A BUSCA DOS GUARANI PELA TERRA SEM MAL: UMA INVENÇÃO DA ETNOGRAFIA?
(Um Estudo Sobre os Guarani do Paraguai Colonial - Séculos XVI e XVII).
Uma versão mais completa desse
texto, com notas explicativas e referências bibliográficas, foi publicada na
Revista Interseções (Revista de Estudos Interdisciplinares), da UERJ.
Introdução: a “terra sem mal” e a metafísica religiosa dos guarani
modernos (séculos XIX e XX).
A busca dos povos guarani
pela “terra sem mal” é, desde os trabalhos de Curt Unkel (Nimeundaju), um dos
temas mais fascinantes e dramáticos da etno-história dos povos tupi-guarani.
Encerra, a um só tempo, uma recusa profunda e melancólica do mundo, face à sua
existência na terra imperfeita (não divina) e às pressões da sociedade que os
cerca, e a projeção de um ideal que se mostrou inalcançável. Ideal de fundo
cosmológico, catalizador de um desejo coletivo que se traduz num nomadismo
existencial em busca da imortalidade. As migrações em busca da “terra sem mal”,
no século XX, são fundadas numa profunda metafísica religiosa. Os guarani são
seres do devir, orientados por um discurso mitocosmológico que se realiza numa
escatologia apocalíptica, desejável e inevitável, embora sempre adiável.
Em 1921 Nimuendaju surpreendeu
um grupo m’bya próximo da cidade de São Paulo em meio a uma migração em busca
da “terra sem mal”, supostamente situada no leste, além do mar. Nimeundaju seguiu
com o grupo durante três dias até alcançar a Praia Grande, a sudeste de Santos.
Chegaram à noite, sob forte chuva, e não conseguiram avistar o mar. “Mas, pela
manhã, registrou o etnólogo, a chuva parou e o sol se levantou radiante e
esplendoroso do mar. Ensimesmados e mudos, os paraguaios estavam a meu lado
sobre a duna. Visivelmente, toda a situação lhes parecia extremamente lúgubre.
Eles haviam, aparentemente, imaginado o mar de forma totalmente diversa e,
sobretudo, não tão terrivelmente grande. Sua confiança tinha sofrido um golpe
violento. Eles se mostraram bastante abatidos, especialmente à noite, e o canto
de pajelança a Tupãcý, que eu aguardava com grande expectativa, não progredia,
embora eu também tivesse trazido o meu maracá e procurasse ajudar com todas as
minhas forças” (Nimuendaju).
Essa extraordinária
experiência mudou profundamente a maneira como Curt Unkel via os guarani, e
mudou sensivelmente a maneira como os etnólogos passariam a vê-los daí para
frente.
Os guarani do início século
XX, que se deslocavam em busca do paraíso terrestre, surpreendidos por
Nimuendaju em plena migração, já não eram mais como os guarani dos tempos
coloniais. A colonização, a evangelização, a formação dos estados nacionais e a
dramática redução de seus territórios alteraram sensivelmente o “modo de ser”
desses povos. Práticas antigas foram abandonadas e elementos da tradição
cristã, antes ignorados, foram incorporados ao repertório de crenças e valores
dos guarani modernos. A busca pela “terra sem mal” no século XX talvez seja a
melhor expressão das profundas mudanças pelas quais estes povos passaram desde
os tempos das conquistas portuguesas e espanholas, sejam elas militares ou jesuíticas,
na América do Sul.
No século XXI - a uma distância considerável
dos grupos com os quais Nimuendaju teve contato entre 1907 e 1921 - as demandas
e o modo como guarani lidam com o mundo a sua volta já não são mais os mesmos.
A dinâmica e o “modo de ser” destes povos acompanham, por vezes tragicamente,
as mudanças do mundo que os cerca. Neste sentido, diria que hoje a “terra sem mal”
não é mais o paraíso cosmológico a ser alcançado pela visão e condução
infalível de um Pajé. A terra mítica que os guarani buscaram no século XX pode
ser equiparada neste início de novo século às terras a serem demarcadas (tekoha), por políticas públicas
sensíveis ao drama histórico destes povos, quer no Mato Grosso, quer em Santa
Catarina.
A “terra sem mal”, conforme
indicam os estudos etno-históricos, é um tema central da cultura guarani do
século XX. Poderíamos dizer o mesmo sobre os guarani dos tempos coloniais? O texto que segue é uma resposta, breve e
provisória, para esta pergunta. Embora as observações possam ser estendidas
para povos guarani da América Portuguesa, dirijo a atenção para os guaranis que
viviam na região denominada Paraguai, entre os séculos XVI e XVII.
A projeção etnográfica para os tempos coloniais.
Os trabalhos etnográficos e
linguísticos desenvolvidos a partir do início do século XX têm possibilitado
uma maior aproximação do “modo de ser” guarani. As pesquisas pioneiras de Curt
Unkel (Nimuendaju) entre os apapocúva e os estudos mais sistemáticos de Alfred
Métraux, Egon Schaden e Léon Cadogan, que cruzam pesquisas etnográficas com
leituras mais apuradas das fontes coloniais, reuniram um volume extraordinário
de informações e abriram inúmeras linhas de pesquisas sobre os guarani atuais e
os do passado. A relativa conservação entre os guarani atuais de alguns traços
fundamentais do seu “modo de ser”, como o “profundo senso de identidade” e o
“discurso profético” (John Monteiro), tem facilitado os estudos comparativos e
o preenchimento de lacunas existentes na documentação referentes aos séculos
XVI e XVII. No entanto, alguns problemas metodológicos resultantes da projeção
de informações colhidas entre os guarani modernos para explicar os guarani do
passado vem sendo observados por etnólogos, etno-historiadores e arqueólogos.
Em primeiro lugar, a não observância das grandes alterações provocadas pela
conquista/colonização e pela evangelização no modo de vida dos povos indígenas.
Em segundo lugar, os dados etnográficos colhidos no século XX determinam a
leitura das fontes coloniais. O caso mais notável talvez seja o da busca pela
“terra sem mal”.
Dos guarani, ou “carios”,
descritos por Luís Ramírez e Ulrico Schmidl, na primeira metade do século XVI,
aos guarani apapocúva etnografados por Nimuendaju vai uma grande distância. O
ethos guerreiro e a antropofagia daqueles horticultores das cabeceiras do
Paraguai estão muito distantes daquele povo místico que caminhava na direção do
mar em busca da terra sem mal, guiado pelo velho pajé Guyrapaijú, que Curt
Unkel encontrou em 1907 no oeste de São Paulo. Além disso, a brutal queda da
densidade demográfica e a redução dramática da área de mobilidade, a
desarticulação do complexo político e militar e as marcas profundas deixadas
pelas experiências missionárias e reducionais, são algumas das mudanças de
grande impacto que se colocam entre os guarani de Ramírez e Schmidl e os de
Curt Unkel. As projeções retrospectivas, como demonstrou Anna Roosevelt para o
caso da Amazônia, que projetam o presente etnográfico para os tempos da
conquista, parecem desconsiderar essas mudanças. Supõe-se que “o padrão básico
do modo de vida indígena” não sofreu alterações significativas (Anna Roosevelt).
No entanto, como já salientou John Monteiro, dois aspectos centrais ao “modo de
ser” guarani, como a guerra e o canibalismo, tão destacados nos cronistas do
século XVI, desapareceram sob o efeito do cristianismo e da colonização.
Ao longo de quatro
conturbados séculos, repletos de experiências trágicas, muita coisa se perdeu,
muita coisa se adquiriu e outras tantas se mesclaram. Se a antropofagia ritual
foi abandonada, as migrações realizadas de tempos em tempos se mantiveram como
traço distintivo do guarani. Dois observadores, em épocas diferentes,
registraram esse fenômeno. Ulrico Schimdl, um soldado alemão a serviço da coroa
de Espanha, percebeu que “los sobredichos Carios migran más lejos que ninguna
nación que está en esta tierra en Rio de la Plata (...)”. Nimuendaju encontrou
os m’bya em 1921, num pântano às margens do Tietê, a treze quilômetros de São
Paulo, em meio a uma dramática migração. Miseráveis e extenuados tentavam
chegar ao mar para seguir viagem em direção ao leste. Não conseguindo demovê-los
da jornada, o etnólogo juntou-se ao grupo. A chegada foi uma dura decepção. Os
m’bya nunca haviam visto o mar. Diante da imensidão, o grupo se deparou com uma
terrível realidade: o acesso a “terra onde não mais se morre” era bem mais
difícil do que imaginavam. O guarani do século XVI migrava, o do começo do
século XX continuou migrando. O impulso às migrações, supomos, manteve-se
preservado, mas as motivações já não eram mais as mesmas.
Estes deslocamentos
constantes dos guarani no espaço suscitaram diversas interpretações. A mais
célebre delas é a da busca pela “terra sem mal”, um caso emblemático de
“projeção etnográfica”. A busca, nos tempos pré-coloniais, por uma terra boa,
não cultivada, uma terra econômica, foi associada, no século XX, com a busca
profética da “terra sem mal”. Foi Nimuendaju quem relacionou pela primeira vez
o material etnográfico, recolhido por ele próprio, entre os guarani da primeira
metade do século XX com os relatos dos cronistas e missionários dos séculos XVI
e XVII sobre os tupi do litoral brasileiro e os guarani do Paraguai. Nimuendaju
levantou duas suposições que se mostrariam de enorme fertilidade entre os
etnólogos: a da persistência das migrações, dos tempos coloniais ao século XX,
e o papel propulsor da religião nas migrações. As migrações tinham como
objetivo final alcançar o yvýmarãey
que, para a maioria dos pajés guarani que contatou, situava-se no leste, além
do mar (Nimuendaju). A busca pela “terra sem mal”, ou yvýmarãey, fazia parte do universo religioso tupi-guarani antes da
chegada dos conquistadores. Foi em busca deste paraíso da abundância que
saíram, segundo Nimuendaju, dos Andes e se dirigiram ao litoral do Atlântico e
a bacia do Prata:
Os fatos
históricos só fazem confirmar o que os próprios índios sempre me asseguraram: a
marcha para leste dos Guarani não se deveu à pressão de tribos inimigas;
tampouco à esperança de encontrar melhores condições de vida do outro lado do
Paraná; ou ainda ao desejo de se unir mais intimamente à civilização – mas
exclusivamente ao medo da destruição do mundo e à espera de ingressar da terra
sem Mal.
A ameaça do fim do mundo, o
cataclismo mítico das narrativas que Nimuendaju ouviu entre os apapocúva, era o
impulso fundamental que os impelia à “fuga para a Terra sem Mal” em busca da
“salvação”. As Lendas da Criação e Destruição do Mundo, publicada em 1914,
trouxe a público a cosmologia e a escatológica guarani. Revelou também o drama
cósmico de um povo que vivia a certeza do fim do mundo, do dia em que a terra
iria desmoronar e a espécie humana seria devorada por Jaguarový, o Jaguar Azul.
O mito de Guyrapotý, o pajé legendário que reuniu os guarani e os conduziu em
direção ao mar, era o fundamento das migrações místicas. Diversos pajés,
inspirados na bem sucedida migração de Guyrapotý, teriam conduzido, embora sem
os efeitos esperados, os povos guarani no século XX em direção ao leste. A
crença na “terra sem mal” teria sobrevivido à conquista, ao colonialismo e a
cristianização, e se mantido intacta entre grupos de guarani remanescentes.
A busca pela “terra sem
mal”, a grande descoberta etnológica de Nimuendaju, tornou-se um dos temas mais
importantes da etnologia e da antropologia indígenas. De qualquer maneira,
devemos observar que, apesar da força dos argumentos e da autoridade do
etnólogo que conviveu de maneira singular entre os guarani, a ideia mais geral
de que a busca pela “terra sem mal” tem como “mola propulsora” não a expansão
bélica mas a religião foi apresentada como “suposição”. Daí para frente o tema
ganhou vida própria e tornou-se, nos meios acadêmicos, o fundamento da
religiosidade guarani, um “dado objetivo” que, na avaliação de Cristina Pompa,
dispensa o exame das fontes. Nimuendaju tornou-se a própria fonte.
Alfred Métraux, na trilha
aberta por Nimuendaju, relacionou os dados etnográficos com as fontes coloniais
num estudo clássico sobre as migrações tupi-guarani. “Gracias a los mitos y a
las tradiciones recogidas em nuestra época, reconhece o antropólogo suíço,
sucesos oscuros, consignados em las narraciones de viajeros y misioneros de los
siglos XVI y XVII, adquieren hoy su verdadeira significación.”. Partindo dos
dados recolhidos por Nimuendaju entre os apapocúva e comparando-os com as
informações dos cronistas coloniais – Nóbrega, Thevet, Abbeville, Cardim, Yves
d’Evreux, para a costa brasileira, e Barco Centenera, Montoya, Lozano, Techo e
José Guevara, para o Paraguai – Métraux chegou a conclusão de que o mito da
terra sem mal não só era parte fundamental da estrutura religiosa dos guarani
do século XVI, como se conservou intacto entre os do século XX, como demonstrou
Nimuendaju. Estes fenômenos ocorreram tanto na costa brasileira como no
Paraguai, pois os tupi e os guarani “participaban de una misma tradición
cultural (...)”. O “antiguo Paraguay, habitado por los índios guaraníes”, foi
durante séculos a terra de eleição dos messias e profetas indígenas. Em nenhuma
região do mundo, informa Métraux, ocorreram tantos movimentos de libertação
mística.
A mitologia de algumas
tribos tupi-guarani “deja constancia de una tierra maravillosa, llamada “La
Tierra sin Mal”, a la cual el antepasado o el héroe civilizador se retiro
después de haber creado el mundo y traído a los hombres los conocimientos
esenciales para su supervivência.” (Métraux). A terra sem mal, da qual os
apapocúva tinham “una imagen muy precisa”, não era somente um lugar de
abundância e delícias, era também um refúgio eterno que estava à espera dos
homens quando Nanderikey retirasse uma das estacas que escora a terra e
precipitasse o fim do mundo. Profetas e messias eram os arautos deste paraíso e
se apresentavam “como los salvadores de su pueblo”. Para garantir adeptos para
as suas prédicas, que antecipavam as migrações, reivindicavam a qualidade de
deus e de emissário divinos. Os heróis civilizadores, benfeitores celebrados
nas narrativas míticas, serviam de modelos para os messias indígenas. A crença
no retorno destes heróis estava fortemente enraizada na tradição guarani, o que
amplificava os apelos dos messias (Métraux).
As tradições míticas e as migrações
na direção da terra sem mal são vistos por Métraux como um messianismo
genuinamente indígena, mas o impacto da colonização, e toda sorte de privações
e sofrimentos que se abateram sobre aos indígenas, exacerbaram entre eles o
desejo de evadir-se para um mundo “de reposo eterno e immotalidad.” A tese de
Métraux é que fermentadas sob determinadas circunstâncias históricas de crise
estes movimentos tendem a se multiplicar. A ameaça de esfacelamento da ordem
tradicional, verificada em vários momentos e em “diversos países”, leva a
agitação messiânica, que é a “expresión de la desesperación, más o menos
conciente.” O desespero predispunha os indígenas a ouvirem os messias e as suas
prédicas sobre o advento de uma idade de ouro. A fuga para a terra sem mal era
a solução oferecida por esses “profetas”.
Sobre a natureza pura ou
sincrética desses movimentos, Métraux fez a seguinte ponderação:
Si el mesianismo
guarani y tupinamba era debido a causas internas, sería, sin embargo, poco
inteligente ignorar los factores externos que han creado certamente un clima
propicio a la predicación mesiánica. Algunos movimentos han tenido un caráter
sincrético; otros, a pesar de ciertos prestamos del catolicismo, expresaban creencias
y valores puramente indígenas.
Assim, na América do Sul,
sacudida pelo colonialismo, se encontra, segundo Métraux, o esquema clássico do
messianismo: a crença num profeta ou homem-deus, o desenvolvimento de uma ação
que tende a apressar o advento da idade de ouro, a reação social e cultural
contra a civilização branca e, frequentemente, a formação de uma nova religião
sincrética. Os “mesías” guarani citados por Métraux foram Oberá, Yaguariguay,
Guiravera, Juan Cuara e Ñezú. Baseado nas narrativas de Barco Centenera,
Lozano, Montoya, Techo e Guevara, Métraux descreve essas personagens e as
linhas gerais dos movimentos por elas liderados. Oberá, que se dizia filho de
Deus, pregava a destruição dos cristãos e prometia liberdade a todos; Rodrigo
Yaguariguay se fazia adorar como Deus e a sua mulher como Virgem Maria, imitava
os ritos cristãos e organizou uma revolta contra os espanhóis; Juan Cuara era
um pajé do Guairá que reunia os índios para a resistência; Ñezú era venerado
como um Deus, abrigava índios fugitivos das reduções e sua autoridade provinha
da eloqüência e da reputação de grande feiticeiro; Guiravera se proclamava Deus
e organizou a resistência contra os jesuítas.
Ao debruçarmo-nos sobre a
documentação referente às rebeliões lideradas por esses chefes indígenas,
verificamos que o que existe em comum entre esses movimentos é o fato de que
foram liderados por chefes religiosos que se sublevaram contra a autoridade
espanhola e jesuítica, e mesclaram temas indígenas e cristãos. Esse é o único
traço messiânico, por assim dizer, encontrado nesses movimentos. Em nenhum
deles, por outro lado, encontramos uma convocação ou um apelo à imigração,
quanto mais uma fuga para a “terra sem mal”. Mas pelo fato dos guarani e os
tupinambá participarem de uma mesma tradição cultural, e entre os tupinambá
existirem evidencias de migrações, Métraux deduziu nas revoltas guarani um
chamado à imigração e à restauração de uma idade de ouro.
Associado ao tema da “terra
sem mal”, e inseparável dela, desenvolveu-se entre os etnólogos e
etno-historiadores no século XX o conceito de messianismo tupi-guarani. Desde
os estudos pioneiros de Alfred Métraux na década de 1920, o qualificativo
messiânico vem sendo atribuído aos movimentos de resistência protagonizados
pelos guarani contra, segundo a imaginação acadêmica, o poder colonial. Métraux
lançou no debate etnológico o tema do messianismo, mas foi Maria Isaura Queiroz
que lhe emprestou os contornos teóricos mais acabados num admirável estudo
sobre as manifestações do messianismo no mundo. Acompanhando a trajetória dos
termos messias e messianismo Maria Isaura os identifica na tradição bíblica e
nas lutas do povo de Israel. A conotação definitiva de messianismo, como a
promessa de uma idade de ouro que estaria ainda por vir como reparadora das
injustiças e sofrimentos deste mundo, só se formaria após o cativeiro da
Babilônia. Mas o que realmente interessa a autora é o emprego deste conceito
nos estudos históricos e sociológicos para designar, sob o qualificativo
messiânico, movimentos e lideres religiosos que carregaram promessas de
redenção. Maria Isaura encontra em Max Weber uma definição de messias: um líder
essencialmente carismático e dotado de poderes extraordinários.
Cristina Pompa ao fazer um
balanço dos estudos clássicos sobre a terra sem mal e o messianismo atribuído
aos tupi e guarani salienta as “preocupações totalizantes” de Maria Isaura ao
tentar inserir os movimentos tupi-guarani num quadro geral sobre o messianismo
no mundo. Seguindo uma classificação weberiana do “tipo ideal” a socióloga,
segundo Pompa, arrolaria num único rótulo, e a partir de um único horizonte
mitológico, os movimentos indígenas, “abstraído de qualquer contexto histórico
e lançado no universo abstrato do presente sociológico”. Se lermos com atenção
a apresentação que Roger Bastide faz do estudo e de algumas análises de Maria
Isaura, veremos que a abordagem sociológica da autora não é tão inflexível e
homogeneizadora como sugere Pompa. A obra busca, é verdade, abarcar os
movimentos de várias épocas e lugares numa “sociologia do messianismo”, mas é
também suficientemente flexível para não lançar os movimentos que destoam do
modelo no leito de Procusto. Destaco um ponto. No capítulo sobre os “movimentos
messiânicos em tribos primitivas” Maria Isaura diagnostica uma “efervescência
religiosa” na costa brasileira. Identifica os movimentos migratórios
“registrados por cronistas e jesuítas”, seguindo as ideias de Métraux, como
movimentos em busca da “terra sem mal”, do paraíso nativo - e neste ponto estou
de acordo com as críticas certeiras de Cristina Pompa no que se refere à
leitura forçada dos cronistas e jesuítas –, mas não estende a mesma análise aos
guarani do Paraguai. Com percepção aguçada, de quem leu a documentação, não
hesitou em apontar a singularidade dos movimentos guarani: eram contra o
crescente poder dos jesuítas, “e não uma fuga para Terra sem Males”.
Hélène Clastres é um caso a
parte. O mito da “terra sem mal” deve a ela, sem dúvida, sua entronização na
academia e sua popularidade. “Terra sem Mal” é uma obra tão empolgante quanto
imprecisa. Acumula um conjunto de belas interpretações que algumas vezes se
esvaziam em abstrações forçadas e deslocadas. Diversos pesquisadores apontaram
os exageros e as derrapadas da etnóloga, mas a beleza, o estilo conciso e a
originalidade da obra são evidentes. Ao mesmo tempo em que procura uma história
indígena autêntica, subordina esta história à comprovação de uma teoria. Hélène
anuncia na introdução que pretende mudar o “enfoque da história dessas
culturas”. Ao contrário de Nimuendaju e Egon Schaden, que reconstroem o
“passado dos tupis-guaranis a partir do que hoje se sabe, ou se acredita saber,
sobre sua religião (...), assumimos a postura inversa e optamos por retomar a
história a partir dos seus primórdios.” O fio condutor de Hélène é a terra sem
mal, “um tema muito antigo, cuja presença já era atestada no século XVI entre
todos os tupis-guaranis”, e que se verificou também entre os guarani do século
XX. Apesar de afirmar que o núcleo da vida religiosa dos tupi-guarani gravitava
em torno da “terra sem mal”, Hélène estabelece uma importante distinção entre
os tupi e os guarani:
Se a
religião dos tupis-guaranis foi mal compreendida, é que se confundiram, a nosso
ver, sob o termo único de “messianismo”, movimentos na realidade profundamente
diferentes, uns exclusivamente religiosos e que a partir de agora denominaremos
proféticos (a procura da terra sem mal), e outros unicamente políticos (a resistência
aos espanhóis e aos portugueses), movimentos cujo único ponto comum era terem caraís por atores principais.
De fato, não existem registros
de migrações entre os guarani, nos séculos XVI e XVII, em busca da “terra sem
mal”. O que não quer dizer que os movimentos/rebeliões tenham sido “unicamente
políticos”. Como veremos mais adiante, os levantes indígenas também tiveram um
forte conteúdo religioso, e foram orientados não apenas contra espanhóis e
portugueses, mas também, principalmente aqueles liderados pelos pajés, contra
os missionários. Mas se as revoltas dos guarani não tinham como objetivo a
terra sem mal, o que estaria em jogo? Para Hélène Clastres as revoltas
dirigidas pelos caraís representavam,
naquele momento, a oposição política aos caciques.
Mesmo não encontrando
evidências sobre a terra sem mal, Hélène sustenta que a busca por este paraíso da
abundância e da imortalidade era o eixo fundamental das crenças dos guarani. No
século XIX foram registradas migrações de “várias tribos”, desde o Mato Grosso,
“à procura da Terra sem Mal”. Estas migrações, livres de todo sincretismo,
deduziu Hélène, eram sinais inequívocos de que a tradição religiosa se manteve
intacta: “uma tradição religiosa que nem os maiores abalos conseguiram
enfraquecer.” Hélène fez exatamente aquilo que criticou em Nimuendaju e
Schaden, ou seja, reconstruiu o “passado dos tupis-guaranis a partir do que
hoje se sabe, ou se acredita saber, sobre sua religião”.
Parafraseando Roger Bastide,
o modelo dos movimentos messiânicos é o leito de Procusto dos pajés e caciques
guarani que se ergueram contra a presença dos jesuítas em suas terras. Um dos
ingredientes fundamentais do messianismo, aplicado aos movimentos indígenas
sul-americanos, é a busca da “terra sem mal”. Contrariando o modelo, os pajés
guarani nunca mencionaram ou prometeram nada que mesmo remotamente lembrasse o
suposto paraíso nativo. Outro aspecto indispensável, apresentado por Egon
Schaden, é a existência de uma comunidade que responda ao chamado do Messias, o
“portador do ideal coletivo”, e deposite em suas mãos a esperança de
restauração da antiga ordem desintegrada pelo “branco invasor”. Novamente os
movimentos indígenas do Paraguai mostram-se escorregadios. De um modo geral, os
levantes promovidos pelos pajés ou pelos caciques contrários a evangelização
não mobilizam a comunidade com promessas redentoras. Na maioria dos casos os
pajés estavam acuados e marginalizados, e usavam de ameaças para ter o apoio
dos índios contra os padres.
As rebeliões desencadeadas
por Guiravera e Ñezú, por exemplo, não cabem na fórmula messiânica. Para
encaixá-las nesta categoria devemos aparar algumas sobras incômodas, que acabam
por mutilar sua originalidade. Mas é possível sim identificar alguns aspectos
do modelo messiânico em alguns movimentos. Guirabera, por exemplo, se passava
por Deus e incitava os índios contra os missionários. Oberá, por sua vez,
afirmava sua origem divina e se proclamava salvador de seu povo. Essas são
características do que se convencionou chamar messianismo, mas isso não é
suficiente para caracterizá-los como messiânicos. Falta-lhes o elemento
central: a crença da comunidade na figura do redentor que colocará um termo no
estado de degeneração em que as coisas se encontram e instituirá uma nova ordem
de justiça e de felicidade. As revoltas dos pajés guarani, no Paraguai dos
séculos XVI e XVII, não correspondiam a essas expectativas. Destaca-se, no caso
famoso de Guiravera, o lado anti-colonial e místico do movimento, o lado
romântico, diria, mas esquece-se com facilidade que o pajé queria comer padre
Montoya, e que comeu um de seus ajudantes. Enfatiza-se que Yaguacaporo liderou
um “movimento de libertação mística”, e não estou afirmando que isto não
ocorreu, mas esquece-se que o pajé ameaçava os índios com figuras medonhas que
sairiam de seus esconderijos e se lançariam vorazmente sobre eles.
Nas fontes da América
espanhola dá época da conquista e do período colonial a busca por vestígios da
“terra sem mal” é tarefa frustrante. Não há registros sobre o suposto paraíso
guarani em nenhum dos relatos referentes à conquista do Paraguai e, o que
parece ainda mais intrigante, não há nenhuma referência na extensa documentação
jesuítica. Hélène Clastres reconheceu esta ausência.
Se a “terra sem mal” fazia
parte do universo religioso-cosmológico dos guarani e sua busca motivou as
migrações lideradas pelos pajés, que os conduziram a região inter-fluvial do
Paraguai e Paraná, porque ela não é mencionada em nenhum momento nas narrativas
da conquista, especialmente nas jesuíticas? A “terra sem mal” não só nunca foi
mencionada, como não foi usada pelos jesuítas para fins de conversão. Se ela
ocupava um lugar de destaque na cosmologia guarani, como sugerem etnólogos e
etno-historiadores, seria de se imaginar que os jesuítas a incorporassem ao seu
repertório de temas catequéticos, ou para desmistificá-la, ou para aproveitá-la
como estratégia de conversão, associando-a a equivalentes simbólicos como, por
exemplo, o tema do paraíso cristão. A “terra sem mal”, adaptada à linguagem da
conversão, poderia resultar em úteis paralelos com o paraíso, o éden, o céu,
temas recorrentes na predicação do cristianismo entre os guarani.
A etnologia no século XX
traduziu a expressão yvýmarane’ý,
encontrada no “Tesoro de lalengua Guarani”de Montoya, publicada em 1639, por
“terra sem mal”. Em Montoya, como já foi assinalado por Meliá, a expressão
significa “suelo intacto que no há sido edificado”. Esse era o sentido da
expressão na época da conquista. A tradução encontrada em Montoya não autoriza
sua equivalência por “terra sem mal”. No século XX, porém, Nimuendaju encontrou
entre os grupos guarani que contatou a expressão yvýmarãey com o significado de “terra sem mal”, o paraíso onde
desejavam ingressar. Tudo leva a crer que ocorreu uma alteração semântica. O
mais provável é que as prédicas dos missionários sobre a existência de um
paraíso podem ter se fundido as buscas pela terra boa e intacta, sobretudo
quando esta terra começou a tornar-se cada vez menos acessível. A desmontagem
do complexo político-militar guarani, o cerco à liberdade de movimento, o
encontro com a mística cristã e a marginalização desses povos após a dispersão
das missões e a criação dos estados nacionais, alteraram profundamente o seu
modo de ser. Parece plausível, dadas essas condições, a hipótese de que a busca
pela terra boa, não cultivada, cada vez mais distante, teria se transformado na
busca por um lugar místico, cujo acesso seria possível graças ao poder mágico
dos pajés. Bartomeu Meliá, distanciando-se dos modelos generalizantes e
adotando uma visão histórica, mais próxima dos documentos coloniais, associou
originalmente a mudança semântica de yvýmarane’ý
com a história colonial:
La
história semântica de yvýmarane’ý, de
suelo virgen hasta “Tierra sin Mal” probablemente no está desligada de la
história colonial que los guarani hás tenido que soportar. Em la busqueda de um
suelo donde poder vivirse modo de ser auténtico, los guarani pueden Haber hecho
cristalizar tanto sus antiguas aspiraciones religiosas quanto la conciencia de
los nuevos conflictos históricos. Yvýmarane’ý
se convertia en “tierra sin Mal, tierra física, como em su acepción antigua,
y a la vez tierra mística, después de tanta migración frustrada.
Não pode passar despercebido
também que em nenhum dos cronistas da primeira metade do século XVI – Luís
Ramírez, Ulrico Schimdl, Cabeza de Vaca e mesmo Ruy Diaz de Guzmán - os
“hechiceros”, ou os “messias indígenas”, foram mencionados com algum relevo.
Essas figuras que atormentaram os missionários e povoaram as narrativas
jesuíticas como grandes inimigos da evangelização não figuram nestes relatos
dos primeiros contatos da conquista espanhola. Um dado realmente curioso se
levarmos em conta as hipóteses de Métraux e os vaticínios de Hélène Clastres
sobre as migrações místicas lideradas pelos “messias”, que vinham desde os
tempos anteriores à conquista, em busca da “terra sem mal’.
A “terra sem mal” foi
durante décadas um dos mais fascinantes temas relacionados às culturas tupi e
guarani, tanto da costa brasílica quanto do Paraguai, dos séculos XVI e XVII.
Os estudos mais recentes e as pesquisas com a documentação colonial têm, no
entanto, levantado sérias dúvidas sobre a existência dessa espécie de paraíso
dos povos tupi e guarani. Cristina Pompa, recentemente, relendo a documentação
colonial, levantou sérios questionamentos sobre a existência do paraíso
tupi-guarani no que diz respeito à América portuguesa. No caso do Paraguai
colonial, como procuramos demonstrar, também não existe registros sobre a
“terra sem mal” na documentação jesuítica nem nos relatos dos cronistas dos
primeiros tempos da conquista. As descobertas etnográficas de Nimuendaju sobre
a “terra sem mal” entre os guarani, que contatou no início do século XX, foram
aceitas e projetadas para os povos tupi e guarani contatados pelos europeus nos
séculos XVI e XVII. A documentação colonial foi lida a luz da etnografia com
vistas a comprovar a tese da persistência dos movimentos migratórios em busca
do paraíso terrestre entre os guarani, desde os tempos anteriores as conquistas
europeias.
Talvez não seja exagero
supor que o tema da “terra sem mal” fosse tão estranho a um guarani do século
XVI e XVII quanto o canibalismo é para um guarani do século XX.
Bibliografia.
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