“EXECUÇÃO SUMÁRIA DE SUBVERSIVOS” ERA POLÍTICA DE ESTADO NO PERÍODO DE
ABERTURA DO REGIME CIVIL- MILITAR, COMANDADA POR GEISEL E FIGUEIREDO.
Geisel e Figueiredo
Existem
várias zonas obscuras e lacunares na ditadura civil-militar brasileira que
ainda precisam ser melhor conhecidas. Mas aos poucos, a cada descoberta, novas
luzes vão sendo lançadas, pontos nebulosos vão sendo esclarecidos e alguns mitos vão desmoronando. Desta vez foi o mito do presidente moderado, que
encaminhou o processo de abertura, que veio abaixo.
Ernesto
Geisel, presidente militar que governou o Brasil entre 1974 e 1979, é visto, às
vezes com certa simpatia, como o presidente que deu início ao processo de
abertura (lenta, gradual e segura, conforme o slogan oficial), que pôs fim aos
anos de chumbo, às repressões violentas, às sessões de tortura e aos
assassinatos, que marcaram os governos dos militares linha-dura Costa e Silva e Médici. Na conhecida polarização entre
os militares, Geisel pertenceria ao grupo denominado castelista, que se diferenciava do grupo linha-dura por ser mais moderado e mais brando no tratamento dispensado
aos adversários políticos. João Batista Figueiredo, seu sucessor, seguiria a
mesma linha. O adjetivo castelista deriva
do perfil atribuído a Castelo Branco, considerado um militar legalista, com uma
formação intelectual mais refinada, se comparado aos troupiers, militares linha-dura
e nacionalistas. O adjetivo viria, posteriormente, caracterizar um grupo de
militares com perfil semelhante ao de Castelo Branco. Com o tempo, a distinção
configurou-se numa sólida dicotomia. Os dois perfis, por antinomia,
caracterizariam formas distintas de atuar, com métodos mais ou menos
contundentes. Na semana passada, um documento da Cia, que veio a público pelas
mãos de Mathias Spektor, pesquisador da FGV, colocou, no mínimo, um enorme
ponto de interrogação sobre este assunto.
Um
Memorando enviado pelo diretor da CIA, William Egan
Colby, para o secretário de estado Henry Kissinger, informando sobre a
decisão do presidente Ernesto Geisel de continuar empregando “métodos
extralegais” para dar combate e exterminar “subversivos perigosos”, trouxe
novas luzes sobre o chamado período de abertura e abalou a visão até então
dominante sobre o seu governo.
O
documento, embora perturbador, não chega a surpreender. Como bem disse o
diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, para quem está atento às descobertas da
Comissão da Verdade, que já havia responsabilizado Geisel e os outros generais
pelas torturas e execuções, o conteúdo do documento apenas confirmou o que, em
boa medida, já se sabia. As declarações de Geisel ao Centro de Pesquisa
e Documentação da FGV também já davam fortes indícios de que o emprego de
métodos violentos e “extralegais” continuaram sendo empregados no período da
“abertura”. Mesmo assim, as informações são bombásticas e podem
abrir novas linhas de interpretação. É claro que é preciso tomar certos
cuidados e cruzar/confrontar o documento com outras fontes da época. E ainda
que as intenções do documento espelhem um ponto de vista de uma agência de
“inteligência” estrangeira, que operava com técnicas de espionagem, e estava
diretamente interessada nos assuntos internos do Brasil, não há como negar a
importância e a gravidade do conteúdo revelado.
Em
síntese, o Memorando presta contas de
uma reunião ocorrida em 30 de março de 1974. Estavam presentes o presidente
Geisel, o general Milton Tavares de Souza (antigo chefe do Centro de
Informações do Exército), o general Confúcio Danton de Paula Avelino (então
chefe do Centro) e o general Figueiredo, que à época chefiava o SNI. O tema da
reunião era a continuidade ou não das “execuções de subversivos perigosos”. O
general Milton, que segundo Colby, falou a maior parte do tempo, deu detalhes
dos trabalhos do Centro de Informações do Exército, sob o governo Médici,
informou que 104 pessoas foram executadas em 1973, ou um pouco antes, e
ressaltou que os “métodos extralegais” deveriam continuar sendo empregados. Figueiredo
manifestou apoio à política das execuções e insistiu na sua continuidade.
Geisel ponderou sobre os aspectos prejudiciais, caso fosse mantida, e pediu uma
semana para se posicionar sobre o assunto. Dois dias depois, o presidente
decidiu que a política deveria continuar, informou sua decisão ao general
Figueiredo, e recomendou que se assegurasse “que apenas subversivos perigosos fossem executados”. Geisel,
que publicamente adotava um tom conciliador, não só estava à par e de acordo,
como autorizou o emprego da violência extrema contra os adversários do regime.
Ao invés do presidente moderado, poderíamos dizer que o general foi o
presidente de duas caras: uma cara, mais arejada, para consumo público,
condizente com o clima de abertura oficialmente adotado pelo regime; outra, fechada,
voltada para os assuntos internos e secretos do governo, que não abria mão,
extraoficialmente, do uso da violência contra os “terroristas”.
Generais à paisana.
Na
reunião ficou acordado que Figueiredo, por sugestão de Geisel, cuidaria das
execuções e decidiria, “sob certas condições”, quem era ou não um “subversivo
perigoso”. A teia de sinistros
poderes, diretamente ligada ao gabinete do presidente, funcionaria assim:
quando um “subversivo” fosse capturado, o chefe do Centro
de Informações do Exército consultaria Figueiredo. A execução dependeria da
aprovação do general, que deveria tomar os cuidados solicitados pelo presidente
Geisel para executar de fato somente os considerados “perigosos”.
Figueiredo
decidiria, portanto, quem deveria morrer. Brincava de deus no país da
“abertura”. Mas afinal, quem eram os “perigosos”? Na avaliação dos generais, o
jornalista Vladmir Herzog, executado em 1975, era considerado um “subversivo
perigoso”, um “terrorista”? Sob que condições Herzog seria um homem perigoso a
ponto de merecer a morte?
Vladimir Herzog armado com sua perigosíssima máquina de escrever!
O
encontro dos generais, sob atenta observação da CIA, para decidir pela
continuidade ou não das execuções, não deixa dúvidas de que os assassinatos cometidos
durante a ditadura era uma política de
estado. Não era uma prática acidental, decorrente dos excessos de algumas
figuras truculentas. Era institucional. Geisel e Figueiredo não apenas sabiam
das execuções. Eles autorizaram e decidiam quem mereceria a pena capital. O
assassinato de membros do Comitê Central do PCB e os dirigentes do PCdoB,
cachinados na Lapa em 1976, alguns depois de sofrer bárbaras torturas, fazem
parte da estratégia do governo Geisel de limpar o terreno para encaminhar de
forma “segura” a abertura política.
Não
faltarão figuras folclóricas e autoritárias a declarar, com a “espada ao lado”
e a “sela equipada”, a falsidade do documento (Ver a declaração do general da
reserva Paulo Chagas). Lamentavelmente, o atual governo, que abandonou os
trabalhos da Comissão da Verdade, vem dando voz aos militares e reabilitando certas
figuras dadas a pronunciamentos. Também não faltarão “pessoas de bem” elogiando
a decisão do general Geisel e lamentando não existir mais executores como
naquela época. Tampouco malabarismos históricos delirantes, de certo
“jornalismo” que se diz “de direita”, para mostrar que o documento foi forjado
por esquerdistas infiltrados na CIA por “razões de guerra geopolítica” (O
jornalismo “de direita” é semelhante ao “de esquerda”, naquilo que ele tem de
pior).
As
reações à divulgação do documento foram as mais diversas. A mais desprezível,
sem dúvida, foi a de certo (lamentavelmente) presidenciável, que contumazmente confunde
o papel do presidente da nação com o do chefe de família (a dele). Em
entrevista à uma rádio de BH, o sujeito disse que: “Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um tapa no
bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece”. O comentário (daqueles que
só se cria em mentes perturbadas) é ignóbil nas suas intenções e cruel com os
familiares das vítimas. Comparar crimes brutais com palmada em criança é
revelador da descompostura e da imaturidade política deste senhor. O sujeito
(vo)mitou mais uma vez!
Abaixo,
trechos do Memorando que vieram a público:
Memorando do diretor da Agência Central
de Inteligência Colby para o secretário de Estado Kissinger
Washington, 11 de abril de 1974.
Assunto: Decisão do presidente
brasileiro Ernesto Geisel de continuar a execução sumária de subversivos
perigosos sob certas condições
1. [1 parágrafo (7 linhas) não
desclassificado]
2. Em 30 de março de 1974, reuniu-se
presidente do Brasil, Ernesto Geisel, com o general Milton Tavares de Souza
(chamado de general Milton) e o general Confúcio Danton de Paula Avelino,
respectivamente o chefe que sai e o que entra do Centro de Informações do
Exército (CIE). Também esteve presente o general João Baptista Figueiredo, chefe
do Serviço Nacional de Informações (SNI).
3. O general Milton, que falou durante
a maior parte do tempo, detalhou o trabalho da CIE contra os alvos subversivos
internos durante a administração do ex-presidente Emilio Garrastazu Médici. Ele
ressaltou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e que
os métodos extralegais devem continuar sendo usados contra subversivos
perigosos. A este respeito, o general Milton disse que cerca de 104 pessoas
nesta categoria foram sumariamente executadas pelo CIE durante o ano passado,
ou pouco antes. Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade.
4. O presidente, que comentou sobre a
seriedade e os aspectos potencialmente prejudiciais desta política, disse que
queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de chegar a
qualquer decisão sobre sua continuidade. Em 1º de abril, o presidente Geisel
disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito
cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos
fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o
CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE
consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa
seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que o
CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço
geral do CIE será coordenado pelo General Figueiredo.
5. [1 parágrafo (12½ linhas) não desclassificado]
6. Uma cópia deste memorando será
disponibilizada ao Secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos.
[1½ linha não desclassificada]. Nenhuma distribuição adicional está sendo
feita.