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sábado, 20 de julho de 2013

WADJDA: A Bicicleta Como Metáfora da Emancipação Feminina na Arábia Saudita.



WADJDA: A Bicicleta Como Metáfora da Emancipação Feminina na Arábia Saudita.




Na mesma semana em que correu o mundo a notícia de que as mulheres foram proibidas de frequentar a biblioteca pública da cidade de Hafar AL Batin, na Arábia Saudita, foi exibido no cinema do CIC, em Florianópolis, o filme “Wadjda” (“Um Sonho para Wadjda”). O filme é o prenúncio das mudanças que muito lentamente começam a ocorrer no país. Haifaa al-Mansour, primeira mulher cineasta na Arábia Saudita, rodou o filme em 2012. É o primeiro longa-metragem filmado inteiramente no país. Numa entrevista a revista TPM Haifaa contou que adora cinema desde menina. Assistia filmes egípcios antigos e filmes de Bollywood, mas eram os filmes norte-americanos os que mais mexiam com ela. “Quando fiquei mais velha, conta Haifaa, passaram a existir locadoras de vídeo na Arábia Saudita, mas eram proibidas para mulheres. Como eu não podia entrar, fiz amizade com o rapaz que trabalhava em uma das locadoras perto de casa e ele levava o catálogo de filmes na porta da loja para eu olhar.” Logo vieram os primeiros experimentos com cinema e o documentário “Women Without Shadows”, “sobre a história e realidade das mulheres sauditas”. Haifaa estudou cinema em Sidney, onde iniciou o projeto do seu primeiro longa-metragem.






O enredo de “Um Sonho para Wadjda” é simples e eficiente. Wadjda é uma menina diferente. Não cobre o rosto com um lenço quando sai de casa, calça um all star surrado para ir à escola (enquanto as colegas calçam sapatinhos pretos todos iguais), ouve rock, músicas românticas e comete pequenos delitos cotidianos como vender pulseiras não recomendáveis na escola e passar bilhetes furtivos para os namorados proibidos das colegas. Diferentemente das meninas da sua idade que sonham em casar, o seu sonho é comprar uma bicicleta para provar para um menino que pode vencê-lo numa corrida.  O problema é que na Arábia Saudita bicicleta é proibida pera meninas. Mitos como a perda da virgindade e a infertilidade estão associados ao objeto do desejo de Wadjda. Mas nada disso a abala.



Para ter sua bicicleta a menina faz de tudo, junta dinheiro, faz pequenos favores para as colegas e amigas, e se mete num concurso de declamação do corão, cujo premio possibilitaria comprar o objeto do desejo. Vence suas dificuldades, ganha o concurso, mas não recebe o dinheiro. O sonho fica cada vez mais distante. No fim, de onde ela menos espera, a bicicleta chega. Ganha de presente da mãe que, ao ver o sonho de um casamento monogâmico desaparecer, se dá conta de que o sonho de Wadjda é, no fundo, o sonho dela: lutar por mundo com mais espaço e direitos para as mulheres.


 De posse da bicicleta Wadjda pode enfim apostar corrida com o garoto. A brincadeira de criança, o sonho da menina, é uma forma de dizer que as mulheres podem disputar com os homens, se igualar, ou vencê-los. Basta a oportunidade. Mas a oportunidade não vai cair do céu. A menina lutou pela bicicleta, desafiou o conservadorismo e não baixou a guarda diante dos sermões, das chacotas e dos esforços para domesticá-la. Wadjda não ganhou a bicicleta. Definitivamente, ela a conquistou. Como conquistou o respeito do menino e do dono da loja que vendia bicicletas. 



Os dois partem para a corrida. O menino logo fica para trás. Wadjda pedala freneticamente, se afasta do centro mais tradicional do subúrbio e alcança a parte mais moderna e cosmopolita da cidade. Pedala até uma avenida movimentada, para, mira o horizonte e respira a liberdade do momento, da vitória, da conquista. Não é a vitória sobre o garoto que importa. O que está em jogo aqui é a autonomia de andar com as próprias pernas (rodas) e alcançar novos horizontes. Antes ela pedalava escondida de todos, num espaço restrito, na bicicleta do amigo. E nós nos perguntamos: qual é o limite do sonho de Wadjda?



A bicicleta de Wadjda é uma metáfora da luta pele emancipação feminina num dos países mais conservadores e machistas do mundo. Mas deixemos que Haifaa al-Mansour nos conte com suas palavras o porque da bicicleta: “A bicicleta é uma metáfora para liberdade de movimento, que não existe para mulheres e garotas na Arábia Saudita. Se eu quero ir a qualquer lugar, preciso de permissão de algum homem da família. Eu não posso dirigir um carro nem mesmo andar na rua ou tomar um trem sem permissão. Eu queria que a aceleração, o movimento da bicicleta desse vida ao debate intelectual e fizesse as pessoas entenderem que isso é apenas movimento. Essa foi a forma que encontrei de dar uma face humana, levar vida a alguns desses problemas de que falamos de um maneira tão teórica.


O filme situa-se num contexto de lentas mudanças em relação aos direitos femininos no país que ocupa o 131º lugar, em um total de 135 países, de acordo com o último Informe sobre Disparidade de Gênero do Foro Econômico Mundial, publicado em 2012.  A ONG Human Rights Watch apresentou recentemente um relatório mostrando a ineficiência do governo saudita em garantir os direitos de 9 milhões de mulheres e crianças no país, 8 milhões de trabalhadores estrangeiras e 2 milhões de xiitas. As mulheres ainda precisam da autorização tutelar do homem para viajar, estudar e para abrir contas bancárias, mas os sinais de mudança começam a aparecer. Em 2013 uma campanha intitulada “Abusos Não Mais”, foi ao ar nos canais de mídia social, Twitter e Facebook. A campanha contra a violência doméstica é pioneira na Arábia Saudita. Mostra uma mulher coberta com o véu islâmico e com marcas de agressão no olho, seguida do slogan: “Algumas coisas não podem ser escondidas”.






Por fim, o filme de Haifaa al-Mansour chama a atenção para as particularidades das lutas das mulheres sauditas e, de um modo geral, no mundo islâmico. A religião, sistema cultural (Geertz) sob o qual se fundamenta o regime de restrições às liberdades femininas, diferentemente do Ocidente, é usada pelas feministas muçulmanas como instrumento de luta por direitos civis e liberdades. Wadjda aprendeu a usar a religião para conquistar pequenas vitórias. A competição escolar de conhecimentos e recitação do Alcorão, mencionada anteriormente, é para ela a oportunidade de ganhar dinheiro para comprar a tão sonhada bicicleta. A menina faz uso tático e invertido da religião para alcançar seus objetivos. Num misto de inocência e esperteza, Wadjda atua astutamente nas fendas sociais, driblando o discurso dominante e construindo alternativas ao cerceamento das liberdades femininas. É a arte ordinária de transformar fendas em espaços de liberdade.


“A Arábia Saudita ainda tem um longo caminho a percorrer, as mulheres ainda têm que lutar muito, se unir, se impor... Fazer filmes foi a minha maneira de fazer isso.” (Haifaa al-Mansour).

sábado, 13 de julho de 2013

ZUMBIS EM CUBA: Mortos-Vivos, Dissidência e a Zumbificação da Revolução.



ZUMBIS EM CUBA: Mortos-Vivos, Dissidência e a Zumbificação da Revolução.



 Os zumbis já não são mais uma maldição que aterroriza exclusivamente o mundo capitalista. Os mortos-vivos chegaram a Cuba. Invadiram a ilha e se arrastam esfomeados pelas ruas de Havana. Como explicar isto? De onde eles vieram? São agentes putrefatos do imperialismo? A nova arma secreta dos Estados Unidos e da Cia para derrubar o regime castrista? Já que o bloqueio não deu certo, e os irmãos Castro continuam no poder, a saída encontrada pelos yankees foi enviar zumbis para devorar o regime por dentro e determinar o apocalipse do socialismo? Vamos com calma.  Alguém pode se empolgar e sugerir que George Romero, o criador do “apocalipse zumbi”, é agente da Cia. Nem todos os problemas que afetam a vida – e agora a morte – dos cubanos têm origem em Washington. E os filmes do Romero - estou pensando na trilogia zumbi – são severamente críticos dos valores e da cultura do consumo norte americanos. 

Estreou sexta feira, dia 21 de junho, no Brasil, o longa-metragem cubano “JUAN DE LOS MUERTOS”, ou “Juan of the Dead” (“Juan dos Mortos”), do diretor cubano/boliviano Alejandro Brugués. Filho de mãe boliviana e pai cubano, Brugués nasceu em Buenos Aires. Com três anos foi morar em La paz, de onde saiu aos 18 para morar vem Cuba. Declara-se cubano-boliviano de origem, e cineasta cubano. Estudou e fez filmes em Cuba.

O lançamento no Brasil foi simultâneo à estreia de “Guerra Mundial Z”. Mera coincidência. Embora explorem a temática dos mortos-vivos, os filmes não são concorrentes. O público que lota as salas de cinema dos shoppings para assistir os blockbusters hollywoodianos não é o mesmo que procura filmes fora do monopólio dos grandes estúdios nas salas alternativas de cinema. “Guerra Mundial Z” é um thriller blockbuster bem ao gosto dos apreciadores do cinema catástrofe e das narrativas apocalípticas com finais felizes de Hollywood. O filme, dirigido por Mark Foster, é de uma competência técnica impressionante. O ritmo do filme, ditado por uma montagem virtuosíssima e algumas sequências moráveis, é alucinante. A brincadeira custou 190 milhões de dólares. Apesar do final morno, e de ter subtraído do livro de Max Brooks as questões políticas internacionais, os jogos de poder mundiais e o tráfico internacional de órgãos, que dão sentido a trama, é um bom filme. A novidade apresentada em Guerra Mundial Z é a internacionalização da epidemia de mortos-vivos. Os zumbis viraram um problema mundial. O que poderia colocar em colapso o sistema internacional e as relações internacionais? As guerras, por mais violentas e longas, não destruíram o mundo, os governos e as instituições. Após as guerras celebram-se acordos de paz e inicia-se a reconstrução. Mas a Guerra Mundial Z não é uma guerra entre estados. É uma guerra contra o fim do mundo.  O apocalipse-zumbi representa o fim da civilização. Mas Mark Foster resolveu dar uma mãozinha e submeteu a narrativa-zumbi as exigências de Hollywood. Diferentemente da tradição clássica dos filmes de zumbi, o blockbuster hollywoodiano tem um herói que luta não para salvar a própria pele, mas para salvar o mundo. O protagonista, interpretado por Brad Pitt, é um funcionário da ONU, especializado em missões arriscadas, que corre o mundo atrás de respostas e de uma cura para a epidemia zumbi. O mundo mergulharia nas trevas e seria devorado num banquete apocalíptico, não fosse o herói da ONU.

“Juan de los Muertos”, na mão oposta, custou 2, 3 milhões de dólares e não tem astros internacionais no elenco. É o primeiro filme independente feito em Cuba, sem recursos provenientes do Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica. O governo cubano financiou parte do filme e autorizou as filmagens nos monumentos celebrativos da revolução (Sinal das mudanças que muito lentamente se processam em Cuba ou o governo e os órgãos de censura não conhecem a cinematografia zumbi e não entenderam o filme?). O ator (Jorge Molina) que interpretou Lázaro no filme, nos ajuda a entender melhor isto. Disse numa entrevista que estão ocorrendo algumas mudanças em Cuba, quase imperceptíveis para quem está de fora.  "Há dez anos, disse Molina, seria impossível fazer este filme. Não só houve flexibilização do regime, mas já não existe tanto controle sobre tudo como havia antes". O ator, que é professor em Havana, disse ainda que a ideologia da revolução não faz mais sentido para as novas gerações: "Todos meus alunos querem ir embora de Cuba, pois não enxergam saídas por lá".



O filme é de 2011, mas só agora chegou ao Brasil. Infelizmente vocês não verão este filme nas salas convencionais de cinema dos shoppings. Lá vocês só assistem o que os donos das salas decidem o que vocês vão assistir. Lamento. Na falta de uma alternativa melhor, o youTube dá um jeito.

Até 2011 os filmes sobre zumbis eram ambientados no mundo capitalista. Desde o clássico e seminal “Night of the Living Dead”, dirigido em 1968 por George Romero, os filmes de zumbis são vistos como uma metáfora política e uma arma crítica contra o conservadorismo político, o racismo, a guerra, o consumismo, e conectados com a luta por direitos civis nos Estados Unidos. Coube a Alejandro Brugués dar o passo adiante e despejar zumbis no mundo socialista. A metáfora-zumbi engatilhada contra os valores do mundo capitalista foi a grande sacada de George Romero. Deslocada deste universo e apontado para uma sociedade socialista, que se define pelo oposto, ela faria algum sentido? 

Brugués se confessa um fã de filmes de zumbis desde a adolescência (Adolescência vivida na Bolívia, que explica o acesso aos filmes). O extraordinário título “Juan of the Dead” é uma brincadeira com “Dawn of the Dead”. O diretor combina humor e terror, dois gêneros propícios para disparar críticas sociais, para refletir sobre o mundo em que vive. Apropria-se da fórmula e da estética zumbi para refletir sobre a sociedade cubana, a revolução e o regime castrista. Sugere que o ideal revolucionário do “novo homem” está em decomposição e que os heróis cultuados pela revolução estão mortos para o povo cubano. Che, neste caso, seria um herói/símbolo zumbi.



O filme começa com um homem sobre uma balsa improvisada flutuando num mar azul. Quem é este homem? Para onde ele vai? Seria um cubano fugindo para Miami? A primeira impressão é esta. A Câmera desce do alto e encontra o homem dormindo sobre a balsa. Outro homem aparece. São pescadores cubanos. Lázaro (Jorge Molina) pergunta para Juan (Alexis Díaz de Villegas) se ele já pensou em ir para Miami. Não, diz Juan, lá eu teria que trabalhar. Sou um sobrevivente, diz em tom jocoso, sobrevivi aos “tempos especiais”. A conversa termina e Juan fisga alguma coisa grande. Parece que a sorte está mudando. Puxa a linha e ao invés de um peixe, um homem. Aproxima para ver mais de perto e o homem, um morto-vivo, tenta mordê-lo. Lázaro dispara uma flecha contra a criatura, que veste o uniforme laranja dos presos políticos cubanos. Depois do susto, a dupla inseparável volta para Havana. Mas nada mais será como antes na cidade natal Jose Martí...



O personagem Juan foi impecavelmente construído por Alexis Díaz de Villegas, ator de teatro e professor de interpretação em Cuba. Juan é um sujeito que leva a vida na flauta. Não tem trabalho regular, vive de pequenos trambiques, explorando as fragilidades do regime e as necessidades da população. É um beberrão, mulherengo e pai ausente. É indiferente ao socialismo, à ideologia, mas não é um tolo. Sabe diferenciar um morto-vivo de um dissidente. A figura Juan é representativa de uma parcela da população que faz da carência e da escassez uma forma de ganhar a vida. De volta à cidade, ele seu amigo Lázaro descobrem que aquela “coisa” que fisgaram no anzol não é uma caso isolado. É uma praga que está se espelhando pela cidade. Pessoas conhecidas da vizinhança morrem e retornam agressivas, tentando morder parentes e amigos.

A TV oficial se apressa em acalmar a população oferecendo a velha desculpa de sempre: os transtornos anti-revolucionários estão sendo provocados por dissidentes políticos em conluio com os Estados Unidos. Mas Juan, macaco velho, sabe que não são dissidentes. Um dos mortos-vivos era conhecido seu. O sujeito era tudo, menos um dissidente. Mas repetidas vezes a TV oficial declara que se trata de uma conspiração anti-socialista dos Estados Unidos e da Cia. A desculpa eterna do governo cubano para explicar tudo o que escapa ao seu controle e justificar seus erros, virou piada. 


Juan, que vê em tudo uma oportunidade de ganhar dinheiro, descobre que pode lucrar com a endemia que assola a ilha. Improvisa com os amigos uma equipe para exterminar as criaturas, embora não saibam bem do que se trata. Não sabem se são vampiros, lobisomens ou outra abominação qualquer. Nem cogitam a possibilidade de serem zumbis. A moda zumbi que contagia o cinema na maioria dos países ocidentais, sugere o filme, é desconhecida em Cuba. Um pastor italiano alucinado que salva o grupo de ser comido por um bando de mortos-vivos é quem revela a Juan que o que eles estão enfrentando são zumbis. A equipe liderada pelo quixotesco Juan conta com o desopilante Lázaro, seu fiel escudeiro (seu Sancho Pança), Camila (Andrea Duro, atriz espanhola), filha de Juan que vivia na Espanha, mas retorna a Cuba por conta da crise econômica na Espanha, Vladi California (Andros Perugorría, filho de Jorge Perrugorría), filho de Lázaro e La China (Jazz Vila), um travesti bom de briga. A equipe anti-zumbi vai se especializando na arte de (re)matar zumbis e oferece os seus serviços de um modo nada convencional: Juan de los Muertos, matamos a sus seres queridos”



Juan é o anti-herói. Explora a desgraça alheia, mas, ao mesmo tempo, e sem querer, livra a população das medonhas criaturas. Torna-se herói por acidente. Queria salvar a própria pele e lucrar com a desgraça social, mas salva seus amigos, sua filha e desconhecidos. A situação se agrava. As hordas de zumbis crescem assustadoramente. Diante do avanço incontrolável da endemia, duas alternativas: deixar Cuba ou ficar e lutar. O grupo, por decisão de Juan, se divide. Uns vão para Miami, Juan fica.  Os que vão embora não são traidores da revolução. Quem fica, não é herói nem defensor do regime. Os que partem, partem em busca de dias melhores. Quem fica, como Juan, fica porque não consegue por razões afetivas deixar o país e porque quer lutar por mudanças.

São muitas as leituras que o filme possibilita. Quem são os zumbis? O regime? A letargia do povo? As duas coisas? A metáfora-zumbi sugere, por exemplo, que o regime, assim como os zumbis, está em decomposição, se arrastando como um morto-vivo. A revolução, como discurso anacrônico e sem sentido para os cubanos, é também um morto-vivo. “Juan de los Muertos” zomba dos slogans apologéticos da revolução espalhados pela cidade (“Habana Libre” – “Revolución o Muerte” – “Hasta da’la vitoria, siempre”), exibindo-as em situações hilárias ou apocalípticas. Numa nas sequências uma caminhão desgovernado bate e derruba um outdoor iluminado, com a legenda “Revolución o Muerte”. Pelo menos no cinema estão botando a propaganda oficial abaixo.


Os zumbis socialistas não diferem de seus semelhantes do mundo capitalista. Só pensam em comer carne de gente. Havana, como Londres e New York, foi tomada por milhares deles. As massas zumbificadas por cinco décadas foram às ruas e tomaram a cidade. Derrubaram o regime e devoraram suas entranhas. Multidões de mortos-vivos que outrora eram donas de casa, taxistas, pedreiros, professores, anônimos e indiferentes a qualquer tipo de apelo, transformaram Havana num banquete a céu aberto. É a revolução dos zumbis, dos silenciosos, dos que estavam calados. A invasão zumbi tomou Havana, derrubou o regime (como em 1959) e devora sem piedade todos os que cruzam o seu caminho (el paredón). 

Brugués abusa dos clichês do gênero e cria as mais bizarras armas para matar zumbis, inventa gestos acrobáticos para a equipe antizumbi enfrentar as criaturas e coloca os mortos-vivos em situações cômicas, que pulverizam o terror e chamam a atenção para as questões sociais e políticas.



O recado foi dado. “Juan de los Muertos” é para o regime castrista o que “Night of the Living Dead” foi para a excludente, racista e intolerante democracia norte-americana: uma patada cinematográfica. A hermenêutica-zumbi, como chave para ler o regime cubano, é uma grande sacada. (Gadamer que me perdoe, mas em terra de morto-vivo quem não tem uma boa clave interpretativa vira banquete de zumbis politicamente esfomeados). O socialismo cubano é um socialismo-zumbi. O regime se arrasta, cambaleante e roto, como um morto-vivo. Juan, a versão socialista do malandro convertido em exterminador de zumbis, é um subproduto do regime. Os heróis revolucionários, os slogans que chicoteiam os olhos e a consciência dos transeuntes e os onipresentes monumentos à revolução, tão vivos para a elite dirigente, estão mortos para a população. São símbolos de um passado morto que aprisiona o mundo dos vivos. 

Um gigantesco zumbi leninista arrasta-se no mar do Caribe. “Juan de los Muertos” é o prenúncio do apocalipse do socialismo? Ou os zumbis totalitários têm fome para mais algumas décadas?


Abaixo, um trecho de uma entrevista com Alejandro Brugués.

“Os cubanos têm basicamente três maneiras de lidar com problemas: transforma-lo em um negócio, se acostumar e continuar com suas vidas, ou joga-los no mar e correr. Juan me da à oportunidade de fazer as coisas realmente difíceis para os “cubanos zumbis” que enchem o país, mas também me apresenta um protagonista que pode fazer uma escolha diferente, e dizer: "Eu não vou tolerar isso, este é o meu país, eu o amo e vou ficar para defendê-lo"... depois de testar com o negócio e continuar com sua vida, de forma clara. A ideia com Juan dos Mortos é fazer uma comédia totalmente irreverente, com personagens muito cubanos, cheio de ação e aventura, um filme que pode assustar tanto ou atrair a sua atenção para que você nos veja como realmente somos. Preenchê-lo com cenas de ação espetaculares, mas ambos não tão fora do comum (centenas de pessoas pulando no mar em uma balsa e ônibus batendo contra embaixadas são coisas que eu já vi pessoalmente), mas com os momentos de dúvida e reflexão que temos todos os dias.”




quarta-feira, 10 de julho de 2013

A VERSÃO ZUMBI DE ROMEU E JULIETA NUM MUNDO PÓS-APOCALÍPTICO.



A VERSÃO ZUMBI DE ROMEU E JULIETA NUM MUNDO PÓS-APOCALÍPTICO.



Passei na locadora para ver as novidades e me deparei com o filme “Meu Namorado é um Zumbi” (Warm Bodies, 2013). Já tinha lido alguma coisa, mas nada que me chamasse a atenção. Ando com um pé atrás com esta súbita popularização dos zumbis. Parece epidemia. Virou modinha.  Estão em toda parte. Vi alguns nos protestos de rua aqui em Florianópolis. Desviei. Lugar de zumbi é no cinema. E falando em cinema, eles chegaram a Hollywood. Arrastando-se por décadas, mas chegaram. Os mortos-vivos saíram dos cantos obscuros da indústria cinematográfica para o centro das atenções. Saíram das produções B independentes com orçamentos modestos para os blockbusters milionários alavancados por grandes estrelas hollywoodianas (Guerra Mundial Z). Foram devorados pela indústria do cinema. O apocalipse zumbi está se convertendo na galinha dos ovos de ouro dos grandes estúdios. 

Olhei para o filme na estante da locadora e pensei: “é mais um desses filmezinhos que pegou carona na zumbimania e envolveu os mortos-vivos num romance adolescente açucarado”. A atendente me viu com o filme na mão e disse: “é muito bom, tem saído bastante”. Devolvi o filme à estante. Continuei a busca. Saí do campo de visão da atendente. Mas o filme continuou no meu campo de visão. A capa do DVD, vermelha, com letras pretas e brancas, e um zumbi entregando flores a uma garota, me fisgou. Peguei o DVD para dar mais uma olhada. John Malkovich no elenco. Aluguei. A atendente não resistiu: “alugo bastante este filme, mas, aí, não sei, achei meio estranho...”. Balancei a cabeça e pensei: “tem chance de eu gostar deste filme...”. Nada contra a moça, pelo contrário. Ela é uma querida, mas nossos gostos para filmes são um pouco diferentes. 

E não é que gostei. O filme de Jonathan Levine mistura comédia romântica e narrativa zumbi, num cenário pós-apocalíptico. E funciona. É tudo bem dosado. Retirou-se o açúcar da comédia romântica e os clichês desnecessários dos filmes de terror. Despretensiosamente, o filme renovou um gênero que, mesmo com o sucesso das grades produções, parecia desgastado. Num mundo devastado e transfigurado por uma catástrofe mundial, um grupo de sobreviventes luta pela vida, ilhado numa cidadela improvisada cercada e protegida por muros gigantescos. Do outro lado dos muros vivem os mortos-vivos, esfomeados e cambaleantes. O muro separa a cidade dos mortos da cidade dos vivos, a vida da extinção. Seguindo a tradição do gênero, os humanos estão em minoria e cercados por multidões de mortos-vivos. Os governos, as instituições, as empresas, nada sobreviveu à catástrofe. Um grupo de exterminadores de zumbis, comandados pelo general Grigio (Jonh Malkovich), organização que substituiu o governo da cidade, protege os sobreviventes e faz incursões na terra dos mortos em busca de remédios e alimentos. De quebra, eliminam as criaturas com golpes e tiros na cabeça. Julie (Teresa Palmer), filha do general Grigio, faz parte de um destes grupos de jovens voluntários que se arriscam na cidade dos mortos para garantir a sobrevivência dos vivos. Andam em grupos, como os zumbis, para se protegerem.  Numa perigosa missão o grupo de Julie se vê encurralado no interior de uma farmácia por um bando de mortos-vivos famintos. A garota é salva da morte por um zumbi e levada para um esconderijo seguro. Ao invés de devorá-la, o zumbi a protege. Esta é a novidade de “Meu Namorado é um Zumbi”: um zumbi introspectivo e consciente dos seus atos supera a incontrolável fome e vê na moça mais do que alguns quilos de carne fresca. Fugindo um pouco das regras do gênero, os zumbis não são cadáveres ambulantes cujo único objetivo é comer carne humana. São divididos em duas categorias: os esqueléticos e os cadáveres. Enquanto os esqueléticos já passaram definitivamente para outro lado e não guardam o mais remoto traço de humanidade, os cadáveres ainda estão numa fase de transição. Um lampejo de humanidade ainda resiste nos seus corpos pútridos. Quando se alimentam de cérebros humanos, sua alimentação favorita, são capazes de acionar e reviver parte das memórias, dos sentimentos e dos pensamentos  da pessoa devorada. Reviver as memórias, ainda que dos outros, é a forma que eles têm de se sentirem vivos, experimentarem sensações e (re)aquecerem, ainda que por breves instantes, o corpo gelado e enrijecido. É assim que um dos zumbis se conecta com Julie. Ao comer o cérebro do namorado da garota, o zumbi, que ainda não se desprendeu completamente da vida passada, aciona as memórias do rapaz, reconhece a garota em perigo e estabelece com ela um estranho vínculo.



E assim começa uma improvável história de amor, na fronteira entre a vida e a morte, entre o vigor do corpo e a putrefação, num mundo pós-apocalíptico. O jovem zumbi, que luta para lembrar o próprio nome, salva Julie e a leva para sua “casa”, no aeroporto, onde vivem os mortos-vivos. Esfrega sangue morto no rosto da garota, para disfarçar o cheiro, e a conduz pelo reino dos mortos em segurança. Os mortos- vivos vivem num aeroporto abandonado. É uma boa metáfora. Um aeroporto é um lugar de partidas e chegadas, de pessoas em trânsito, que estão vindo de algum lugar ou partindo para outro. É o lugar nenhum. Neste não-lugar, os mortos-vivos, que estão na transição para a morte definitiva, vagam de um canto para outro arrastando melancolicamente os restos de humanidade que ainda lhes restam. Estão à espera de alguma coisa? Exercitam mecanicamente hábitos rotineiros, reminiscências da outra vida, como varrer o chão e passar o detector de metais ao longo do corpo de quem adentra o aeroporto. Só saem dali quando sentem fome.

Julie é levada para este lugar triste e perigoso. Aos poucos vai percebendo que o seu zumbi herói tem vestígios de humanidade. O rapaz consegue, com algum esforço, emitir algumas palavras e diz, monossilabicamente, que ela está segura. Não recorda do nome. Lembra apenas que começa com a letra “R”. Julie rebatiza então o seu zumbi de “R”. O morto-vivo que se arrasta entre o aeroporto e os cantos escuros da cidade em busca de carne humana tem agora um nome. O nome implica numa certa identidade, que humaniza o zumbi e cria um laço entre os dois. Na presença de Julie, “R” vai retomando traços da humanidade e reaprendendo a falar. A garota, por outro lado, percebe que o garoto zumbi é, em certos aspectos, mais humano que aqueles que habitam a cidadela. Enquanto os zumbis lutavam pela humanidade perdida, os humanos se brutalizavam na luta pela sobrevivência, enfiados em uniformes militares e armados até os dentes. Sob condições adversas, ou vivendo fora do império das leis e do regime das instituições, ensinam os filmes sobre zumbis, os seres humanos deixam aflorar suas paixões profundas. Os zumbis, protagonistas pela primeira vez, estão comprimidos entre os assustadores esqueléticos e os humanos exterminadores. Os esqueléticos são assustadores, mas não lhes fazem mal. Representam sua inapelável condição. Os humanos são, ao mesmo tempo, seus algozes e sua única refeição.



Narrado em off  por “R”, o filme nos conduz pelo mundo subjetivo dos zumbis. O olhar de “R”, marcado pela nostalgia e por uma boa dose de humor, empresta leveza a narrativa. O mundo, visto por um zumbi, vai aos poucos se mostrando mais interessante que o mundo dos humanos, de onde Julie vem. Embora sempre cambaleante, devorador de gente e de aspecto cadavérico repulsivo (pelo menos à primeira vista) “R” preserva hábitos de sua vida humana e tem um olhar crítico sobre a sua morte cotidiana. É um zumbi reflexivo que se sente sozinho e perdido. Sente, pensa, mas não consegue se comunicar. Está preso a um corpo morto. Tem um amigo, seu melhor amigo. Encontram-se no bar do aeroporto. Quase se comunicam, emitem grunhidos e por vezes alguma palavra: “hungry”...”city”....se olham e partem para cidade em busca de comida. “R” não se orgulha de comer gente, não gosta de machucar as pessoas, mas a fome é poderosa. Nostálgico, lembra do tempo em que era vivo e todos podiam se comunicar e desfrutar da companhia uns dos outros. Mas a imagem que lhe vem à mente é a de pessoas presas aos seus celulares e computadores portáteis, ilhadas, isoladas na multidão, incapazes de se comunicar. Estão presas aos seus smartphones, vivos-mortos, como ele ao seu cadáver. Arrastando-se de um lado para o outro, pensa: “estamos todos mortos”, embora, aos seus olhos, todos pareçam normais. Imagina o que as pessoas eram antes de se tornaram apenas cadáveres: zeladores, personal trainers, filhos de empresários etc.. Mas agora eram cadáveres repulsivos e sem sentimentos. “R” olha para a vida, com os olhos de um morto, e se dá conta da sua beleza. O que teria provocado a catástrofe? Uma guerra química, um vírus transmitido pelo ar, um macaco radioativo? Não importa. Estão todos mortos mesmo.



“R” mora num avião, coleciona livros, objetos e vinis de rock clássico. Colecionar e se apegar as coisas parece torná-lo mais humano. Leva Julie para o seu “lar” e coloca o vinil do Guns and Roses para ela ouvir (Patience). A garota brinca e diz que ele é um purista. Ele tenta, com dificuldade, explicar que considera o som do vinil superior ao som digital (um som “mais vivo”). A sensibilidade musical e auditiva do zumbi, que escuta Bob Dylan, vai na contramão da zumbificação digital em massa em curso. Zumbis colecionam e escutam vinis enquanto humanos se contentam com iPods. É realmente o apocalipse! Quem é, afinal, o zumbi?

Nesta versão lúgubre de Romeu e Julieta (R and J), o pai de Julie é um exterminador de zumbis. Não permitirá que a filha ande na companhia de um morto-vivo. Para ele os zumbis são indiferentes, insensíveis e não sentem remorso (Julie rebate: “como alguém que eu conheço, não é papai?”). O amor sobreviverá ao apocalipse-zumbi e ao pai exterminador? É possível o amor entre seres separados pela morte e apartados por muros? A história de amor que atravessa os tempos ganhou uma releitura escatológica, nos vários sentidos que a palavra comporta.

“Meu namorado é um Zumbí” é uma história de amor sem as afetações e as pieguices das comédias românticas habituais. É um filme honesto, que mistura em doses suportáveis terror, comédia e amor. Não é um filme de amor arrebatador, tampouco um filme de terror de meter medo. Jonathan Levine explora e extrai o que tem de melhor nos dois universos e ainda satiriza os clichês dos dois gêneros cinematográficos. A narrativa em primeira pessoa, além de permitir mostrar o mundo pelos olhos de um zumbi (inédito até então, e deliciosamente herético), facilita a sátira. “R” é um zumbi que zomba da própria condição, da incapacidade de se comunicar, da aparência desagradável e da lentidão com que se movimentam. Julie, uma heroína nada frágil, rejeita o namorado autoritário e protetor, que se parece com o pai. Encontrou afeto, cuidado e boa companhia ao lado de um zumbi melancólico. Não se incomodem com os exageros e os excessos. É um exercício metalinguístico. É o modo que o diretor encontrou de dizer que tudo não passa de cinema. 



A narrativa-zumbi e o cenário de fim de mundo, embalada por um trila sonora de peso, dão um toque diferenciado a esta história que revisita o tema da possibilidade do amor entre seres tão distintos, que vivem em ambientes tão diferentes. O zumbi, seguindo a melhor tradição, é o pretexto para olhar criticamente para as relações humanas e os valores socialmente praticados.

A trilha sonora merece destaque. Se o filme é voltado para o público adolescente, como se diz, seria de se esperar uma trilha baseada nos ídolos que embalam a vida da garotada. Nada disso. O que se ouve é Bob Dylan, Guns and Roses, Bruce Springsteen, Scorpions, Roy Orbison. A sequência embalada por Pretty Woman, na voz de Roy Orbison, é uma citação de uma famosa comédia romântica açucarada. Julie e a amiga decidem maquiar “R” para que ele se passe por humano para poder andar pelas ruas na companhia delas, e o fazem ao som de Pretty Woman. “R” está morto, mas nem tanto. Faz com a cabeça que desaprova a ideia. 

Depois de “Warm Bodies” o que mais podemos esperar: zumbis com consciência de classe? Zumbis nazistas? (opa, lembrei do filme norueguês Dead Snow, de 2009). Zumbis vegetarianos? Zumbis socialistas? (humm, este é o tema do próximo post). 

“Meu Namorado é um Zumbi” reserva boas surpresas aos que acompanham a trajetória da temática zumbi no cinema. Vou resistir e não vou contar o final. 

Ontem fui devolver o filme. 

- A atendente: “gostou do filme?”
- Eu: “gostei”.
- Ela: “não achou meio estranho?”
- Eu: “achei”.
- Ela: “ah... tá”.
- Eu: “aham”.
O vocabulário do zumbi “R” era mais extenso e expressivo que o nosso “diálogo” monossilábico.
Nenhum de nós estava interessado em alongar a conversa. Ela perguntou por perguntar. Eu respondi por responder. Ela voltou para o computador e eu voltei para o aeroporto (ops, para a minha casa).