LENDA,
MEMÓRIA E HISTÓRIA: A LENDA DA MBOI GUAÇU
E OS ”CAUSOS” QUE MINHA AVÓ GUARANI CONTAVA.
Dedicado à dona Adiles e à dona Sebastiana, duas mestiças guarani contadoras de “causos”.
Minha avó paterna
(Adiles Andrades de Oliveira), uma mestiça guarani, adorava contar “causos”.
Sentada ao lado do fogão à lenha, com uma cuia de chimarrão na mão, voz grave e
olhar afetuoso, contou-me histórias que ouvira de sua mãe, uma índia guarani.
Lembro vagamente dos “causos”. As imagens e as falas são lacunares, como as
lembranças de um sonho. Mas, à medida que me ponho a rememorar, uma imagem puxa
a outra, e situações, pessoas e coisas que foram importantes para mim, mas que
estavam esquecidas, reaparecem e se tornam presentes novamente como se nunca as
tivesse esquecido. Um dos “causos”, até onde a memória alcança, parecia ser uma
variação descontextualizada da lenda da cobra grande de São Miguel, adaptada às
necessidades pedagógicas de uma avó às voltas com netos endiabrados. “A cobra,
grande que nem um trem, dizia ela, dorme enroscada no sino da igreja. Ela só
acorda com o barulho das crianças arteiras. E quando acorda, ela come as
crianças que não respeitam os mais velhos.” Do quintal da casa avistávamos o
campanário da linda igreja de Santa Catarina, do outro lado da ferrovia. Não havia dúvidas de onde a cobra morava. A
analogia com o trem não era sem motivos. O trem passava em frente à casa dos
meus avós e minha avó tinha verdadeiro fascínio pela velha Maria Fumaça. Sempre
que podia subia no trem, alegre feito criança, e ia para Porto Alegre visitar
as filhas, os filhos e os netos. Nós corríamos para uma parada de trem
improvisada, no bairro onde morávamos, e abanávamos para ela, que devolvia os
acenos com a vasta cabeleira grisalha ao vento. A cobra grande de ferro emitia
o potente apito e seguia em frente, serpenteando os morros, atravessando rios e
pontes. Vó Adiles, abastecida de chimarrão e um vasto repertório de “causos”,
era aguardada com entusiasmo pelos netos que moravam na capital. Ela sabia como
poucos entreter as crianças e mantê-las ao seu redor.
Tive a sorte de ter
tido avós contadores de histórias. Cresci ouvindo as narrativas deles, e depois
dos meus pais e tios, sobre as “coisas do tempo antigo” (como eles diziam).
Eram histórias de pescarias, de assombrações, dos bailes antigos, dos namoros, das
brincadeiras, das coisas que os seus avós contavam. Às vezes eram histórias despretensiosas,
para entreter apenas. Mas quase sempre elas encerravam lições de vida e aprendizados
éticos (embora eles nunca tenham empregado esta palavra). Vó Adiles falava
devagar, com longas e significativas pausas. Olhava para baixo, balançava a
cabeça em silêncio, remoendo o que havia dito, e voltava à narrativa. A criança
que fui, a maneira como construí meu mundo, e o adulto que me tornei, foram
marcados por estas experiências.
Mais ou menos quinze
anos depois da morte da minha avó, experimentei uma estranha sensação de familiaridade,
um déjà vu, lendo algumas lendas recolhidas da tradição popular por Barbosa
Lessa (O boi das aspas de ouro. Contos gauchescos. 1956). Os temas, o
vocabulário e a sintaxe coloquiais, e as expressões usadas em alguns “causos”
(pruxirão, feemeiro, bichos malevas, chinas, moita), evocavam as narrativas que
iluminaram minha infância. O trem já não apitava com a mesma regularidade de
antes, a Maria Fumaça fora substituída pela locomotiva a diesel, o velho campanário
fora desmistificado, desde que passei a jogar futebol de salão na quadra da
igreja, mas o gosto pelas narrativas populares já estava inoculado em mim.
As lendas de um povo,
guardadas na memória e transmitidas pela tradição oral, traduzem, em linguagem
simbólica, valores, crenças e momentos significativos do passado. Por meio
delas, penetramos no modo particular de significação do mundo e de apreensão da
realidade de um grupo. Os guarani exprimem seu mundo por meio de um rico repertório
de mitos e lendas. Uma delas é a mboi
guaçu (cobra grande), uma antiga lenda missioneira, surgida provavelmente
durante o período de dispersão das missões jesuíticas, em algum momento entre a
segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX, na região dos sete povos, no
RS, que se conservou na tradição oral guarani, especialmente entre as mulheres.
Durante dois séculos foi repassada de mãe para filha (até chegar à minha avó). A
cobra grande é uma figura mítica da mitologia guarani. A lenda da mboi guaçu é, possivelmente, uma
variação, ou uma adaptação, do mito ancestral. Barbosa Lessa, em 1951, ouviu a
lenda de uma mestiça guarani, de 97 anos, chamada Sebastiana Gonçalves de
Oliveira, que vivia num rancho na região missioneira do Rio Grande do Sul, nas
proximidades das ruinas de São Miguel. Sebastiana ouvira o “causo” de sua mãe
que, por sua vez, ouvira de sua mãe, avó de Sebastiana, “que era do tempo dos
padres” (ou seja, do tempo em que os jesuítas administravam as missões).
Muitos, disse a velha guarani, vêm por aqui, olham a igreja, sobem na torre,
descem na escada, “mas não tem olhos para enxergar aquela massa preta, hoje
dura que nem pedra, que escorreu do alto da escada”. A massa preta eram restos
da mboi-guaçu que se instalou na
torre da igreja de São Miguel e, “de tanto comer carne tenra, estourou”. Nas
três ou quatro vezes que estive nas ruínas da igreja fiquei horas olhando para
a torre e para a escada, procurando vestígios da lendária cobra. Os “causos” de
minha avó se misturavam com a narrativa de Sebastiana e a torre da igreja em
ruínas parecia-me atavicamente familiar.
Barbosa Lessa cedeu a
palavra à Sebastiana, que inicia sua narrativa nos reportando aos tempos de
prosperidade e pujança nos Sete Povos das Missões:
“Pois quando eu era
pequena, minha mãe sempre me falava das coisas lindas do tempo em que São
Miguel era cidade grande, com muita gente vivendo por aqui. Descrevia as
procissões, as danças, os trabalhos de pruxirão, a colheita de erva mate com
festas muito bonitas. Coisas que ela nunca viu, mas que ouviu dizer pela mãe
dela, que era do tempo dos padres. Minha mãe conta que, quando os padres foram
corridos, tudo isso se parou mui triste e abandonado. Quase todos os homens
tinham sido reculutados para as guerras, de quando em quando apareciam para
reculutar também os guris já mais grandotes e nas casas junto da igreja só
tinham ficado as mulheres, com as crianças pequenas e um que outro velho já
quase sem serventia.”
Aqueles tempos foram “mui
brabos, continua Sebastiana, porque era só feemeiro que vivia em São Miguel.
Caçar mulher não sabe. Laçar gado, também não. Cuidar da lavoura até a
colheita, sim. Mas derrubar mato e escorraçar os tigres e outros bichos
malevas, também não. Sem derrubar mato, plantação não tem. E em vez do mato ser
vencido, foi ele que foi vencendo: invadiu cidade adentro, entrou pelos restos
de rua, subiu pelas paredes dos ranchos, foi botando tudo abaixo”. Buscando
resguardo, as índias levaram seus pertences e filhos para o interior da igreja,
na certeza de que o mato não chagaria até lá. E o mato foi chegando, chegando,
e ali parou. “Durante o dia, as mulheres levavam seus filhos e os animais para
os restos de lavoura, e ali ficavam trabalhando, ali comiam, ali descansavam o
corpo quando a canseira era muita”. Antes da noite chegar, voltavam para dentro
da igreja, acendendo um fogo à porta para manter os tigres à distância.
Mas eis que um dia a mboi-guaçu, “que sempre tinha vivido no
mato”, avançou junto com este e chegou até a igreja de São Miguel. “E quando o
mato, se agarrando em cipós, trepou parede acima, ela trepou também. E quando o
mato, chegando ao alto, vingou numa das torres, a cobra ali se aninhou, moita e
paciente”. Até que um dia a cobra sentiu fome. Tanta fome que se enroscava nas
cordas do sino e se pôs a badalar, badalar. “Badalava, badalava, e o grito dos
sinos entrava pelo ouvido dos viventes, para bater lá dentro, lá no fundo,
chicoteando os nervos, como se fosse uma tropilha inteira pisoteando o
pensamento, machucando o coração”. Até que um dia, uma das “chinas” decifrou
mistério. Era a cobra que sentia fome. Enlouquecida de tanto sofrimento, a
“china” pegou sem filho pelos braços e o levou para a cobra. “Assim foi por
muito tempo (...) para aquietar a maldita”. Mas um dia, de tanto comer carne, a
cobra foi inchando, inchando, e estourou. “Esta é a história que contava a
minha avó guarani”, termina Sebastiana.
A lenda é uma
representação alegórica da decadência dos Sete Povos das Missões que se
verificou após a saída dos jesuítas e a diáspora masculina para as guerras e o
trabalho nas estâncias. Na narrativa de Sebastiana podemos perceber a
deterioração das reduções, outrora pujantes, e a difícil situação das mulheres
sobre as quais, na ausência dos homens, recaiu a responsabilidade de todo o
trabalho. O mato se aproximando e tomando conta da aldeia é a metáfora da
dispersão e abandono dos povos. A lenda da mboi-guaçu,
conservada e transmitida pelas e entre as mulheres, e ainda muito viva na
memória de Sebastiana, é o modo muito
particular dos guarani se referir ao passado e contar o que se sucedeu depois
da partida dos padres.
Barbosa Lessa, na
apresentação da lenda, interpretou o sacrifício que as mães faziam ao entregar
os filhos para saciar a fome da cobra à dor de entregar os filhos ao
recrutamento militar: “Se, dentre os leitores, encontrar-se alguém propenso a
traçar simbolismos, talvez possa perceber, na história da Mboi-Guaçu, certa
correlação com a compreensível angústia que as pobres viúvas guaranis – vítimas
da guerra, e desamparadas em sua desdita – por certo sentiam ao entregar seus
filhos às forças de recrutamento militar (BARBOSA LESSA, 1958).
Da
Tradição Oral ao Folclore: o embalsamamento da lenda.
Ao dar forma escrita à
lenda contada por Sebastiana, Barbosa Lessa, ao mesmo tempo que ajudou a
preservá-la do esquecimento, contribuiu para petrificá-la. Explico-me. As
interações da escrita com a oralidade são ambivalentes. A escrita é uma espécie
de cápsula do tempo que captura as narrativas orais e lhes empresta forma
definitiva (admitindo que os significados possam mudar) e longevidade temporal.
Convertida em texto escrito, as lendas passam a circular em diferentes
contextos sociais e narrativos. Foi o que aconteceu com a lenda da mboi-guaçu. Depois de capturada pela
escrita, projetou-se para fora do mundo oral guarani e alcançou um vasto
público de leitores. Porém, ao recolhê-la da tradição oral e incorporá-la ao
repertório de lendas gauchescas, ou ao folclore gaúcho, Barbosa Lessa, mesmo
sem ter a intenção, suprimiu-lhe a vitalidade e destituiu-a de seus
significados culturais mais profundos. A lenda, contada no círculo familiar
guarani, tinha sentidos que o leitor de Barbosa Lessa desconhece. No entanto,
lida como folclore tradicional do Rio Grande Sul, ela passa a ter novos
significados para os leitores que os guarani desconheciam. O folclore é, em
certo sentido, o embalsamamento das lendas e dos mitos. Preserva-se o conteúdo,
esvaziam-se os sentidos originais e criam-se novos significados. Para mim, por exemplo, historiador e leitor de
Barbosa Lessa, a lenda da cobra grande é uma alegoria da decadência das
reduções guaraníticas, surgida logo após expulsão dos jesuítas dos territórios
portugueses. Mas eu só pude chegar a esta interpretação porque a lenda chegou até
mim, na forma escrita, por meio de um livro.
A incorporação da lenda
guarani ao folclore rio-grandense merece um pouco mais de atenção. O livro de
Barbosa Lessa, do qual a lenda faz parte, foi publicado na década de 1950 em
meio às acaloradas disputas historiográficas no Rio Grande do Sul, no âmbito do
Instituto Histórico e Geográfico, em torno da admissão ou não da história das
missões jesuíticas ao patrimônio histórico e cultural rio-grandense. Parcela
significativa da intelectualidade da época era contrária à ideia de conceber as
missões guaraníticas, controladas pelos jesuítas, em território espanhol, como
parte da história do riograndense. No início da década de 1990, Ieda Gutfreind publicou
um importante estudo historiográfico situando os historiadores em dois grupos:
o platino e o luso. O grupo platino sustentava a decisiva participação dos
jesuítas e das missões guaraníticas na formação do Rio Grande. O grupo luso,
por sua vez, desconsiderando as influências de origem jesuítico-espanholas,
entendia que a formação se devia exclusivamente aos lusitanos (bandeirantes,
açorianos e portugueses). Barbosa Lessa compartilhava da visão histórica do
grupo platino. A publicação da mboi-guaçu
no livro “O Boi de Aspas de Ouro” é uma tomada de posição. Ao incorporar a
lenda guarani à memória oficial rio-grandense afirmava-se a presença e a
importância da “matriz indígena” da formação do estado.
A lenda, narrada
em primeira pessoa por uma mulher indígena, também exprime os embates da época.
Próximo do grupo do historiador Mansueto Bernardi, que procurava ampliar a
noção de sujeito histórico na formação da cultura e da identidade do RS,
Barbosa Lessa registrava, por meio de Sebastiana, a voz do “povo”, o sujeito
histórico esquecido pelos historiadores que cantavam em prosa e verso os feitos
de um passado elitista e militarizado. O projeto de Lessa era trazer para o
centro da história riograndense as “gentes humildes”, o povo simples, guardião
do passado vivido e portador dos substratos psíquicos guardados na tradição
oral capazes de revelar os sentidos profundos da história regional. Sebastiana
era a voz do povo que a historiografia elitista havia silenciado. Representava
os excluídos da história riograndense, os guaxos da historiografia (Para Lessa
os guaxos eram os tipos comuns do que chamaríamos hoje de uma “história vista
de baixo”: peões, mulheres das estâncias, chinocas, mestiços e descendentes de
escravos). Joana Figueiredo observou bem que o “guaxo não é só a figura
metafórica do filhote sem mãe, que não é amamentado e está só no mundo, mas
traz uma carga emocional destinada a todos os gaúchos órfãos em sua perspectiva
da vida” (Tese de Doutorado).
Outro ponto que merece ser
observado é o destaque, inovador para época, que Barbosa Lessa dá à mulher na
formação do caráter regional. A mboi-guaçu é uma história de resistência
indígena feminina. Ao lado ou na ausência dos homens, como acontecia também nas
estâncias, eram elas que comandavam a luta cotidiana pela sobrevivência.
“Pisss...
a Cobra tá ouvindo”: a narrativa pedagógica da infância.
Minha avó não era
historiadora, nunca leu um livro, mas era uma boa contadora de “causos”, como o
Negro Donato, domador de cavalos que contava “causos” à beira da fogueira para
o menino Barbosa Lessa. Até hoje, sempre que vou a Santa Maria, observo
demoradamente o campanário da velha igreja. Da casa do meu irmão, localizada a
200 metros de onde morava minha avó, o campanário se ergue numa elevação do
terreno, ao pé do morro do Monumento, por sobre casas e prédios, testemunho imóvel
e silencioso, como as ruínas da igreja de São Miguel, da marcha implacável do
tempo e das mudanças à sua volta. Não reconheço mais o bairro, as pessoas, as
ruas, mas a igreja esta lá, inalterada, exatamente a mesma de 40 anos atrás. Lá
do alto, noutros tempos, a cobra imaginária e pedagógica espiava minhas
molecagens. A torre da igreja era o meu panóptico. Não importava onde me
escondesse, a cobra estava sempre me vendo. O toque do sino era um aviso, um
sonoro puxão de orelhas para os meus deslizes. Vó Adiles dizia, com o dedo
indicador encostado nos lábios: “pissss... a cobra tá ouvindo”.