ZUMBIS EM CUBA: Mortos-Vivos, Dissidência e a
Zumbificação da Revolução.
Os zumbis já não são
mais uma maldição que aterroriza exclusivamente o mundo capitalista. Os mortos-vivos
chegaram a Cuba. Invadiram a ilha e se arrastam esfomeados pelas ruas de
Havana. Como explicar isto? De onde eles vieram? São agentes putrefatos do
imperialismo? A nova arma secreta dos Estados Unidos e da Cia para derrubar o
regime castrista? Já que o bloqueio não deu certo, e os irmãos Castro continuam
no poder, a saída encontrada pelos yankees foi enviar zumbis para devorar o
regime por dentro e determinar o apocalipse do socialismo? Vamos com calma. Alguém pode se empolgar e sugerir que George
Romero, o criador do “apocalipse zumbi”, é agente da Cia. Nem todos os
problemas que afetam a vida – e agora a morte – dos cubanos têm origem em
Washington. E os filmes do Romero - estou pensando na trilogia zumbi – são
severamente críticos dos valores e da cultura do consumo norte americanos.
Estreou sexta feira,
dia 21 de junho, no Brasil, o longa-metragem cubano “JUAN DE LOS MUERTOS”, ou
“Juan of the Dead” (“Juan dos Mortos”), do diretor cubano/boliviano Alejandro
Brugués. Filho de mãe boliviana e pai cubano, Brugués nasceu em Buenos Aires.
Com três anos foi morar em La paz, de onde saiu aos 18 para morar vem Cuba.
Declara-se cubano-boliviano de origem, e cineasta cubano. Estudou e fez filmes
em Cuba.
O lançamento no Brasil
foi simultâneo à estreia de “Guerra Mundial Z”. Mera coincidência. Embora
explorem a temática dos mortos-vivos, os filmes não são concorrentes. O público
que lota as salas de cinema dos shoppings para assistir os blockbusters hollywoodianos
não é o mesmo que procura filmes fora do monopólio dos grandes estúdios nas
salas alternativas de cinema. “Guerra Mundial Z” é um thriller blockbuster bem
ao gosto dos apreciadores do cinema catástrofe e das narrativas apocalípticas
com finais felizes de Hollywood. O filme, dirigido por Mark Foster, é de uma competência
técnica impressionante. O ritmo do filme, ditado por uma montagem virtuosíssima
e algumas sequências moráveis, é alucinante. A brincadeira custou 190 milhões
de dólares. Apesar do final morno, e de ter subtraído do livro de Max Brooks as questões políticas internacionais, os jogos de
poder mundiais e o tráfico internacional de órgãos, que dão sentido a trama, é
um bom filme. A novidade apresentada em Guerra Mundial Z é a
internacionalização da epidemia de mortos-vivos. Os zumbis viraram um problema
mundial. O que poderia colocar em colapso o sistema internacional e as relações
internacionais? As guerras, por mais violentas e longas, não destruíram o
mundo, os governos e as instituições. Após as guerras celebram-se acordos de
paz e inicia-se a reconstrução. Mas a Guerra Mundial Z não é uma guerra entre
estados. É uma guerra contra o fim do mundo.
O apocalipse-zumbi representa o fim da civilização. Mas Mark Foster
resolveu dar uma mãozinha e submeteu a narrativa-zumbi as exigências de
Hollywood. Diferentemente da tradição clássica dos filmes de zumbi, o
blockbuster hollywoodiano tem um herói que luta não para salvar a própria pele,
mas para salvar o mundo. O protagonista, interpretado por Brad Pitt, é um
funcionário da ONU, especializado em missões arriscadas, que corre o mundo
atrás de respostas e de uma cura para a epidemia zumbi. O mundo mergulharia nas
trevas e seria devorado num banquete apocalíptico, não fosse o herói da ONU.
“Juan de los Muertos”,
na mão oposta, custou 2, 3 milhões de dólares e não tem astros internacionais no
elenco. É o primeiro filme independente feito em Cuba, sem recursos
provenientes do Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica. O
governo cubano financiou parte do filme e autorizou as filmagens nos monumentos
celebrativos da revolução (Sinal das mudanças que muito lentamente se processam
em Cuba ou o governo e os órgãos de censura não conhecem a cinematografia zumbi
e não entenderam o filme?). O ator (Jorge Molina) que interpretou Lázaro no
filme, nos ajuda a entender melhor isto. Disse numa entrevista que estão
ocorrendo algumas mudanças em Cuba, quase imperceptíveis para quem está de
fora. "Há dez anos, disse Molina,
seria impossível fazer este filme. Não só houve flexibilização do regime, mas
já não existe tanto controle sobre tudo como havia antes". O ator, que é
professor em Havana, disse ainda que a ideologia da revolução não faz mais
sentido para as novas gerações: "Todos meus alunos querem ir embora de
Cuba, pois não enxergam saídas por lá".
O filme é de 2011, mas
só agora chegou ao Brasil. Infelizmente vocês não verão este filme nas salas
convencionais de cinema dos shoppings. Lá vocês só assistem o que os donos das
salas decidem o que vocês vão assistir. Lamento. Na falta de uma alternativa
melhor, o youTube dá um jeito.
Até 2011 os filmes
sobre zumbis eram ambientados no mundo capitalista. Desde o clássico e seminal “Night
of the Living Dead”, dirigido em 1968 por George Romero, os filmes de zumbis são
vistos como uma metáfora política e uma arma crítica contra o conservadorismo
político, o racismo, a guerra, o consumismo, e conectados com a luta por
direitos civis nos Estados Unidos. Coube a Alejandro Brugués dar o passo
adiante e despejar zumbis no mundo socialista. A metáfora-zumbi engatilhada
contra os valores do mundo capitalista foi a grande sacada de George Romero.
Deslocada deste universo e apontado para uma sociedade socialista, que se
define pelo oposto, ela faria algum sentido?
Brugués se confessa um
fã de filmes de zumbis desde a adolescência (Adolescência vivida na Bolívia, que
explica o acesso aos filmes). O extraordinário título “Juan of the Dead” é uma
brincadeira com “Dawn of the Dead”. O diretor combina humor e terror, dois gêneros
propícios para disparar críticas sociais, para refletir sobre o mundo em que
vive. Apropria-se da fórmula e da estética zumbi para refletir sobre a sociedade
cubana, a revolução e o regime castrista. Sugere que o ideal revolucionário do
“novo homem” está em decomposição e que os heróis cultuados pela revolução
estão mortos para o povo cubano. Che, neste caso, seria um herói/símbolo zumbi.
O filme começa com um
homem sobre uma balsa improvisada flutuando num mar azul. Quem é este homem?
Para onde ele vai? Seria um cubano fugindo para Miami? A primeira impressão é
esta. A Câmera desce do alto e encontra o homem dormindo sobre a balsa. Outro
homem aparece. São pescadores cubanos. Lázaro (Jorge Molina) pergunta para Juan
(Alexis Díaz de Villegas) se ele já pensou em
ir para Miami. Não, diz Juan, lá eu teria que trabalhar. Sou um sobrevivente,
diz em tom jocoso, sobrevivi aos “tempos especiais”. A conversa termina e Juan
fisga alguma coisa grande. Parece que a sorte está mudando. Puxa a linha e ao
invés de um peixe, um homem. Aproxima para ver mais de perto e o homem, um
morto-vivo, tenta mordê-lo. Lázaro dispara uma flecha contra a criatura, que
veste o uniforme laranja dos presos políticos cubanos. Depois do susto, a dupla
inseparável volta para Havana. Mas nada mais será como antes na cidade natal
Jose Martí...
O personagem Juan foi
impecavelmente construído por Alexis Díaz de
Villegas, ator de teatro e professor de interpretação em Cuba. Juan é um
sujeito que leva a vida na flauta. Não tem trabalho regular, vive de pequenos
trambiques, explorando as fragilidades do regime e as necessidades da população.
É um beberrão, mulherengo e pai ausente. É indiferente ao socialismo, à
ideologia, mas não é um tolo. Sabe diferenciar um morto-vivo de um dissidente. A
figura Juan é representativa de uma parcela da população que faz da carência e
da escassez uma forma de ganhar a vida. De volta à cidade, ele seu amigo Lázaro
descobrem que aquela “coisa” que fisgaram no anzol não é uma caso isolado. É
uma praga que está se espelhando pela cidade. Pessoas conhecidas da vizinhança morrem
e retornam agressivas, tentando morder parentes e amigos.
A TV oficial se apressa
em acalmar a população oferecendo a velha desculpa de sempre: os transtornos anti-revolucionários
estão sendo provocados por dissidentes políticos em conluio com os Estados
Unidos. Mas Juan, macaco velho, sabe que não são dissidentes. Um dos
mortos-vivos era conhecido seu. O sujeito era tudo, menos um dissidente. Mas
repetidas vezes a TV oficial declara que se trata de uma conspiração anti-socialista
dos Estados Unidos e da Cia. A desculpa eterna do governo cubano para explicar tudo
o que escapa ao seu controle e justificar seus erros, virou piada.
Juan, que vê em tudo
uma oportunidade de ganhar dinheiro, descobre que pode lucrar com a endemia que
assola a ilha. Improvisa com os amigos uma equipe para exterminar as criaturas,
embora não saibam bem do que se trata. Não sabem se são vampiros, lobisomens ou
outra abominação qualquer. Nem cogitam a possibilidade de serem zumbis. A moda
zumbi que contagia o cinema na maioria dos países ocidentais, sugere o filme, é
desconhecida em Cuba. Um pastor italiano alucinado que salva o grupo de ser
comido por um bando de mortos-vivos é quem revela a Juan que o que eles
estão enfrentando são zumbis. A equipe liderada pelo quixotesco Juan conta com o desopilante
Lázaro, seu fiel escudeiro (seu Sancho Pança), Camila (Andrea Duro, atriz
espanhola), filha de Juan que vivia na Espanha, mas retorna a Cuba por conta da
crise econômica na Espanha, Vladi California (Andros Perugorría, filho de Jorge
Perrugorría), filho de Lázaro e La China (Jazz Vila), um travesti bom de briga.
A equipe anti-zumbi vai se especializando na arte de (re)matar zumbis e oferece
os seus serviços de um modo nada convencional: “Juan de los Muertos, matamos a sus seres
queridos”
Juan é o anti-herói. Explora
a desgraça alheia, mas, ao mesmo tempo, e sem querer, livra a população das
medonhas criaturas. Torna-se herói por acidente. Queria salvar a própria pele e
lucrar com a desgraça social, mas salva seus amigos, sua filha e desconhecidos.
A situação se agrava. As hordas de zumbis crescem assustadoramente. Diante do
avanço incontrolável da endemia, duas alternativas: deixar Cuba ou ficar e
lutar. O grupo, por decisão de Juan, se divide. Uns vão para Miami, Juan fica. Os que vão embora não são traidores da
revolução. Quem fica, não é herói nem defensor do regime. Os que partem, partem
em busca de dias melhores. Quem fica, como Juan, fica porque não consegue por
razões afetivas deixar o país e porque quer lutar por mudanças.
São muitas as leituras
que o filme possibilita. Quem são os zumbis? O regime? A letargia do povo? As
duas coisas? A metáfora-zumbi sugere, por exemplo, que o regime, assim como os
zumbis, está em decomposição, se arrastando como um morto-vivo. A revolução,
como discurso anacrônico e sem sentido para os cubanos, é também um morto-vivo.
“Juan de los Muertos” zomba dos slogans apologéticos da revolução espalhados
pela cidade (“Habana Libre” – “Revolución o Muerte” – “Hasta da’la vitoria,
siempre”), exibindo-as em situações hilárias ou apocalípticas. Numa nas
sequências uma caminhão desgovernado bate e derruba um outdoor iluminado, com a
legenda “Revolución o Muerte”. Pelo menos no cinema estão botando a propaganda
oficial abaixo.
Os zumbis socialistas
não diferem de seus semelhantes do mundo capitalista. Só pensam em comer carne
de gente. Havana, como Londres e New York, foi tomada por milhares deles. As
massas zumbificadas por cinco décadas foram às ruas e tomaram a cidade. Derrubaram
o regime e devoraram suas entranhas. Multidões de mortos-vivos que outrora eram
donas de casa, taxistas, pedreiros, professores, anônimos e indiferentes a
qualquer tipo de apelo, transformaram Havana num banquete a céu aberto. É a
revolução dos zumbis, dos silenciosos, dos que estavam calados. A invasão zumbi
tomou Havana, derrubou o regime (como em 1959) e devora sem piedade todos os
que cruzam o seu caminho (el paredón).
Brugués abusa dos
clichês do gênero e cria as mais bizarras armas para matar zumbis, inventa
gestos acrobáticos para a equipe antizumbi enfrentar as criaturas e coloca os
mortos-vivos em situações cômicas, que pulverizam o terror e chamam a atenção
para as questões sociais e políticas.
O recado foi dado. “Juan
de los Muertos” é para o regime castrista o que “Night of the Living Dead” foi para
a excludente, racista e intolerante democracia norte-americana: uma patada
cinematográfica. A hermenêutica-zumbi, como chave para ler o regime cubano, é
uma grande sacada. (Gadamer que me perdoe, mas em terra de morto-vivo quem não
tem uma boa clave interpretativa vira banquete de zumbis politicamente
esfomeados). O socialismo cubano é um socialismo-zumbi. O regime se arrasta, cambaleante
e roto, como um morto-vivo. Juan, a versão socialista do malandro convertido em
exterminador de zumbis, é um subproduto do regime. Os heróis revolucionários,
os slogans que chicoteiam os olhos e a consciência dos transeuntes e os
onipresentes monumentos à revolução, tão vivos para a elite dirigente, estão
mortos para a população. São símbolos de um passado morto que aprisiona o mundo
dos vivos.
Um gigantesco zumbi
leninista arrasta-se no mar do Caribe. “Juan de los Muertos” é o prenúncio do
apocalipse do socialismo? Ou os zumbis totalitários têm fome para mais algumas
décadas?
Abaixo, um trecho de
uma entrevista com Alejandro Brugués.
“Os cubanos têm basicamente três
maneiras de lidar com problemas: transforma-lo em um negócio, se acostumar e
continuar com suas vidas, ou joga-los no mar e correr. Juan me da à
oportunidade de fazer as coisas realmente difíceis para os “cubanos zumbis” que
enchem o país, mas também me apresenta um protagonista que pode fazer uma
escolha diferente, e dizer: "Eu não vou tolerar isso, este é o meu país,
eu o amo e vou ficar para defendê-lo"... depois de testar com o negócio e
continuar com sua vida, de forma clara. A ideia com Juan dos Mortos é fazer uma
comédia totalmente irreverente, com personagens muito cubanos, cheio de ação e
aventura, um filme que pode assustar tanto ou atrair a sua atenção para que
você nos veja como realmente somos. Preenchê-lo com cenas de ação
espetaculares, mas ambos não tão fora do comum (centenas de pessoas pulando no
mar em uma balsa e ônibus batendo contra embaixadas são coisas que eu já vi
pessoalmente), mas com os momentos de dúvida e reflexão que temos todos os
dias.”