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sábado, 14 de maio de 2016

LENDA, MEMÓRIA E HISTÓRIA: A LENDA DA MBOI GUAÇU E OS ”CAUSOS” QUE MINHA AVÓ GUARANI CONTAVA.

LENDA, MEMÓRIA E HISTÓRIA: A LENDA DA MBOI GUAÇU E OS ”CAUSOS” QUE MINHA AVÓ GUARANI CONTAVA.

   
Dedicado à dona Adiles e à dona Sebastiana, duas mestiças guarani contadoras de “causos”.
 
Minha avó paterna (Adiles Andrades de Oliveira), uma mestiça guarani, adorava contar “causos”. Sentada ao lado do fogão à lenha, com uma cuia de chimarrão na mão, voz grave e olhar afetuoso, contou-me histórias que ouvira de sua mãe, uma índia guarani. Lembro vagamente dos “causos”. As imagens e as falas são lacunares, como as lembranças de um sonho. Mas, à medida que me ponho a rememorar, uma imagem puxa a outra, e situações, pessoas e coisas que foram importantes para mim, mas que estavam esquecidas, reaparecem e se tornam presentes novamente como se nunca as tivesse esquecido. Um dos “causos”, até onde a memória alcança, parecia ser uma variação descontextualizada da lenda da cobra grande de São Miguel, adaptada às necessidades pedagógicas de uma avó às voltas com netos endiabrados. “A cobra, grande que nem um trem, dizia ela, dorme enroscada no sino da igreja. Ela só acorda com o barulho das crianças arteiras. E quando acorda, ela come as crianças que não respeitam os mais velhos.” Do quintal da casa avistávamos o campanário da linda igreja de Santa Catarina, do outro lado da ferrovia.  Não havia dúvidas de onde a cobra morava. A analogia com o trem não era sem motivos. O trem passava em frente à casa dos meus avós e minha avó tinha verdadeiro fascínio pela velha Maria Fumaça. Sempre que podia subia no trem, alegre feito criança, e ia para Porto Alegre visitar as filhas, os filhos e os netos. Nós corríamos para uma parada de trem improvisada, no bairro onde morávamos, e abanávamos para ela, que devolvia os acenos com a vasta cabeleira grisalha ao vento. A cobra grande de ferro emitia o potente apito e seguia em frente, serpenteando os morros, atravessando rios e pontes. Vó Adiles, abastecida de chimarrão e um vasto repertório de “causos”, era aguardada com entusiasmo pelos netos que moravam na capital. Ela sabia como poucos entreter as crianças e mantê-las ao seu redor.

Tive a sorte de ter tido avós contadores de histórias. Cresci ouvindo as narrativas deles, e depois dos meus pais e tios, sobre as “coisas do tempo antigo” (como eles diziam). Eram histórias de pescarias, de assombrações, dos bailes antigos, dos namoros, das brincadeiras, das coisas que os seus avós contavam. Às vezes eram histórias despretensiosas, para entreter apenas. Mas quase sempre elas encerravam lições de vida e aprendizados éticos (embora eles nunca tenham empregado esta palavra). Vó Adiles falava devagar, com longas e significativas pausas. Olhava para baixo, balançava a cabeça em silêncio, remoendo o que havia dito, e voltava à narrativa. A criança que fui, a maneira como construí meu mundo, e o adulto que me tornei, foram marcados por estas experiências.  

Mais ou menos quinze anos depois da morte da minha avó, experimentei uma estranha sensação de familiaridade, um déjà vu, lendo algumas lendas recolhidas da tradição popular por Barbosa Lessa (O boi das aspas de ouro. Contos gauchescos. 1956). Os temas, o vocabulário e a sintaxe coloquiais, e as expressões usadas em alguns “causos” (pruxirão, feemeiro, bichos malevas, chinas, moita), evocavam as narrativas que iluminaram minha infância. O trem já não apitava com a mesma regularidade de antes, a Maria Fumaça fora substituída pela locomotiva a diesel, o velho campanário fora desmistificado, desde que passei a jogar futebol de salão na quadra da igreja, mas o gosto pelas narrativas populares já estava inoculado em mim.

As lendas de um povo, guardadas na memória e transmitidas pela tradição oral, traduzem, em linguagem simbólica, valores, crenças e momentos significativos do passado. Por meio delas, penetramos no modo particular de significação do mundo e de apreensão da realidade de um grupo. Os guarani exprimem seu mundo por meio de um rico repertório de mitos e lendas. Uma delas é a mboi guaçu (cobra grande), uma antiga lenda missioneira, surgida provavelmente durante o período de dispersão das missões jesuíticas, em algum momento entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX, na região dos sete povos, no RS, que se conservou na tradição oral guarani, especialmente entre as mulheres. Durante dois séculos foi repassada de mãe para filha (até chegar à minha avó). A cobra grande é uma figura mítica da mitologia guarani. A lenda da mboi guaçu é, possivelmente, uma variação, ou uma adaptação, do mito ancestral. Barbosa Lessa, em 1951, ouviu a lenda de uma mestiça guarani, de 97 anos, chamada Sebastiana Gonçalves de Oliveira, que vivia num rancho na região missioneira do Rio Grande do Sul, nas proximidades das ruinas de São Miguel. Sebastiana ouvira o “causo” de sua mãe que, por sua vez, ouvira de sua mãe, avó de Sebastiana, “que era do tempo dos padres” (ou seja, do tempo em que os jesuítas administravam as missões). Muitos, disse a velha guarani, vêm por aqui, olham a igreja, sobem na torre, descem na escada, “mas não tem olhos para enxergar aquela massa preta, hoje dura que nem pedra, que escorreu do alto da escada”. A massa preta eram restos da mboi-guaçu que se instalou na torre da igreja de São Miguel e, “de tanto comer carne tenra, estourou”. Nas três ou quatro vezes que estive nas ruínas da igreja fiquei horas olhando para a torre e para a escada, procurando vestígios da lendária cobra. Os “causos” de minha avó se misturavam com a narrativa de Sebastiana e a torre da igreja em ruínas parecia-me atavicamente familiar.


Barbosa Lessa cedeu a palavra à Sebastiana, que inicia sua narrativa nos reportando aos tempos de prosperidade e pujança nos Sete Povos das Missões:

“Pois quando eu era pequena, minha mãe sempre me falava das coisas lindas do tempo em que São Miguel era cidade grande, com muita gente vivendo por aqui. Descrevia as procissões, as danças, os trabalhos de pruxirão, a colheita de erva mate com festas muito bonitas. Coisas que ela nunca viu, mas que ouviu dizer pela mãe dela, que era do tempo dos padres. Minha mãe conta que, quando os padres foram corridos, tudo isso se parou mui triste e abandonado. Quase todos os homens tinham sido reculutados para as guerras, de quando em quando apareciam para reculutar também os guris já mais grandotes e nas casas junto da igreja só tinham ficado as mulheres, com as crianças pequenas e um que outro velho já quase sem serventia.”

Aqueles tempos foram “mui brabos, continua Sebastiana, porque era só feemeiro que vivia em São Miguel. Caçar mulher não sabe. Laçar gado, também não. Cuidar da lavoura até a colheita, sim. Mas derrubar mato e escorraçar os tigres e outros bichos malevas, também não. Sem derrubar mato, plantação não tem. E em vez do mato ser vencido, foi ele que foi vencendo: invadiu cidade adentro, entrou pelos restos de rua, subiu pelas paredes dos ranchos, foi botando tudo abaixo”. Buscando resguardo, as índias levaram seus pertences e filhos para o interior da igreja, na certeza de que o mato não chagaria até lá. E o mato foi chegando, chegando, e ali parou. “Durante o dia, as mulheres levavam seus filhos e os animais para os restos de lavoura, e ali ficavam trabalhando, ali comiam, ali descansavam o corpo quando a canseira era muita”. Antes da noite chegar, voltavam para dentro da igreja, acendendo um fogo à porta para manter os tigres à distância.

Mas eis que um dia a mboi-guaçu, “que sempre tinha vivido no mato”, avançou junto com este e chegou até a igreja de São Miguel. “E quando o mato, se agarrando em cipós, trepou parede acima, ela trepou também. E quando o mato, chegando ao alto, vingou numa das torres, a cobra ali se aninhou, moita e paciente”. Até que um dia a cobra sentiu fome. Tanta fome que se enroscava nas cordas do sino e se pôs a badalar, badalar. “Badalava, badalava, e o grito dos sinos entrava pelo ouvido dos viventes, para bater lá dentro, lá no fundo, chicoteando os nervos, como se fosse uma tropilha inteira pisoteando o pensamento, machucando o coração”. Até que um dia, uma das “chinas” decifrou mistério. Era a cobra que sentia fome. Enlouquecida de tanto sofrimento, a “china” pegou sem filho pelos braços e o levou para a cobra. “Assim foi por muito tempo (...) para aquietar a maldita”. Mas um dia, de tanto comer carne, a cobra foi inchando, inchando, e estourou. “Esta é a história que contava a minha avó guarani”, termina Sebastiana.


A lenda é uma representação alegórica da decadência dos Sete Povos das Missões que se verificou após a saída dos jesuítas e a diáspora masculina para as guerras e o trabalho nas estâncias. Na narrativa de Sebastiana podemos perceber a deterioração das reduções, outrora pujantes, e a difícil situação das mulheres sobre as quais, na ausência dos homens, recaiu a responsabilidade de todo o trabalho. O mato se aproximando e tomando conta da aldeia é a metáfora da dispersão e abandono dos povos. A lenda da mboi-guaçu, conservada e transmitida pelas e entre as mulheres, e ainda muito viva na memória de Sebastiana, é o modo muito particular dos guarani se referir ao passado e contar o que se sucedeu depois da partida dos padres. 

Barbosa Lessa, na apresentação da lenda, interpretou o sacrifício que as mães faziam ao entregar os filhos para saciar a fome da cobra à dor de entregar os filhos ao recrutamento militar: “Se, dentre os leitores, encontrar-se alguém propenso a traçar simbolismos, talvez possa perceber, na história da Mboi-Guaçu, certa correlação com a compreensível angústia que as pobres viúvas guaranis – vítimas da guerra, e desamparadas em sua desdita – por certo sentiam ao entregar seus filhos às forças de recrutamento militar (BARBOSA LESSA, 1958).

Da Tradição Oral ao Folclore: o embalsamamento da lenda.

Ao dar forma escrita à lenda contada por Sebastiana, Barbosa Lessa, ao mesmo tempo que ajudou a preservá-la do esquecimento, contribuiu para petrificá-la. Explico-me. As interações da escrita com a oralidade são ambivalentes. A escrita é uma espécie de cápsula do tempo que captura as narrativas orais e lhes empresta forma definitiva (admitindo que os significados possam mudar) e longevidade temporal. Convertida em texto escrito, as lendas passam a circular em diferentes contextos sociais e narrativos. Foi o que aconteceu com a lenda da mboi-guaçu. Depois de capturada pela escrita, projetou-se para fora do mundo oral guarani e alcançou um vasto público de leitores. Porém, ao recolhê-la da tradição oral e incorporá-la ao repertório de lendas gauchescas, ou ao folclore gaúcho, Barbosa Lessa, mesmo sem ter a intenção, suprimiu-lhe a vitalidade e destituiu-a de seus significados culturais mais profundos. A lenda, contada no círculo familiar guarani, tinha sentidos que o leitor de Barbosa Lessa desconhece. No entanto, lida como folclore tradicional do Rio Grande Sul, ela passa a ter novos significados para os leitores que os guarani desconheciam. O folclore é, em certo sentido, o embalsamamento das lendas e dos mitos. Preserva-se o conteúdo, esvaziam-se os sentidos originais e criam-se novos significados.  Para mim, por exemplo, historiador e leitor de Barbosa Lessa, a lenda da cobra grande é uma alegoria da decadência das reduções guaraníticas, surgida logo após expulsão dos jesuítas dos territórios portugueses. Mas eu só pude chegar a esta interpretação porque a lenda chegou até mim, na forma escrita, por meio de um livro.

A incorporação da lenda guarani ao folclore rio-grandense merece um pouco mais de atenção. O livro de Barbosa Lessa, do qual a lenda faz parte, foi publicado na década de 1950 em meio às acaloradas disputas historiográficas no Rio Grande do Sul, no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico, em torno da admissão ou não da história das missões jesuíticas ao patrimônio histórico e cultural rio-grandense. Parcela significativa da intelectualidade da época era contrária à ideia de conceber as missões guaraníticas, controladas pelos jesuítas, em território espanhol, como parte da história do riograndense. No início da década de 1990, Ieda Gutfreind publicou um importante estudo historiográfico situando os historiadores em dois grupos: o platino e o luso. O grupo platino sustentava a decisiva participação dos jesuítas e das missões guaraníticas na formação do Rio Grande. O grupo luso, por sua vez, desconsiderando as influências de origem jesuítico-espanholas, entendia que a formação se devia exclusivamente aos lusitanos (bandeirantes, açorianos e portugueses). Barbosa Lessa compartilhava da visão histórica do grupo platino. A publicação da mboi-guaçu no livro “O Boi de Aspas de Ouro” é uma tomada de posição. Ao incorporar a lenda guarani à memória oficial rio-grandense afirmava-se a presença e a importância da “matriz indígena” da formação do estado.

A lenda, narrada em primeira pessoa por uma mulher indígena, também exprime os embates da época. Próximo do grupo do historiador Mansueto Bernardi, que procurava ampliar a noção de sujeito histórico na formação da cultura e da identidade do RS, Barbosa Lessa registrava, por meio de Sebastiana, a voz do “povo”, o sujeito histórico esquecido pelos historiadores que cantavam em prosa e verso os feitos de um passado elitista e militarizado. O projeto de Lessa era trazer para o centro da história riograndense as “gentes humildes”, o povo simples, guardião do passado vivido e portador dos substratos psíquicos guardados na tradição oral capazes de revelar os sentidos profundos da história regional. Sebastiana era a voz do povo que a historiografia elitista havia silenciado. Representava os excluídos da história riograndense, os guaxos da historiografia (Para Lessa os guaxos eram os tipos comuns do que chamaríamos hoje de uma “história vista de baixo”: peões, mulheres das estâncias, chinocas, mestiços e descendentes de escravos). Joana Figueiredo observou bem que o “guaxo não é só a figura metafórica do filhote sem mãe, que não é amamentado e está só no mundo, mas traz uma carga emocional destinada a todos os gaúchos órfãos em sua perspectiva da vida” (Tese de Doutorado).

Outro ponto que merece ser observado é o destaque, inovador para época, que Barbosa Lessa dá à mulher na formação do caráter regional. A mboi-guaçu é uma história de resistência indígena feminina. Ao lado ou na ausência dos homens, como acontecia também nas estâncias, eram elas que comandavam a luta cotidiana pela sobrevivência.

“Pisss... a Cobra tá ouvindo”: a narrativa pedagógica da infância.


Minha avó não era historiadora, nunca leu um livro, mas era uma boa contadora de “causos”, como o Negro Donato, domador de cavalos que contava “causos” à beira da fogueira para o menino Barbosa Lessa. Até hoje, sempre que vou a Santa Maria, observo demoradamente o campanário da velha igreja. Da casa do meu irmão, localizada a 200 metros de onde morava minha avó, o campanário se ergue numa elevação do terreno, ao pé do morro do Monumento, por sobre casas e prédios, testemunho imóvel e silencioso, como as ruínas da igreja de São Miguel, da marcha implacável do tempo e das mudanças à sua volta. Não reconheço mais o bairro, as pessoas, as ruas, mas a igreja esta lá, inalterada, exatamente a mesma de 40 anos atrás. Lá do alto, noutros tempos, a cobra imaginária e pedagógica espiava minhas molecagens. A torre da igreja era o meu panóptico. Não importava onde me escondesse, a cobra estava sempre me vendo. O toque do sino era um aviso, um sonoro puxão de orelhas para os meus deslizes. Vó Adiles dizia, com o dedo indicador encostado nos lábios: “pissss... a cobra tá ouvindo”.

Um comentário:

  1. Texto comovente. Que seria das histórias não fossem as memórias de nossas avós?

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