O
JESUÍTA LASCIVO DE ANAÏS NIN: um conto erótico freudiano sobre os colégios
jesuíticos do Brasil colonial.
Para Vivian, que
me ensinou a ler Anaïs Nin.
Anaïs
Nin, à sua maneira, abriu uma janela erótica para os tempos coloniais ao
explorar, no conto O Internato, um ambiente de sedução, desejo e sexualidade
nos colégios jesuíticos do Brasil antigo. Quem já não imaginou que por trás da
aparência austera e severa dos jesuítas e das tradicionais escolas frequentadas
por meninos de famílias de boa linhagem, o sexo pulsava, gritava, enrijecia? Se
nas narrativas históricas e hagiográficas, protagonizadas por Nóbrega, Anchieta,
Vieira, Benci e Antonil, os jesuítas são sujeitos históricos assexuados ligados
à colonização, a educação e a evangelização, na ficção erótica de Anaïs eles
perdem a aura de santidade e o escudo protetor da ordem de santo Inácio e se
convertem em homens comuns, tentados pelo desejo, pela beleza e pelo frescor
dos corpos dos meninos deixados sob sua orientação.
O
conto foi escrito no início da década 1940, quando Anaïs Nin, incentivada por
Henry Miller, escrevia pequenas histórias eróticas para um cliente desconhecido,
a um dólar a página, para sobreviver. O que poderia parecer uma promiscuidade
literária (escrever histórias eróticas por dinheiro para satisfazer os
caprichos de um cliente misterioso) foi, na verdade, uma oportunidade para
Anaïs pensar as particularidades de uma escrita feminina sobre o sexo, numa
época em que só os homens escreviam sobre o assunto. O exercício lhe permitiu também
jogar com as descobertas psicanalíticas nos domínios da sexualidade, explorando,
por vezes de maneira caricatural e exagerada (rabelaisiana eu diria), diversas
parafilias e narrativas de experiências sexuais que circulavam ao seu redor.
Anaïs era entusiasta das teorias freudianas sobre a sexualidade e fora assistente
e amante de Otto Rank, discípulo de Freud. A psicanálise, diluída nas
entrelinhas, já que o cliente dispensava análises e poesia, atravessa os contos
de ponta a ponta.
O
conto desvela o cotidiano mundano de uma escola da Companhia de Jesus e o
voyeurismo de um professor jesuíta (padre Dobo) de sangue indígena, olhos
penetrantes e lábios licenciosos, que zelava pela boa educação dos meninos,
vigiando seus corpos antes de dormir e policiando suas mentes no confessionário.
Frequentemente os meninos notavam, inocentes ou maliciosos, uma saliência que
teimava em aparecer sob a batina marrom do professor. A ereção vinha nas horas
mais improváveis, lendo Cervantes, por exemplo, ou quando observava os meninos.
Um deles em particular, loiro e “com olhos e pele de uma menina”, mexia com as
saliências do padre. A coleção
particular de livros era um pretexto para Dobo ficar a sós com o menino preferido
e mostrar-lhe as reproduções de cerâmica inca com homens se enfrentando. Em
algumas representações “um membro comprido saia do meio de um homem e penetrava
o outro por trás”. Embora Anaïs não dê detalhes, e nisto reside a eficácia erótica
dos contos, a situação toda é poderosamente sugestiva. Como não imaginar o
deleite e o prazer do padre acompanhando as reações do delicado menino às
sugestões das imagens? Mas não era só este menino que despertava a lascívia do
padre. Havia outro, rebelde, corpo esbelto, à semelhança de um “príncipe mouro”,
que se recusava a dormir de camisola. Todas as noites, depois de se meter
embaixo das cobertas, tirava secretamente a roupa e dormia nu. Padre Dobo, que
fazia vigílias noturnas diárias para ver se os meninos não estavam se
masturbando, quando chegava à cama do “príncipe mouro”, erguia as cobertas
lentamente para espiar as feições do corpo. Se o garoto acordasse, o padre
ralhava: “Vim ver se você estava dormindo sem o camisolão de novo”. Mas se não
acordasse, olhava demoradamente o belo corpo adormecido.
Anaïs
poderia eleger como protagonista do conto um dos padres seculares dos tempos
coloniais, conhecidos pela “libertinagem” e pelo gosto por “sacanagens”. Não
faltariam exemplos. Padre Nóbrega, já na chegada à colônia em 1549,
escandalizou-se com o comportamento do clero “baiano” e “pernambucano”. Em
carta a um companheiro, escreveu: “A evitar pecados esse clero não veio”. Os padres,
não todos, viviam soltos, amancebados com as índias, tentando as mulheres casadas
ou cometendo “tocamentos torpes” e “jogando as punhetas” com rapazes (Ver Ronaldo
Vainfas. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997). As
crônicas coloniais e as cartas jesuíticas ofereceriam um variado banquete à
Anaïs sobre a vida sexual do clero colonial. Todavia, criar uma história
erótica com personagens de conhecida má reputação sexual talvez não fosse a
melhor maneira de mexer com as fantasias eróticas do seu cliente. Por mais que
o sujeito exigisse histórias cruas, sem adornos poéticos e filosofias, Anaïs
não se satisfazia com obviedades e lugares comuns. Emprestava certa delicadeza,
um toque feminino e muita inventividade, segundo ela própria, às suas
histórias. A sacada no conto foi erotizar a figura do jesuíta, cercada por uma
aura de santidade, lendária pela rigidez moral e pela sublimação dos prazeres
do corpo.
O
jesuíta de Anais, diferentemente dos “donzelões intransigentes” e carolas
pintados por Gilberto Freyre, é um homem com o sexo vivo, saliente por baixo da
batina, e que usa o confessionário para estimular e se deliciar com as
narrativas e sonhos eróticos dos meninos. Padre Dobo criou táticas para
exercitar seu voyeurismo no interior de uma instituição moralmente rígida sem
chamar muito a atenção. Usava o poder que o colégio lhe conferia como educador
e as cerimônias e sacramentos católicos para tirar uma casquinha dos meninos e
viver secretamente os seus desejos. Numa verdadeira subversão das práticas
católicas, o confessionário se convertia em esconderijo e refúgio, espécie de
cantinho escuro dos prazeres, para manter os segredos íntimos do padre longe do
campo de visão dos seus pares.
Ao
invés de expor abertamente as práticas do padre, Anaïs ofereceu sugestivas
imagens para mexer com a imaginação do leitor. A descrição da cerimônia de
lavação do pênis em água benta dos meninos que se masturbavam, por exemplo, é bastante
econômica. Sabemos que era realizada à noite e em grande segredo. Não ficamos
sabendo o que de fato acontecia, mas imaginamos muitas coisas. Estariam aí as
sutilezas e particularidades do tratamento feminino e de uma “escrita feminina”
(expressão de Henry Miller) sobre a sexualidade?
Anaïs
espiou o passado colonial pelo buraco da fechadura e imaginou, freudianamente,
suas intimidades secretas, proibidas. O final do conto é o desfecho exemplar de
uma tese freudiana imaginada no interior de uma instituição disciplinar e
controladora da sexualidade. Um grupo de dez meninos se perde no mato durante
um passeio escolar e, sem mais nem menos, jogam o “delicado menino loiro” na
grama, sem roupas, de barriga para baixo, e usam-no como uma “prostituta”. Embora
o garoto gritasse e esperneasse, foi agarrado à força e todos satisfizeram suas
vontades. O desejo contido e reprimido
pela educação jesuítica castradora explodiu em fúria. O desejo reprimido pela
rígida formação católica, mas secretamente estimulado pelo padre durante as
confissões, se manifestou de forma agressiva e violenta sobre o garoto com
traços femininos.
A
imaginação erótico-literária de Anaïs viu no Internato jesuítico muito mais do
que um espaço educacional, guiado
pelo Ratio Studiorum visando à
formação cristã do homem, destinado aos meninos de boas famílias. O colégio,
para além do ideal cristão e pedagógico, era também um espaço de voyeurismos,
de olhares furtivos, desejantes, de paixões silenciosas, de aprendizagens paralelas,
de descobertas sobre a sexualidade.
O
jesuíta de pau duro inventado por Anaïs é a antítese perfeita de Nóbrega e
Anchieta. É o ponto fora da curva da Companhia de Jesus. É o lado menos heroico,
virtuoso e mais humano dos jesuítas. Imagino padre Dobo, verdadeiro soldado de Afrodite
na Terra dos Papagaios, travando seus próprios combates entre os teimosos
prazeres da carne e o opressor modelo de castidade e santidade de Inácio de
Loyola e Francisco Xavier.
Olhando
da perspectiva da Companhia de Jesus, padre Dobo era a erva daninha indesejada que
comprometia a vinha de deus. Da perspectiva do padre, no entanto, ele estava no
jardim das delícias (não o de Hieronymus
Bosch), se alimentando da beleza e do frescor das delicadas flores que germinavam
sob seus cuidados.
Vale
lembrar que nos tempos coloniais a infância e a adolescência não tinham os
mesmos significados que têm hoje. A infância, como objeto discursivo, ou a
criança, como um ser social, portadora de direitos, simplesmente não existiam.
O crime de pedofilia, que atormenta a igreja católica contemporaneamente, portanto,
não se aplica aos deslizes morais do padre Dobo. Seus pecados, aos olhos da
moral católica da época, eram outros.
Belíssima análise!!!!
ResponderExcluirObrigado. O conto ajuda muito.
ExcluirNossa que tesao de conto vc tem zap face telegram?
ExcluirO jesuíta de pau duro, a dureza do desejo reprimido e proibido, a violência sexual, as letras que escorrem de Anaïs e a sua sensibilidade histórica, erótica e... quiçá, jesuítica, é um quadro e tanto na mente da pobre Guinevere.
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