situação é tão desesperadora e perigosa para estas pessoas que grupos de direitos humanos estão aconselhando a abandonar suas identidades para poder sair da Ucrânia. Ficar pode ser uma “escolha” ainda mais aterrorizante, disse uma mulher trans. As autoridades estão impedindo os homens de 18 a 60 anos de deixar o país. Não reconhecidas como mulheres, elas podem ser forçadas a se juntar ao exército, “como homens”, para enfrentar os russos, numa guerra que não é delas, ao lado dos seus piores inimigos.
[1] Conceito tomado
de empréstimo de Cynthia Cockburn.
The Continuum of
Violence: A gender perspective on war and Peace. In: GILES, Wenona;
HYNDMAN, Jennifer. (Eds.). Sites of Violence: Gender and Conflict Zones.
Berkeley, Los Angeles and London: University of California Press, 2004. p.
24-44.
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