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quarta-feira, 31 de outubro de 2018

BRILHANTE USTRA, O HERÓI DA REPÚBLICA BOLSONARIANA


BRILHANTE USTRA, O HERÓI DA REPÚBLICA BOLSONARIANA


Definitivamente, alguns heróis não combinam com os regimes políticos que os identificam como símbolos da unidade e dos valores nacionais. Um dos casos mais evidentes é o da república bolivariana, que tem como herói Simon Bolívar, um liberal do século XIX. Nicolás Maduro seria um daqueles tiranetes latino-americanos que Bolívar reprovaria veementemente.

No caso do Brasil, Tiradentes, herói da república desde a proclamação em 1889, destoava dos rumos que o regime tomou no começo do século XX (Com um pouco de generosidade, podemos considerar que Tiradentes tinha mais a ver com os ideais republicanos difundidos antes da proclamação). De acordo com a construção idealizada do movimento republicano, Tiradentes morreu pelo ideal de liberdade. Na república dos bacharéis e dos coronéis liberdade era artigo de luxo. A única liberdade que a república oligárquica e agroexportadora admitia era a liberdade comercial e econômica, reivindicada das fronteiras do país para fora. No plano interno as liberdades eram restritas e os direitos inexistentes. O liberalismo de conveniência adotado no Brasil, no passado e no presente (à exceção de Rui Barbosa), nunca primou pela garantia dos direitos individuais e civis.

De herói republicano Tiradentes foi transformado, no século XX, em herói nacional. Na ditadura civil-militar das décadas de 1960, 70 e 80, foi (re)entronizado como Patrono da Nação Brasileira por meio da Lei nº 4.897, de 9 de dezembro de 1965, foi um herói ainda mais deslocado. Não afinava com os valores e com a violência praticados pelo regime ditatorial. Parecia estar ali meio que a contragosto, arbitrariamente perfilado ao lado dos generais. Perseguição política, torturas, supressão das liberdades e execuções, arbitrariedades e violências contra os quais Tiradentes se rebelou e depois foi vítima, estavam na ordem dia. A figura do herói, guardião anacrônico da república, dava chancela, no plano simbólico, às ações do regime militar. Sob seu olhar sereno, à semelhança de Cristo, praticavam-se as mais covardes atrocidades.



O mal-estar e o desencontro entre o herói e os valores cultivados pelo grupo que está à frente da república, com a eleição de Bolsonaro, estão de volta. Na república bolsonariana, só com muito esforço e imaginação, como acontece na Venezuela, haverá espaço para Tiradentes no panteão cívico nacional (A menos que se descubra alguma tendência proto-comunista na corte portuguesa. Sei lá. No WhatsApp tudo é possível! De Dona Maria I, “a Louca”, para “a Louca Comunista”, é um pulo. A imaginação anticomunista da turma do Zap é grande e o conhecimento histórico é nulo).

Imaginem se os bolsonários descobrem que Tiradentes participou de um movimento político contra a coroa portuguesa pela emancipação das Minas Gerais? O herói seria imediatamente julgado pelo peculiar senso histórico e pelo anacronismo galopante dos admiradores do Messias. A “inconfidência mineira” seria chamada de ativismo e Tiradentes de comunista e terrorista. “Teve o que mereceu”, diriam ao mais exaltados.

A situação poderia ficar ainda mais constrangedora para o herói se os bolsonários soubessem que ele, aos 40 anos, se apaixonou e teve um caso com uma mulher de 15 anos. Sem nenhum tipo de relativismo, que ajudaria a entender que em outros tempos os valores eram diferentes, o herói seria chamado de pedófilo pelos cidadãos de bem e pelos defensores da família e da inocência das crianças. O WhatsApp entraria em colapso e Tiradentes seria condenado mais uma vez. De cristo cívico, se transformaria num demônio da luxúria e corruptor de menores (de 17 anos).

Tiradentes também foi um símbolo de luta para a esquerda revolucionária nas décadas de 1960 e 1970. O herói se prestou à todas as causas. A distância temporal e a inexistência de retratos facilitaram as distintas e ambivalentes apropriações do seu legado (idealizado). O regime militar e a esquerda revolucionária reivindicaram simultaneamente sua memória.

O Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), que atuou entre 1960 e 61, junto às Ligas Camponesas, e entre 1969 e 71, na luta armada contra a ditadura, era uma organização inspirada na revolução cubana que defendia a revolução socialista no Brasil com base nas lutas camponesas. O que os bolsonários fariam se soubessem disso? Se já estão mandando até o Joaquim Barbosa para Cuba por ter declarado voto anti-bolsonaro, imaginem o que fariam com um herói que inspirou “guerrilheiros terroristas”! Tiradentes teria a memória esquartejada, perderia a cidadania, seria expatriado e mandado adivinhem para onde!



Para evitar constrangimentos e um desgaste irreparável de sua imagem, Tiradentes deveria ser afastado temporariamente do posto que ocupa no panteão cívico nacional e ceder o lugar para um personagem mais afinado com os ideais anticomunistas e antiativistas da república da bala que está para ser implantada (Que já tem inclusive um gesto que a caracteriza: a mão imitando uma arma). O nome que me parece mais adequado é o do coronel Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi de São Paulo entre 1970 e 1971, que já é informalmente o herói e a inspiração da família Bolsonaro. É só oficializar.

Ustra prestou importantes serviços à pátria, dizem os apoiadores da causa, enfrentando heroicamente e torturando, com nobres propósitos, os perigosos terroristas comunistas. Só um ponto precisa ser melhor resolvido. Ustra não poupava nem as crianças (das quais Bolsonaro quer preservar a inocência). Meninos e meninas, alguns com 4 e 5 anos de idade, foram submetidos, pelas mãos do próprios Ustra, a situações humilhantes e cruéis. Será que o herói da família Bolsonaro pretendia cortar o mal pela raiz?

Isso vai ter que ser bem explicado. Não pega bem para um governo que pretende salvaguardar a inocência das crianças cultuar a figura de um sujeito que violou barbaramente a infância.
Mas quem sabe agora, com o acordo conservador firmado com a arquidiocese do Rio de Janeiro em defesa da família e das crianças, “eles” não consigam emprestar alguma virtude cristã ao coronel, como os republicanos fizeram com Tiradentes, e encontrar uma justificativa para os atos contra a infância. Antes, porém, a arquidiocese também vai ter que explicar melhor os escândalos de pedofilia que atormentam a igreja. Senão a defesa da inocência das crianças não vai colar.

“Ah, mas não existem provas de que o coronel torturou crianças, e só foi torturado e morreu quem mereceu, quem era comunista”, dizem os adorares do Messias. Os bolsonários são assim (muito parecidos com os petistas), tudo o que envolve negativamente o Capitão deles é falso, é invenção da esquerda. Mas, no caso do Ustra, existem provas sim. E provas robustas. É só pesquisar, checar as informações e tirar as conclusões. Edson e Janaina Teles, que na época tinham 5 e 4 anos, eram filhos de Maria Amélia e César Teles. Ustra levou as crianças pela mão até a sala onde a mãe se encontrava nua, suja de sangue e urinada. No mesmo ambiente estava César, se recuperando do coma depois das sessões de tortura no pau-de-arara.

Gilberto Natalini, hoje vereador em São Paulo pelo PV, tinha 19 anos na época e militava pela volta da democracia. Não participava de nenhum grupo político, mas foi preso e barbaramente torturado pelo próprio Ustra (E não adianta dizer que Natalini é petista, terrorista, ativista ou um destes istas qualquer. Recentemente ele declarou que vota nulo, que não quer escolher entre a apologista da tortura e a corrupção).

Façam uso inteligente da internet. Investiguem e verifiquem a veracidade das informações. Pesquisem sobre o caso do Natalini e da família Teles. Ustra torturou seres humanos, que tinham visões políticas diferentes das dele.  Comunista é o rótulo conveniente que vocês usaram e usam, ontem e hoje, para desumanizar e desqualificar quem pensa diferente e desculpar as atrocidades cometidas durante a ditadura. Se vocês consideram Ustra um herói, o assumam com tudo o que ele carrega no currículo. No DOI-Codi ele era conhecido como “o senhor da vida e da morte”, de acordo com os depoimentos do ex-sargento Marival Chaves, que trabalhou nos órgãos de repressão e de informação do exército. Chaves se aposentou em 1985 e se tornou um dos maiores delatores das torturas e do apoio financeiro que a repressão recebia de empresas e empresários simpatizantes do regime.

Resolvendo estes probleminhas, a escolha de Ustra como herói traz algumas conivências aos bolsonários. “A Verdade Sufocada”, livro escrito pelo coronel em 2006, para apresentar aos cidadãos de bem “a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”, seria o manual de história do NOVO MEC, espécie de evangelho ultraconservador que poderia ser adotado nas escolas para libertar as crianças da doutrinação marxista. Afinal, o livro do Ustra é ciência pura, sem ideologia. É a verdade história na sua versão definitiva, diriam os ustralinos. Uma reedição caprichada do livro, com prefácios do MBL e de Alexandre Frota, o deputado da família, com ampla tiragem patrocinada por aquela empresa que tem como símbolo a estátua da LIBERDADE, dariam um novo vulto à obra. Aliás, uma capa nova, com o coronel Ustra contemplando a imponente estátua, também cairia muito bem.

Brilhante Ustra foi condenado em 2008, pelo juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, pelos crimes de sequestro e tortura. Em 2012 foi condenado em segunda instância. Mas isso não chega a ser um problema. Nada que uma enxurrada de fake News no WhatsApp, impulsionada pelas Empresas amigas, insinuando que o juiz apresentava à época tendências esquerdistas, não resolva o problema e não ofereça uma nova verdade, mais adequada aos novos tempos. Um milhão de vezes compartilhado, o boato vira fato, o fato vira verdade e a verdade, finalmente revelada, absolve o coronel e o habilita a frequentar o panteão nacional. A produção de mentiras verdadeiras tem sido um recurso Brilhante na república bolsonariana da pós-verdade.

O feriado nacional de 21 de abril, claro, precisaria ser repensado. Não poderia ser simplesmente abolido. Afinal, o cidadão de bem precisa descansar e ter tempo para se informar no WhatsApp. 28 de julho, data do nascimento do coronel, seria um bom dia?







domingo, 28 de outubro de 2018

USTRA IS THE NEW BLACK


USTRA IS THE NEW BLACK



É impressionante como em determinadas conjunções políticas perde-se completamente o senso de decência, de humanidade e ultrapassa-se perigosamente os limites do que é moralmente aceitável.  Em tempos assim, o grotesco sai dos cantos escuros e ganha o centro do palco e monstros são cultuados como heróis nacionais.

Você usaria uma camiseta com o rosto de um criminoso julgado e condenado? Existem limites éticos para a moda, para o vestir-se?

A moda não é apenas funcional e não se limita a proteger e vestir o corpo. É uma linguagem, um constructo social e cultural que projeta valores e afirma identidades individuais e/ou coletivas. É uma forma de estarmos e nos expressarmos no mundo. Nossas roupas dizem muito sobre quem nós somos.
O vermelho saiu de moda na política nacional. Desbotou, perdeu o brilho e foi engolido pela onda conservadora que varre as ruas e domina as correntes de WhatsApp. Estão em alta agora as tonalidades marciais e bélicas de verde e amarelo, que também marcaram as tendências em 1964 e em 1989.

A moda da próxima estação vai aos poucos se delineando. A família Bolsonaro é quem está ditando as tendências. O estilo é mais primitivo, autoritário, truculento, deselegante mesmo. Promete banir das ruas as camisetas com estampas do Che Guevara. Na guerra das camisetas, travada na political catwalk, autoritarismo se combate com mais autoritarismo (“Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, disse o Messias da costura “sem ideologia”).

Eduardo Bolsonaro, o deputado mais votado da história do Brasil, exibe orgulhoso a camiseta em homenagem ao coronel Brilhante Ustra. Vestindo um modelo básico,  estival e intimidador, o modelo apresenta uma tendência retrô, que resgata um passado sinistro e obscuro que, na versão prêt-à-porter bolsonariana, é anunciado como NOVO e RENOVADOR.

A moda promete revolucionar o guarda-roupa das “pessoas de bem”, das famílias e salvaguardar a inocência das crianças. Nada da porcaria afeminada, imposta pela “ideologia de gênero”, lançada por costureiros gays europeus (O gênero também saiu de moda!). A nova tendência da moda bolsonariana busca inspiração no DOI-Codi e no DOPS, exemplos de masculinidade hétero patriótica para fazer, de uma vez por todas, a moda virar à direita, nem que seja no pau-de-arara, na linha dura de Ustra, o estilista da tortura (Ustra foi condenado em 2008 pelo crime de tortura e teve a sentença confirmada em 2012. Bolsonaro o reabilitou na votação do impeachment em 2016. De lá para cá, o coronel foi transformado num ícone da moda política anti-esquerdista). 

Será que a moda vai pegar? Ou vai ser como aquela NOVA tendência lançada em 1989, que não chegou a terminar a estação? A maioria dos brasileiros vestiu a camiseta do “caçador de marajás”, os políticos pegavam carona na onda CoLLorida e todos entoavam em coro: eLLe é o  NOVO, é o NOVO. Menos de dois anos depois o novo havia se tornado muito velho. O preto ganhou as ruas e o CoLLorido saiu de moda. Foi nessa época que o jovem Messias se elegeu deputado e começou a costurar uma dinastia, de corte e estilo inconfundíveis.

Enfim, as semelhanças chamam a atenção, embora o estilo atual seja mais agressivo e militaresco.

Seja como for, passageira ou não, a ditadura está na moda e a tortura (visual) está de volta.



A ideia Brilhante de estampar o rosto do torturador nas roupas foi da marca Camisetas Opressoras, que as apresenta no seu site como “camisetas divertidas e personalizadas de direita”, moda “inspirada no Grande coronel Ustra”. A loja está lucrando com o terror, com a covardia e com o que de pior o nosso país já produziu (Tenho certeza que a direita democrática se sente horrorizada com o mal gosto das estampas opressoras).

Para os estilistas da Opressão tudo não passa de uma brincadeira divertida e lucrativa, que afirma uma identidade política. Para mim não. Minha consultora sobre a estética fascista e a moda totalitária, Hannah Arendt, diria que se trata, mais uma vez, da “banalização do mal”. Estamos de tal modo anestesiados pela violência que alguns grupos passaram a vesti-la. E vesti-la significa estimulá-la e praticá-la simbolicamente. O que poderia ser visto, num primeiro momento, como um protesto bem-humorado da turma que se identifica como “de direita”, é, na verdade, a mais completa trivialização da violência. A “banalidade do mal” é expressão do vazio de pensamento e da perda de sensibilidade. O terror virou moda!

Vamos ver até quando os valentões fashion e os opressores descolados vão vestir a camiseta do herói deles.

O catálogo da “moda opressora” é sortido e atende à todas as estações. Abaixo, os modelos de camisetas e moletons nas mais variadas cores e estilos. Vai do básico do dia-a-dia ao modelo patriótico-militar, recomendado para eventos cívicos e desfiles do sete de setembro, que ao que tudo indica voltarão a ser obrigatórios nas escolas (Escolas que, dependendo da vontade do Messias, adotarão um estilo e uma disciplina militar). Tem Ustra para todos os gostos.










Aprendam a diferença entre discordância de posições políticas e fanatismo político e a diferença entre democracia e apologia da tortura e nós voltamos a conversar.

Diga-me o que vestes que te direis quem és.