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segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

TRADUÇÃO E INVENÇÃO: Ruiz de Montoya, uma ponte semântica entre dois mundos.


TRADUÇÃO E INVENÇÃO: Ruiz de Montoya, uma ponte semântica entre dois mundos.



A tradução é uma espécie de ponte semântica que opera um fluxo de sentidos capaz de conferir legibilidade àquilo que, a primeira vista, não é dado a ler. Nos encontro culturais entre os europeus e os povos americanos, a tradução desempenhou um papel central. As narrativas jesuíticas lançaram uma ponte entre as duas margens do oceano, por onde as novidades e as estranhezas captadas, e decodificadas, fluíam por meio de cartas, relações e crônicas. Encapsuladas pela escrita, as informações cruzavam o atlântico para serem lidas na Europa. Entre o mundo da oralidade e o mundo da escrita, o suporte tecnológico da tradução era a palavra escrita. As experiências dos missionários nos confins do mundo cristão chegavam aos leitores europeus devidamente decodificadas. Das fronteiras ao centro da cristandade, a escrita transportava as experiências, as novidades e as curiosidades, que tanto interessavam aos leitores externos das cartas jesuíticas. António Ruiz de Montoya, jesuíta e missionário peruano, autor da “Conquista espititual hecha por los religiosos de la compañía de Iesus en las provincias del Paraguay, Parana, Uruguay e Tape” (1639), foi um mestre na arte da tradução e decodificação das culturas indígenas.

Montoya (1585-1652) chegou a Assunção, no Paraguai colonial, em 1612. Foi um dos mais importantes estudiosos do idioma guarani dos tempos coloniais e deixou um riquíssimo registro linguístico da língua desses povos (“Tesoro de la lengua guarani”). Antes dele, o franciscano Luiz Bolanõs já realizara estudos linguísticos na região e deixara um conjunto de anotações, que compunham a base do sistema gráfico guarani. Montoya se serviu das anotações de Bolanõs, levou-as adiante e as aperfeiçoou. Os estudos linguísticos de José de Anchieta sobre os guarani da América portuguesa, publicados em Coimbra em 1595, sob o título de “Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, inspiraram os jesuítas, Montoya em particular, da América hispânica. “Tesoro de la lengua guarani” (1639), elaborado quando Montoya dedicava-se aos trabalhos apostólicos da redução de Nossa Senhora de Loreto, é o primeiro dicionário da língua guarani, resultado de quase trinta anos de convivência do missionários com os guarani (MELIÁ). Todo o trabalho linguístico de Montoya tinha como fim a conversão dos indígenas ao catolicismo. Além disso, o missionário-linguista foi um excepcional cronista das experiências apostólicas e reducionais dos jesuítas no Paraguai. Protagonizou célebres embates contra “índios infiéis” (era assim que os jesuítas chamavam os índios que se opunham à evangelização), encomenderos e bandeirantes e foi um incansável defensor das reduções (CHAMORRO, 2007).


O missionário jesuíta se construiu no “trato das diferenças culturais”. A missão o empurrava para o confronto com a alteridade e exigia um (re)conhecimento, para si próprio e para o seu mundo de origem, deste novo universo que se abria à evangelização. Um destes confrontos ocorreu numa visita que Ruiz de Montoya, acompanhado do padre José Cataldino, fez à antiga Redução de Loreto. O missionário saiu percorrendo a região “á convidar á los índios á que se redujesen en poblaciones grandes”. Numa dessas “aldeias” conheceu o “grande cacique Taubici”:

“Llegamos á um  pueblo cuyo gobernador era un gran cacique, gran mago y hechicero y familiar amigo do demônio, chamado Taubici, que quiere decir, diablos en hilera ó hilera de diablos. Era muy cruel y con cualquier achaque hacia matar índios a su antojo(...)” (Conquista Espiritual, p.45).

Neste fragmento significativo da narrativa de Montoya surpreendemos o narrador empenhado em traduzir o outro. Seguro de si e do entendimento que tinha da língua guarani, o jesuíta não hesitou em traduzir o nome do cacique. Mas traduzir não se resume a encontrar sinônimos linguísticos ou equivalentes semânticos. Traduzir é uma maneira de ler a diferença, de enunciá-la. Dizer o outro, configurá-lo no interior de uma narrativa destinada a ser lida no mundo de origem do narrador, envolve sempre uma operação de tradução. Esta operação se dá tanto no nível mais epidérmico, da comunicação entre pessoas, em que a busca por correspondentes linguísticos caracteriza uma primeira aproximação e entendimento, quanto no nível mais profundo da interpretação cultural, dos sistemas de crenças e valores dos povos indígenas.

Mas traduzir o outro não é transformá-lo no espelho invertido do mesmo? Mirando o jogo de espelho criado por François Hartog para ler Heródotos, interrogo as narrativas jesuíticas para visualizar o papel da tradução na construção da alteridade, na elaboração de uma representação do outro como suporte para a conquista espiritual. Este princípio heurístico, que permite compreender e dar sentido ao que num primeiro momento parece incompreensível denominamos aqui de “retórica da alteridade, ou seja, uma operação de tradução que visa transportar o outro ao mesmo - constituindo uma espécie de transportador da diferença.” Sigamos então as reflexões de Hartog sobre as Histórias de Heródotos e a maneira como ele traduz para os gregos as diferenças culturais dos não-gregos. A diferença só é percebida e enunciada a partir do momento em que se reconhece existirem dois termos, digamos A e B, e que um é diferente do outro. E, “a partir da relação fundamental que a diferença significativa instaura entre os dois conjuntos, pode-se desenvolver uma retórica da alteridade própria das narrativas que falam do outro”. O narrador, elo entre os dois conjuntos, pertence ao grupo A e contará ao seu grupo, as coisas do grupo B. O problema do narrador então é tornar-se persuasivo, tornar sua narrativa crível, digerível. É aqui que situamos o problema da tradução. Como dizer o outro de maneira a ser compreendido pelos destinatários? Para traduzir a diferença, diz Hartog, o narrador tem a sua disposição “a figura cômoda da inversão”. Por este mecanismo, o outro se torna o inverso e não há mais A e B como termos próprios, mas simplesmente A e o inverso de A. “O princípio da inversão transcreve a alteridade tornando-a fácil de apreender no mundo em que se conta (trata-se da mesma coisa, embora invertida).”

Os jesuítas, mestres da tradução e da inversão, realizarão esta ponte semântica entre o velho e o novo mundo. O complexo universo narrativo jesuítico cria cenários, enredos barrocos, constrói personagens e distingue os inimigos e os aliados. Transforma a confusão e a implausibilidade do universo indígena, e do espaço que ele habita, numa ordem coerente, descritível e inteligível. Eis o papel da tradução: tornar legível o que não é dado a ler, dizer o indizível, nomear o desconhecido para criar um efeito de familiaridade.

Taubici, na linguagem da conversão, torna-se “diabos em fila”. O nome do cacique não é apreendido pelo que significa entre os guaranis, mas pelo que representa para a evangelização. Ele é o inverso, o contrário, o inimigo declarado e devidamente nomeado. À tradução do nome segue-se a descrição da sua natureza cruel, violenta, diabólica. Traduzir, neste caso, não é apenas verter do guarani para o espanhol. Traduzir é atribuir sentidos associados à experiência, é inventar. Taubici, traduzido por Montoya, torna-se outra coisa. O chefe indígena que lemos na “Conquista Espiritual” é uma invenção do jesuíta. Afirmar isso não é negar a existência de Taubici, nem a validade da tradução de Montoya. É inegável, no entanto, que Taubici, entre os guaranis, representava algo muito diferente. A tradução realiza-se num campo de disputas físicas e simbólicas. Montoya esta descrevendo o inimigo com os conhecimentos que possui dos indígenas, mas também com o repertório de significados que a luta de vários séculos do cristianismo contra as “milícias del abismo” legou aos jesuítas (Expressão criada pelo jesuíta Pedro Lozano). A tradução, numa situação como essa, é um ato político de negação.


A invenção do cacique diabólico pela escrita conquistadora, foi motivada por projetos políticos e religiosos, e fundada num querer, no logos ocidental, que percorre o mundo e o ordena a partir de um conjunto de saberes europeu. A invenção do outro, que no fundo é o exercício de uma dominação e um desejo de tradução, é um fenômeno de fronteira que visa trazer para o lado de cá o que está do lado de lá. Demonizar Taubici é domesticar sua natureza incompreensível. É trazê-lo para o campo de referências do jesuíta e poder explicá-lo. Podemos dizer, com Michel de Certeau, que se trata, de fato, de uma “hermenêutica do outro”. Os Jesuítas transportam para a América o aparelho exegético cristão nascido, neste caso, dos embates contra as supostas forças satânicas e do espírito de reforma que contaminou os aliados de Roma na luta contra a heresia protestante. A relação entre a Europa e o resto do mundo é mediada, assim, por uma atividade tradutora, que opera uma leitura do outro, decifrando-o. Os indígenas – homens, mulheres, crianças, velhos, caciques e pajés – que povoam as cartas e crônicas são personagens idealizados que se ajustam harmonicamente ou se chocam contra os trabalhos apostólicos. Personagens que cumprem um papel retórico na estratégia jesuítica que condenava “os vícios e os maus hábitos dos nativos quando queriam explicar o fracasso de uma determinada ação, e exortavam suas virtudes e inocência quando queriam demonstrar o sucesso de sua empresa evangélica” (EISENBERG). Mas esses personagens idealizados não são signos sem referente, não são criações do nada. São projeções/invenções jesuíticas elaboradas a partir do encontro/confronto com os indígenas.

A tradução, a serviço da conquista e da conversão, pode ser caracterizada como uma operação de redução do universo alheio aos signos religiosos e de comunicação dos conquistadores. Esta operação resulta amiúde na invenção do outro, isto é, na construção de sujeitos que flutuam numa região intermediária entre o que se vê e o que se crê, entre o que se tem e o que deseja.

Felizmente a escrita, verdadeira cápsula do tempo, registrou as experiências missionárias que, preservadas do efeito implacável do tempo, chegaram intactas até nós. Estava agora pensando sobre isso. Lendo uma edição antiga da “Conquista Espiritual” (em espanhol), do Montoya, que tenho comigo, pensava no privilégio que temos de ter um registro admirável como esse ao nosso alcance. Por um lado, o impagável prazer de ler as “aventuras” apostólicas barrocas, quase cinematográficas, das crônicas de Montoya. Por outro, a possibilidade de desfazermos os equívocos, ainda que bem intencionados, da tradução cultural e restituirmos ao cacique Taubici o seu nome.

Referências Bibliográficas.

CERTEAU Michel De. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
CHAMORRO, Graciela. Antonio Ruiz de Montoya: promotor y defensor de lenguas y pueblos indígenas. História Unisinos, 2007. Vol. 11, N° 2, maio/agosto de 2007.
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LOZANO, Pedro. História de la Compañia de Jesus de la Província del Paraguay. Madrid: 1754-55.
MELIÀ, Bartomeu. O guarani: uma bibliografia etnológica. Santo Ângelo/RS, Fundação Missioneira de Ensino Superior, 1987.
______. Los Guarani del Tape en la etnografia missioneira del siglo XVII. In: Segundo Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros. Anais. Santa Rosa, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Dom Bosco, 1977.
 ______. El Guarani conquistado y reducido. Biblioteca de Antropologia. Vol. 5. Centro de Estudos Antropológicos. Asunción: Universidade Católica, 1988.
 ______. La lengua Garaní en el Paraguay colonial. Asunción: CEPAG, 2003.
RUIZ DE MONTOYA, António. Conquista espititual hecha por los religiosos de la compañía de Iesus en las provincias del Paraguay, Parana, Uruguay e Tape. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.




sábado, 5 de dezembro de 2015

O DEMÔNIO NA AMÉRICA COLONIAL: A DEMONIZAÇÃO DAS LIDERANÇAS INDÍGENAS NOS DISCURSOS JESUÍTICOS (Província Jesuítica do Paraguai, Século XVII).

o demônio na américa Colonial: a demonização das lideranças indígenas nos discursos jesuíticos (Província Jesuítica do Paraguai, Século XVII).





Con razón es llamado el diablo mono de Jesucristo, Iesu Christi scimus, porque en realidad cuanto Jesuscristo para el divino culto y gloria y para eterna salud de sus amados hombres ha instituido o inspirado en su santo reino, tanto ha tirado a imitar o feamente remedar el diablo para establecer su reino y monarquia en la América, arrojado ya con ignominia de outras partes del mundo.




(Antonio Julián).







Quem tem alguma familiaridade com os textos europeus dos séculos XVI e XVII sobre o Novo Mundo, especialmente os textos religiosos, sabe que existe um laço indissociável entre o demônio e a conquista e colonização da América. Conquistadores e colonizadores viram nos costumes e nas práticas indígenas inconfundíveis manifestações diabólicas. Tropeçavam nos demônios em cada canto do Novo Mundo, mas não se davam conta de que eles mesmos o haviam trazido nas suas caravelas, nas suas crenças, na sua forma de lidar com a alteridade.

Os jesuítas eram a vanguarda ilustrada na arte de demonizar e de farejar demônios. O know hall trazido da Europa lhes habilitava a assumir essa posição e dar combates sem trégua àquilo que o jesuíta Antonio Julián chamou de monarquía del diablo na América. O demônio havia subjugado as populações ameríndias e por meio dos seus lideres espirituais exercia indecente tirania. A libertação dos “pobres” indígenas era a missão dos voluntariosos jesuítas.

O demônio funcionou como um verdadeiro princípio hermenêutico utilizado pelos religiosos para decifrar a natureza dos habitantes das Américas. Não há dúvidas também de que a presença do diabo em terras americanas legitimou amplamente as missões religiosas e as conquistas militares em nome da monarquia católica. Mas o demônio não pode ser reduzido nem a uma chave de leitura das culturas indígenas, nem a um mero instrumento de conveniência política e legitimação da conquista. Embora ele tenha sido utilizado para esses fins, sua presença no Novo Mundo é bem mais complexa. Fernando Cervantes advertiu convincentemente que este tipo de interpretação acaba por menosprezar “la sincera creencia de la mayoría de los contemporâneos en la autenticidad del demonismo.”

Vamos retornar, pelos caminhos das narrativas jesuíticas, ao Paraguai colonial e conhecermos um pouco mais de perto os combates dos soldados de cristo contra o inimigo da cristandade?

Os espetaculares combates apostólicos travados e narrados pelos jesuítas no Paraguai, entre os séculos XVII e XVIII, não foram apenas contra os antigos costumes indígenas e os terríveis feiticeiros (Missionários de diferentes ordens religiosas chamavam os líderes espirituais indígenas de feiticeiros. Utilizo conscientemente a mesma nomenclatura e os mesmos adjetivos empregados pelos missionários para destacar a forma como eles viam e se referiam aos indígenas). Por trás das borracheiras, da poligamia, do canibalismo, de toda sorte de vícios e das medonhas artimanhas dos feiticeiros, que escandalizavam os inacianos, insinuava-se o velho inimigo da cristandade: o demônio. Padres e feiticeiros, nas narrativas jesuíticas, são apenas instrumentos de uma guerra maior travada entre o bem e o mal, que no início da era moderna se deslocara da Europa para as geografias desconhecidas do Novo Mundo. A crença no demônio, e o conjunto de práticas e saberes que gravitavam a sua volta, era um traço fundamental da cultura religiosa europeia nos séculos XVI e XVII. O demonismo não era uma expressão exclusiva das crenças populares ou dos padres inquisidores, estava presente nas manifestações da dita “cultura popular” e na “cultura das elites” (Fernando Cervantes).

No século XVI uma nova ética cristã configurava-se na Europa, alterando a visão até então dominante sobre o demônio. O sistema moral tradicional baseado nos sete pecados capitais fora substituído pelo Decálogo. Decorrência direta desta mudança de atitude foi a concepção de idolatria, que foi alçada ao maior de todos os pecados que um cristão poderia cometer. Isso acarretou uma mudança de percepção da figura do demônio. John Bossy observou que o “Diabo, que era a imagem invertida de Cristo, o princípio personificado do ódio pelo semelhante, tornou-se a imagem do Pai, no centro da idolatria e, a partir daí, no centro da impureza e da rebelião.” O Concílio de Trento foi um marco decisivo nas sistematizações desta nova ética cristã, como no combate às idolatrias e ao demônio. 

O apelo cruzadístico contra as coortes demoníacas exigiu do pensamento erudito europeu a elaboração de um corpo doutrinário e tratadístico que ficou conhecido como demonologia. As origens da demonologia remontam a Santo Agostinho, que deu forma concreta ao demônio imaterial do velho testamento. Ao longo da idade média a demonologia foi se desenvolvendo e sistematizando um conjunto de saberes com a produção de obras importantes como o “Fornicarium”, de Nider, e o “Malues Maleficarum”, de Sprenger e Kramer. No século XVI o conhecimento sobre o diabo alcança o requinte com as obras “Démonomanie”, de Jean Bodin, e “Daemonologie”, de Jaime VI Stuart (Laura de Mello e Souza). Todo esse repertório de crenças e tratados demonológicos atravessou o oceano com os conquistadores, principalmente com as ordens religiosas, e desempenhou um papel central na conquista do Novo Mundo (Fernando Cervantes notou o descompasso desconcertante entre a importância cultural do tema do demonismo como um traço central da cultura europeia da época dos descobrimentos e o descuido dos pesquisadores de hoje em relação ao tema). A Companhia de Jesus, imersa neste contexto, desembarcou na América imbuída desta nova ética. Treinados na arte de rastrear demônios, os padres chegaram munidos de um vasto repertório de reconhecimento do inimigo, composto de ações, descrições e ilustrações, disponíveis em sua cultura. Afinal, eles vinham de um mundo permanentemente em luta contra as forças do mal. As atividades de caça às bruxas e os manuais demonológicos lhes davam um know-how indispensável à árdua missão que na América lhes aguardava. Pertencente à tradição demonológica dominante no seio da qual fora fundada, a Companhia cultivava no seu interior os temas demoníacos (Beatriz Vitar).


A “descoberta” da América, para surpresa dos europeus, revelou que o império do diabo era muito mais vasto do que se imaginava. A conquista dos povos americanos, além de “revigorar os símbolos do maravilhoso, foi capaz de fortalecer a demonologia europeia”. Relacionada à alteridade americana, a demonologia, ou o olhar demonológico, incidiria sobre as práticas culturais indígenas, e mesmo sobre a natureza americana (Laura de Melo de Sousa). O reconhecimento da idolatria como mais grave pecado de um cristão e, sobretudo, o enlace teológico entre a idolatria e o demônio, criou as condições para o desenvolvimento de uma demonologia americana que definiu as manifestações religiosas indígenas, ou as idolatrias indígenas, como de inspiração satânica. A expressão teológica melhor formulada em terras americanas sobre esse tema encontra-se na obra do padre Acosta. No final do século XVI, Acosta (2008) expressou uma curiosa tese: derrotado no Velho Mundo, o diabo “acometio las gentes mas remotas y barbaras procurando conservar entre ellas la falsa y mentida divindad.” Antonio Julián, jesuíta catalão que desenvolveu trabalhos missionários na Colômbia, sistematizou este ponto de vista numa obra intitulada “Monarquía del diablo en la gentilidad del Nuevo Mundo Americano”. Inspirado na “História Natural”, de Acosta, a quem chama de “el buen veijo Acosta”, Julián constatou que:

“Harto peor que la maliciosamente fingida monarquia del Rey Nicolás en Paraguay, fue la del diablo en toda la América. Ya soberbio desde sus princípios Lúcifer contra Dios, ambicioso de su gloria y envidioso de los divinos honores, procuro emposesarse de todo el orbe y esperciendo negras sombras en todas las naciones, ser adorado por dios. Introdujo la detestable idolatria y con innumerables superticiones solicitó para sí los cultos, inciensos y sacrifícios debidos solo a nuestro Dios verdadero. Así reino por tantos siglos en Asia, África y Europa llevando míseramente ciegas y alucinadas las gentes, de suerte que a excepción de la pequeña porción del pueblo escogido de Dios, todas la demás naciones del mundo tributaban adoraciones y culto as demônio (...).”

A tese do padre Julián era de que a conquista da América havia sido um capítulo fundamental na luta de Cristo contra o diabo. Antes da chegada dos espanhóis, o diabo havia instaurado uma terrível tirania entre os povos americanos, como estratégia para conquistar o poder em todo o mundo:

“Vio el diablo que no podría estar su reino con el de Dios, ni subsistir ya su monarquia con la que se levantaba y florecía de jesucristo en estas tres partes eel mundo. Qué hizo? Fue a entablarla y promoverla en país donde estuviera escondido y dominara a su salvo y ejercitara su tirania, sin que ni Papa, ni Obispos, ni sacerdotes de Jesucristo, ni prícipes católicos, ni cristiano alguno lo supiera ni pudiera rastrearlo. Se fue a la América a fundar su imperio, a levantar su monarquia remedando al reino de Jesuscristo (...).”


Na América, o diabo mandou erguer templos, ordenou sacerdotes, consagrou pontífices, instituiu sacramentos, exigiu sacrifícios, preescreveu “ritos y cereminias para misas, matrimônios, entierros, rogativas publicas, penitencias y por fin (...), con sacrílega imitación y ficciones diabólicas entabló su monarquia”.

A propagação e o estabelecimento do reio de Deus na América, prossegue Julián, exigiam a destruição do reino do diabo. Para isso, o “Omnipotente” valeu-se “de la piedad, armas y valor de los españoles”. Graças à conquista e as armas espanholas, que deus empregou para varrer o demônio da terra, os templos do diabo foram destruídos e os índios libertados da diabólica escravidão.


Nas vastas regiões da América, denominadas de Paraguai nas cartas jesuíticas, os padres não se depararam com a idolatria, mas os sinais inconfundíveis da presença do senhor das trevas foram encontrados em abundância. Segundo o padre Ruiz de Montoya, “en todas as partes procura el demonio remedar el culto divino con ficciones y embustes”, e ainda que a “nacion guarani há sido limpia de ídolos y adoraciones”, o demônio encontrou “embustes com qué entronizar á sus ministros, los magos y hechiceros para que Sean peste y ruína de las almas”. Reinava naquelas “selvas incultas” uma vassalagem diabólica. Era na figura dos pajés que o demônio se manifestava de maneira mais evidente entre os guarani. E se no Paraguai não foi necessário uma gigantesca empresa de extirpação das idolatrias, foi preciso energia proporcionalmente semelhante para desmontar a resistência dos pajés à evangelização. Descritas como “ministros do demônio”, estas personagens realizavam a ponte por onde a alma dos índios transmigrava para os domínios do diabo (André Thevet foi direto ao dizer que: “Esse povo assim afastado da verdade …mantém-se ainda tão fora da razão que adora o diabo, por meio de seus ministros, chamados pagés”).

Era por meio de uma crueldade extremada e de poderes sobrenaturais, advindos de sua estreita relação com o demônio, que os feiticeiros controlavam as parcialidades indígenas e estimulavam a revolta contra os missionários. Padre Antonio Sepp exemplificou muito bem a familiaridade com o demônio, ao descrever as artimanhas de um feiticeiro chamado “Moreyra, mestre de arte mágica e cruel discípulo do gênio negro”. O feiticeiro era “laureado doutor na Escola de Lúcifer de infames mentiras, e frustrava toda a obra do nosso padre Antônio Bohm”. Neste combate entre os soldados de Cristo e os feiticeiros locais, foi elaborado um conjunto de representações que visava deslegitimar o poder por eles exercido. Erigidos à qualidade de arquinimigos da cristandade, foram habilmente associados à figura do demônio, que teria tornado os feiticeiros seus vassalos com o propósito de desestabilizar os trabalhos apostólicos. Para Acosta o diabo tinha os seus sacerdotes no Novo Mundo, “mil gêneros de profetas falsos”, através dos quais pretendia “usurpar para si la gloria de Dios y fingir con sus tinieblas la luz”. Assim, a contaminaión satânica y la inmundicia eran monedas corriente en la religión indigena.” O incorrigível “desejo mimético” de satanás era o responsável pelas imitações dos ritos cristãos na América, conduzidas pelos seus discípulos (Cervantes).

Assim que chegaram ao Paraguai, os padres encontraram “aquella gente muy abandonada, y como embrutecida, tan entregados al servicio del demonio, que ya no había nada de bueno en ellos”. Quase diariamente, garante padre Zurbano, “se les presenta el demonio personalmente en figura humana y, viviendo ellos tan embrutecidos fácilmente obedecen a sus terribles insinuaciones y se dejan engañar miserablemente” (Maeder, 1984).


Roque González, que adentrou territorios indígenas nunca antes visitados, travou duras batalhas com o demônio e os seus “ministros”. Desde as primeiras entradas nas terras dos guaikuru teve provas da familiaridade dos indígenas com o maligno. Nas diversas incursões que fez pelo Paraná e Uruguai, onde o império de satanás parecia ser ainda mais forte, padre Roque literalmente tropeçava no demônio. Na carta que envio ao provincial Pedro Oñate, informou que em todos os “pueblos” em que chegava declarava que seu intento era “darles a conocer a su dios, y criador” para que o adorassem e revenciassem. O demônio, porém, “temeroso de salir de su antigua posesion procurava todos los estorvos possibles moviendo los animos de los yndios contra mi (...)”. O inimigo erguia obstáculos e usava os índios para impedir sua entrada nos seus domínios. Por vezes, era na insolência de um cacique que lhe impedia o passo:

“En todos estos pueblos, les iba declarando mi intento, que era darles a conocer a su Dios y Criador, para que le adorasen y reverenciasen: pero el demonio temeroso de salir de su antigua posesión, procuraba todos los estorbos posibles, moviendo los ánimos de los indios contra mí, y en particular me dijo un cacique con mucha arrogancia: Cómo, Padre, te has atrevido a entrar por aquí, adonde no ha puesto sus pies español ? (Blanco, 1929).”

Mas a presença dos padres intimidava os demônios. Se antes eles “apparezian a los yndios”, agora já não se atreviam mais. Roque disse ter ouvido de um índio que “despues q los padres vivieron aqui no se nos ha aparezido mas el demonio (...)” (Documentos para la historia argentina, 1929).

A luta diária e incansável do padre Roque contra o demônio, seus ardis e mil disfarces era, na verdade, um prolongamento de uma batalha mais antiga, travada no velho mundo, e que chegara ao paroxismo no século XVI. Roque González era, porque não, um reforço valioso da Companhia contra as armadilhas e os disfarces locais, indígenas, do demônio no Paraguai. Se os jesuítas adaptavam-se as particularidades de cada cultura para melhor comunicar sua mensagem, o demônio era mestre nesta arte. Padre Montoya conheceu bem os seus disfarces. As reduções eram frequentemente assombradas por demônios travestidos de missionários, de Nossa Senhora, e de muitas outras formas, que vinham para confundir e enganar os índios, atrapalhar a missa ou tentar a pureza dos padres, oferecendo-lhes algumas mulheres, por meio dos caciques. Em Nossa Senhora de Loreto, por exemplo, padre Montoya foi surpreendido por três demônios vestidos em sotainas pretas, transfigurados no padre João Vaseo, morto há cinco anos, que tentavam entrar na igreja. Outro caso curioso foi o de um índio que nunca ia à missa, nem nos dias de trabalho, nem nos dias de festa. Num domingo, estando todos ouvindo sermão e missa, “solo este indio se quedó en su granja”. Começaram então os demônios “á dar balidos como de vaca, bramar como toros, mugir como bueyes e imitar las cabras”. Espantado o pobre índio se recolheu em sua casa, sem atrever-se a sair. À tarde, quando algumas pessoas vieram a sua casa, o índio contou o ocorrido. Andando pelas plantações encontraram várias pegadas de animais e uma pegada que parecia ser a de uma criança recém nascida. Viram também que toda a plantação estava amarelada, como se tivesse sido chamuscada pelo fogo. No domingo seguinte aconteceu a mesma coisa. Montoya aconselhou que fincassem cruzes no lugar e aspergissem tudo com água benta. Mas não adiantou. No domingo os ruídos voltaram. Montoya resolveu ir pessoalmente ao lugar, e próximo de um arroio viu um grande “tropel de gente” atravessando as águas, fugido do demônio que investia contra aquela casa. Foi aí que Montoya foi informado da falta do índio. Revestiu-se então de sobrepeliz, armou-se de água benta e, em nome de Jesus e de Santo Inácio, ordenou que o demônio fosse embora para sempre daquele lugar. “Puse, conta-nos o intrépido missionário, en un vaso cerrado un pedazo de la sotana de San Ignácio, y nunca más volvió em demonio. Yu me llevé aquel indio al pueblo, hizo una buena confesion, y en delante fué muy ejemplar Cristiano”. As aparições demoníacas na “Conquista Espiritual” servem sempre para algum tipo de lição ou de edificação.

Montoya pintou um quadro assombroso das reduções, açoitadas por multidões de demônios multiformes. A única salvação dos índios eram os destemidos missionários, a quem os demônios temiam. “A Conquista Espiritual” narra uma luta diária e incessante contra o diabo e seus “ministros”.

Ao considerar os poderes mágicos dos pajés e as tradições que eles carregavam como embustes e fábulas, os padres esvaziavam a espiritualidade guarani de qualquer substância e a reduziam a um simulacro do cristianismo.  A falsidade da religião decorria de sua fonte de inspiração, o demônio, mestre da mentira e dos embustes. Não que a natureza dos habitantes do Novo Mundo fosse diabólica. Na verdade, os indígenas, distantes geográfica e espiritualmente do mundo cristão, tornavam-se vítimas inocentes, presas fáceis dos demônios migratórios, fato que asseguraria a reversibilidade de suas práticas e justificaria os trabalhos apostólicos. A culpa, como bem observou Estenssoro, foi deslocada do livre-arbítrio dos índios para o demônio, o “único inventor possível” dos ritos e da oposição dos pajés à evangelização. Não existia, portanto, uma resistência dos índios ao cristianismo, mas uma “luta direta entre Deus e o diabo” (Estenssoro).

Estou com isso sugerindo que, sem o demônio, a conquista da América não passaria de uma bem sucedida campanha militar contra povos selvagens e antropófagos. Sem o demônio a colonização não teria o mesmo apelo cruzadístico, e os padres teriam um papel bem menos importante no controle espiritual do Novo Mundo. Por um lado, a presença do diabo e seus poderes malignos faziam parte do esforço hermenêutico jesuítico para entender e ao mesmo tempo negar o universo das crenças e práticas indígenas, por outro, justificava e reforçava perante os seus pares e as autoridades europeias - para quem as narrativas jesuíticas eram endereçadas - a necessidade da presença dos padres na América.




Referências Bibliográficas.


ACOSTA, José de. De Procuranda indorum salute. Madri: CSIC, 1984.
_______________.  Predicación del Evangelio en las Índias: estudio preliminar y edición del P. Francisco Mateos. Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes.
_______________. Historia natural y moral de las Indias: En qve se tratan las cosas notables del cielo, y elementos, metales, plantas y animales dellas y los ritos y ceremonias, leyes y gouierno y guerras de los Indios. Barcelona: 1591. Disponível na Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes.
AQUINO, Tomás de. Suma teológica VII. São Paulo: Loyola, 2005.
BLANCO, José Maria. História documentada de la vida y gloriosa muerte de los padres Roque González de Santa Cruz, Alonso Rodríguez y Juan Del Castillo de la Compañia de Jesús Mártires del Caaró e Yjuhí. Buenos Aires: Sebastián de Amorrortu, 1929.
BOSSY, John. A Cristandade no Ocidente. Lisboa: Edições 70, 1990.
CERVANTES, Fernando. El Diablo en el Nuevo Mundo. Barcelona: Herder, 1996.
DOCUMENTOS PARA LA HISTORIA ARGENTINA. Tomo XIX. Iglesia. Cartas Anuas de la Província dela Paraguay, Chile e Tucumán, de la Compañia de Jesus (1609-1614). Buenos Aires: Talleres S. A. Casa Jacobo Peuser, 1927.
ESTENSSORO, Juan Carlos. O símio de deus. In. NOVAES, Adauto. (org.) A outra margem do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
JULIÁN, Antonio. Monarquia del Diablo en la gentilidad del Nuevo Mundo Americano. Santafe de Bogotá: Instituto Caro y Cuervo, 1994.
MAEDER, Ernesto. Cartas Anuas de la Provincia Jesuítica del Paraguay (1641- 1643). Resistência, Chaco: Instituto de Investigaciones Geohistoricas/ Conicet, 1996.
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

ENTRE A LEMBRANÇA E O ESQUECIMENTO: O DESCONCERTANTE RITUAL DE UMA VELHA MORADORA DE RUA DE PORTO ALEGRE.

ENTRE A LEMBRANÇA E O ESQUECIMENTO: O DESCONCERTANTE RITUAL DE UMA VELHA MORADORA DE RUA DE PORTO ALEGRE.




“Mi memoria es como vaciadero de basuras”.
(Funes el memorioso – Jorge Luis Borges).

“O esquecimento das coisas é minha válvula de escape. Esqueço muito por necessidade”. (Clarice Lispector).



Em 2004 eu viajava toda semana para o Rio Grande do Sul. Saía de Florianópolis a meia noite e desembarcava na rodoviária de Porto Alegre às seis da manhã. Matava um tempo por ali, tomava um café, lia um jornal, e dali me dirigia para a UFRGS. A aula começava às oito horas. Eram tempos de vacas magras: carga horária reduzida por conta do afastamento parcial, sem bolsa de pesquisa e as despesas semanais com as viagens. Uma vez ou outra, quando conseguia sair um dia antes de Florianópolis, ficava na casa de uma amiga querida (que nos deixou muito cedo) que morava na Borges de Medeiros. Acordava cedo, tomava um chimarrão com a Claire, e pegava o ônibus para a UFRGS na esquina da Borges. A Clér, como eu a chamava, acordava cedo só para tomarmos mate e conversarmos. Era uma amiga de muitos anos, de Santa Maria. Nos conhecemos em 1989. Ela estava sentada na escadaria do prédio onde morava, na Presidente Vargas, lendo Guimarães Rosa e tomando chimarrão. Eu passei, cumprimentei, vi a capa do livro, sentei, ela ofereceu uma cuia, ficamos conversando e nos tornamos grandes amigos.

Numa dessas manhãs de julho de Porto Alegre, geladas e que o sol demora a aparecer, no encontro da Borges com outra rua que não recordo o nome, me deparei com uma cena inesperada. Enquanto esperava pelo ônibus, fui até a esquina, para me movimentar e espantar o frio, e vi que uma senhora de uns 60 anos, que morava na rua, acabara de acordar. O lar improvisado era aquela esquina, em frente a uma padaria. Ela se abrigava do frio num canto de parede, que fazia um L. A situação por si só chamou minha atenção: uma senhora de cabelos brancos, envelhecida pela dureza da vida na rua, morando numa esquina. Mas o que realmente me fez ficar ali, imóvel e em silêncio, assistindo a cena, foi a maneira como ela vivia aquela situação. Quando me aproximei, ela estava acordando. Espreguiçou-se, tirou uma tira de pano de dentro de um plástico e amarrou os cabelos. Depois, pegou de dentro de um saco maior uma pequena bacia, encheu de água (que carregava numa garrafa pet de coca-cola), e lavou o rosto e a nuca. De dentro de outro saquinho de plástico tirou uma escova e escovou os dentes. Enxaguou a boca e cuspiu na bacia. Depois de guardar a escova e secar o rosto com uma toalha velha, tudo com muito jeito, jogou a água da bacia numa boca de lobo ao pé da calçada.

Meu ônibus passou. Fiquei ali, observando à distância. Feita a higiene pessoal, a senhora começou a arrumar a “cama”. Eram dois jogos de papelão, um lençol gasto e um cobertor velho. Primeiro ela recolheu o lençol e o cobertor, sacudiu para tirar o pó, dobrou e os guardou bem arrumados dentro de sacos plásticos. Lá se foi outro ônibus. Depois, bateu os papelões, dobrou e os colocou debaixo dos sacos. Fazia isso com um cuidado de admirar. Eu nunca tive com as minhas coisas o cuidado e o capricho que ela tinha com as dela. Limpava, dobrava e guardava as partes da “cama” como se estivesse na sua casa. Tudo arrumado, e devidamente ensacado, ela pegou uma vassoura velha pequena e varreu o “quarto”, arrastando o lixo para o canto da calçada. Guardou a vassoura junto com os pertences e alcançou uma latinha de leite ninho. Dentro, pelo que pude ver, guardava pontas de cigarro e fósforos. Apanhou um cigarro, bateu contra o fundo da lata, acendeu e deu uma bela tragada, sentada no degrau da escada ao lado da padaria. Fez aquilo, com calma ritualizada, como se estivesse na varanda de sua casa relaxando depois de uma bela faxina. Terminou o prazeroso cigarro, levantou, colocou os sacos nas costas, pegou uma bengala (um cabo de vassoura) e saiu não sei pra onde.

A habilidade no manejo dos pertences e os movimentos quase coreografados sugerem que ela estava habituada àquela rotina. A imagem que me veio à cabeça foi a do vagabundo Carlitos: a fidalguia esculhambada, os gestos corteses, a educação refinada, a ponta de cigarro retirada de dentro de uma lata de sardinha (cigarreira improvisada) e as tragadas elegantes sentado à beira da calçada, como se estivesse num salão nobre degustando um belo charuto. Existe dignidade na pobreza, nos dizia o adorável vagabundo. A elegância não tem pedigree nem endereços caros. Acho que foi isso que me encantou naquela senhora.

Fui até a padaria, pedi um café e perguntei sobre a senhora para a moça que atendia no balcão. “Ela faz isso todos os dias”, disse com certa indiferença. “Mora aqui há algum tempo. A noitinha ela volta para dormir”. Cheguei bem depois de a aula ter começado. Fiquei imaginando o retorno dela à esquina da padaria. Faria tudo do mesmo modo, ritualisticamente? Provavelmente.

Duas semanas depois me hospedei de novo no apartamento da Clér. No dia seguinte, bem cedo, desci e fui até a esquina. Lá estava a velha senhora fazendo tudo do mesmo jeito. Acho que vi a cena se repetir umas três vezes. Depois disso nunca mais tive notícias da caprichosa moradora de rua. Perguntei para conhecidos que moravam naquela parte da cidade. Nada. Não sei o que aconteceu com ela. A Clér mudou-se para a cidade baixa e as aulas na UFRGS terminaram. Fiquei um bom tempo sem voltar a Porto Alegre. Nunca mais passei por aquela esquina da Borges. Mas tudo está tão vivo e perfeitamente preservado na memória que parece que foi ontem que avistei a velha senhora. A aula? Embora sempre muito proveitosas, não tenho a menor recordação do que foi tratado naquele dia. A memória é assim, seletivamente caprichosa. Retém, até nos pormenores, o que nos foi, e continua sendo, significativo. Lembro-me do rosto inclinado da Clér, com os cabelos para trás das orelhas, lendo Guimarães. Lembro-me da forma como a senhora batia o pó do papelão na sarjeta, conferia se estava limpo, voltava a bater e checava de novo, com cara de insatisfeita. A expressão do rosto é inesquecível. Ela não tinha cara de tristeza, de dor, nem aqueles trejeitos que caracterizam alguns moradores de rua. Era calma, serena, discreta, e elegantemente resignada.

A sequência de cenas, ritualizadas e ricas em detalhes, me fez lembrar o Nietzsche (da Segunda Consideração Intempestiva). Nós seres humanos nos diferenciamos dos animais por que possuímos a capacidade de lembrar e de esquecer. A lembrança e o esquecimento nos humanizaram. Para aquela senhora, a lembrança era uma necessidade para manter a humanidade, certa dignidade. Lembrar-se, ainda que mecanicamente, de detalhes de uma vida passada, com certo conforto, dos cuidados com uma casa e com a higiene pessoal, de uma humanidade que teimava em sobreviver dentro dela, era uma forma de não sucumbir à dureza e brutalizar-se de vez. Mas talvez para ela, o esquecimento fosse ainda mais importante. As lembranças de tudo o que perdeu, de tudo que ficou para trás, das pessoas queridas, sem uma boa dose de esquecimento, poderiam ser insuportáveis, opressivas e impedir que ela seguisse em frente. Lembrar é importante, como bem disse Nietzsche, mas esquecer é fundamental. Nós vivemos porque esquecemos, não por que lembramos. O esquecimento, para Nietzsche, é como uma força ativa e libertadora que permite que nos desvencilhemos das decepções e do peso negativo do passado, que nos permite viver no presente sem as amarras que nos prendem às experiências traumáticas do passado. Imagine se, tal como “Funes, o memorioso”, do Borges, não pudéssemos esquecer as dores, as perdas e as decepções. A vida seria impossível. Seria um estado de permanente insônia! No conto de Borges, Ireneo Funes, um jovem uruguaio de 19 anos desenvolveu, depois de sofrer um acidente de cavalo, prodigiosa e assombrosa capacidade de lembrar-se de tudo, detalhadamente, por mais distante no tempo que as experiências estivessem. Funes era incapaz de esquecer. A incontrolável capacidade mnemônica era um fluxo incessante de informações que não o abandonava. Funes “sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de mil e oitocentos e oitenta e dois e podia compará-los na lembrança com as listras de um livro espanhol encadernado que vira somente uma vez e com as linhas da espuma no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho”. Prisioneiro da poderosa, minuciosa e infalível memória, Funes era incapaz de pensar, pois “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”. E no prodigioso mundo de Funes “não havia senão pormenores, quase imediatos.” Incapaz de esquecer, Funes era infeliz, atormentado e paralisado pela hipertrofiada capacidade de memorização (e paralisado da cintura para baixo, depois da queda do cavalo). Embora não tenha a intenção de adentrar nesta discussão, as aproximações entre Borges e Nietzsche parecem-me evidentes. Para Nietzsche, a felicidade estava associada ao esquecimento: “Nas menores como nas maiores felicidades é sempre o mesmo aquilo que faz da felicidade felicidade: o poder esquecer ou, dito eruditamente, a faculdade de, enquanto dura a felicidade, sentir a-historicamente. Quem não se instala no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa de vitória, sem vertigem e medo, nunca saberá o que é felicidade e, pior ainda, nunca fará algo que torne outros felizes” (Segunda Consideração Intempestiva).

A memória e, sobretudo, a boa capacidade de memorização, é sem dúvida uma dádiva. Mas é o esquecimento que nos permite dormir, viver, sorrir, experimentar momentos de felicidade e seguir em frente. Imagine a nossa moradora de rua acometida pelo mal de Funes?

Alguém poderia, legitimamente, cobrar-me uma visão mais social e menos filosófica da condição daquela senhora. Leitores com uma sensibilidade mais à esquerda (não exclusivamente) poderiam ver ali um fenômeno típico da exclusão capitalista, um efeito tardio das políticas neoliberais, etc. Não foi o meu caso. Meu olhar não foi social, vitimizador ou de pena. Não foi um olhar redentor, nem cristão, nem marxista, mesmo porque eu não tinha paraísos a oferecer, ou uma saída segura a prometer. Acho que era ela quem me apontava uma saída. Ela tinha algo mais importante a me dizer do que eu a ela. 

sábado, 29 de agosto de 2015

A BUSCA DOS GUARANI PELA "TERRA SEM MAL": UMA INVENÇÃO DA ETNOGRAFIA? (Um Estudo Sobre os Guarani do Paraguai Colonial - Séculos XVI e XVII).

A BUSCA DOS GUARANI PELA TERRA SEM MAL: UMA INVENÇÃO DA ETNOGRAFIA? (Um Estudo Sobre os Guarani do Paraguai Colonial - Séculos XVI e XVII).



Uma versão mais completa desse texto, com notas explicativas e referências bibliográficas, foi publicada na Revista Interseções (Revista de Estudos Interdisciplinares), da UERJ.





Introdução: a “terra sem mal” e a metafísica religiosa dos guarani modernos (séculos XIX e XX).

A busca dos povos guarani pela “terra sem mal” é, desde os trabalhos de Curt Unkel (Nimeundaju), um dos temas mais fascinantes e dramáticos da etno-história dos povos tupi-guarani. Encerra, a um só tempo, uma recusa profunda e melancólica do mundo, face à sua existência na terra imperfeita (não divina) e às pressões da sociedade que os cerca, e a projeção de um ideal que se mostrou inalcançável. Ideal de fundo cosmológico, catalizador de um desejo coletivo que se traduz num nomadismo existencial em busca da imortalidade. As migrações em busca da “terra sem mal”, no século XX, são fundadas numa profunda metafísica religiosa. Os guarani são seres do devir, orientados por um discurso mitocosmológico que se realiza numa escatologia apocalíptica, desejável e inevitável, embora sempre adiável.

Em 1921 Nimuendaju surpreendeu um grupo m’bya próximo da cidade de São Paulo em meio a uma migração em busca da “terra sem mal”, supostamente situada no leste, além do mar. Nimeundaju seguiu com o grupo durante três dias até alcançar a Praia Grande, a sudeste de Santos. Chegaram à noite, sob forte chuva, e não conseguiram avistar o mar. “Mas, pela manhã, registrou o etnólogo, a chuva parou e o sol se levantou radiante e esplendoroso do mar. Ensimesmados e mudos, os paraguaios estavam a meu lado sobre a duna. Visivelmente, toda a situação lhes parecia extremamente lúgubre. Eles haviam, aparentemente, imaginado o mar de forma totalmente diversa e, sobretudo, não tão terrivelmente grande. Sua confiança tinha sofrido um golpe violento. Eles se mostraram bastante abatidos, especialmente à noite, e o canto de pajelança a Tupãcý, que eu aguardava com grande expectativa, não progredia, embora eu também tivesse trazido o meu maracá e procurasse ajudar com todas as minhas forças” (Nimuendaju).

Essa extraordinária experiência mudou profundamente a maneira como Curt Unkel via os guarani, e mudou sensivelmente a maneira como os etnólogos passariam a vê-los daí para frente.

Os guarani do início século XX, que se deslocavam em busca do paraíso terrestre, surpreendidos por Nimuendaju em plena migração, já não eram mais como os guarani dos tempos coloniais. A colonização, a evangelização, a formação dos estados nacionais e a dramática redução de seus territórios alteraram sensivelmente o “modo de ser” desses povos. Práticas antigas foram abandonadas e elementos da tradição cristã, antes ignorados, foram incorporados ao repertório de crenças e valores dos guarani modernos. A busca pela “terra sem mal” no século XX talvez seja a melhor expressão das profundas mudanças pelas quais estes povos passaram desde os tempos das conquistas portuguesas e espanholas, sejam elas militares ou jesuíticas, na América do Sul.

 No século XXI - a uma distância considerável dos grupos com os quais Nimuendaju teve contato entre 1907 e 1921 - as demandas e o modo como guarani lidam com o mundo a sua volta já não são mais os mesmos. A dinâmica e o “modo de ser” destes povos acompanham, por vezes tragicamente, as mudanças do mundo que os cerca. Neste sentido, diria que hoje a “terra sem mal” não é mais o paraíso cosmológico a ser alcançado pela visão e condução infalível de um Pajé. A terra mítica que os guarani buscaram no século XX pode ser equiparada neste início de novo século às terras a serem demarcadas (tekoha), por políticas públicas sensíveis ao drama histórico destes povos, quer no Mato Grosso, quer em Santa Catarina.

A “terra sem mal”, conforme indicam os estudos etno-históricos, é um tema central da cultura guarani do século XX. Poderíamos dizer o mesmo sobre os guarani dos tempos coloniais?  O texto que segue é uma resposta, breve e provisória, para esta pergunta. Embora as observações possam ser estendidas para povos guarani da América Portuguesa, dirijo a atenção para os guaranis que viviam na região denominada Paraguai, entre os séculos XVI e XVII.

A projeção etnográfica para os tempos coloniais.

Os trabalhos etnográficos e linguísticos desenvolvidos a partir do início do século XX têm possibilitado uma maior aproximação do “modo de ser” guarani. As pesquisas pioneiras de Curt Unkel (Nimuendaju) entre os apapocúva e os estudos mais sistemáticos de Alfred Métraux, Egon Schaden e Léon Cadogan, que cruzam pesquisas etnográficas com leituras mais apuradas das fontes coloniais, reuniram um volume extraordinário de informações e abriram inúmeras linhas de pesquisas sobre os guarani atuais e os do passado. A relativa conservação entre os guarani atuais de alguns traços fundamentais do seu “modo de ser”, como o “profundo senso de identidade” e o “discurso profético” (John Monteiro), tem facilitado os estudos comparativos e o preenchimento de lacunas existentes na documentação referentes aos séculos XVI e XVII. No entanto, alguns problemas metodológicos resultantes da projeção de informações colhidas entre os guarani modernos para explicar os guarani do passado vem sendo observados por etnólogos, etno-historiadores e arqueólogos. Em primeiro lugar, a não observância das grandes alterações provocadas pela conquista/colonização e pela evangelização no modo de vida dos povos indígenas. Em segundo lugar, os dados etnográficos colhidos no século XX determinam a leitura das fontes coloniais. O caso mais notável talvez seja o da busca pela “terra sem mal”.

Dos guarani, ou “carios”, descritos por Luís Ramírez e Ulrico Schmidl, na primeira metade do século XVI, aos guarani apapocúva etnografados por Nimuendaju vai uma grande distância. O ethos guerreiro e a antropofagia daqueles horticultores das cabeceiras do Paraguai estão muito distantes daquele povo místico que caminhava na direção do mar em busca da terra sem mal, guiado pelo velho pajé Guyrapaijú, que Curt Unkel encontrou em 1907 no oeste de São Paulo. Além disso, a brutal queda da densidade demográfica e a redução dramática da área de mobilidade, a desarticulação do complexo político e militar e as marcas profundas deixadas pelas experiências missionárias e reducionais, são algumas das mudanças de grande impacto que se colocam entre os guarani de Ramírez e Schmidl e os de Curt Unkel. As projeções retrospectivas, como demonstrou Anna Roosevelt para o caso da Amazônia, que projetam o presente etnográfico para os tempos da conquista, parecem desconsiderar essas mudanças. Supõe-se que “o padrão básico do modo de vida indígena” não sofreu alterações significativas (Anna Roosevelt). No entanto, como já salientou John Monteiro, dois aspectos centrais ao “modo de ser” guarani, como a guerra e o canibalismo, tão destacados nos cronistas do século XVI, desapareceram sob o efeito do cristianismo e da colonização.

Ao longo de quatro conturbados séculos, repletos de experiências trágicas, muita coisa se perdeu, muita coisa se adquiriu e outras tantas se mesclaram. Se a antropofagia ritual foi abandonada, as migrações realizadas de tempos em tempos se mantiveram como traço distintivo do guarani. Dois observadores, em épocas diferentes, registraram esse fenômeno. Ulrico Schimdl, um soldado alemão a serviço da coroa de Espanha, percebeu que “los sobredichos Carios migran más lejos que ninguna nación que está en esta tierra en Rio de la Plata (...)”. Nimuendaju encontrou os m’bya em 1921, num pântano às margens do Tietê, a treze quilômetros de São Paulo, em meio a uma dramática migração. Miseráveis e extenuados tentavam chegar ao mar para seguir viagem em direção ao leste. Não conseguindo demovê-los da jornada, o etnólogo juntou-se ao grupo. A chegada foi uma dura decepção. Os m’bya nunca haviam visto o mar. Diante da imensidão, o grupo se deparou com uma terrível realidade: o acesso a “terra onde não mais se morre” era bem mais difícil do que imaginavam. O guarani do século XVI migrava, o do começo do século XX continuou migrando. O impulso às migrações, supomos, manteve-se preservado, mas as motivações já não eram mais as mesmas.



Estes deslocamentos constantes dos guarani no espaço suscitaram diversas interpretações. A mais célebre delas é a da busca pela “terra sem mal”, um caso emblemático de “projeção etnográfica”. A busca, nos tempos pré-coloniais, por uma terra boa, não cultivada, uma terra econômica, foi associada, no século XX, com a busca profética da “terra sem mal”. Foi Nimuendaju quem relacionou pela primeira vez o material etnográfico, recolhido por ele próprio, entre os guarani da primeira metade do século XX com os relatos dos cronistas e missionários dos séculos XVI e XVII sobre os tupi do litoral brasileiro e os guarani do Paraguai. Nimuendaju levantou duas suposições que se mostrariam de enorme fertilidade entre os etnólogos: a da persistência das migrações, dos tempos coloniais ao século XX, e o papel propulsor da religião nas migrações. As migrações tinham como objetivo final alcançar o yvýmarãey que, para a maioria dos pajés guarani que contatou, situava-se no leste, além do mar (Nimuendaju). A busca pela “terra sem mal”, ou yvýmarãey, fazia parte do universo religioso tupi-guarani antes da chegada dos conquistadores. Foi em busca deste paraíso da abundância que saíram, segundo Nimuendaju, dos Andes e se dirigiram ao litoral do Atlântico e a bacia do Prata:

Os fatos históricos só fazem confirmar o que os próprios índios sempre me asseguraram: a marcha para leste dos Guarani não se deveu à pressão de tribos inimigas; tampouco à esperança de encontrar melhores condições de vida do outro lado do Paraná; ou ainda ao desejo de se unir mais intimamente à civilização – mas exclusivamente ao medo da destruição do mundo e à espera de ingressar da terra sem Mal.

A ameaça do fim do mundo, o cataclismo mítico das narrativas que Nimuendaju ouviu entre os apapocúva, era o impulso fundamental que os impelia à “fuga para a Terra sem Mal” em busca da “salvação”. As Lendas da Criação e Destruição do Mundo, publicada em 1914, trouxe a público a cosmologia e a escatológica guarani. Revelou também o drama cósmico de um povo que vivia a certeza do fim do mundo, do dia em que a terra iria desmoronar e a espécie humana seria devorada por Jaguarový, o Jaguar Azul. O mito de Guyrapotý, o pajé legendário que reuniu os guarani e os conduziu em direção ao mar, era o fundamento das migrações místicas. Diversos pajés, inspirados na bem sucedida migração de Guyrapotý, teriam conduzido, embora sem os efeitos esperados, os povos guarani no século XX em direção ao leste. A crença na “terra sem mal” teria sobrevivido à conquista, ao colonialismo e a cristianização, e se mantido intacta entre grupos de guarani remanescentes.

A busca pela “terra sem mal”, a grande descoberta etnológica de Nimuendaju, tornou-se um dos temas mais importantes da etnologia e da antropologia indígenas. De qualquer maneira, devemos observar que, apesar da força dos argumentos e da autoridade do etnólogo que conviveu de maneira singular entre os guarani, a ideia mais geral de que a busca pela “terra sem mal” tem como “mola propulsora” não a expansão bélica mas a religião foi apresentada como “suposição”. Daí para frente o tema ganhou vida própria e tornou-se, nos meios acadêmicos, o fundamento da religiosidade guarani, um “dado objetivo” que, na avaliação de Cristina Pompa, dispensa o exame das fontes. Nimuendaju tornou-se a própria fonte.

Alfred Métraux, na trilha aberta por Nimuendaju, relacionou os dados etnográficos com as fontes coloniais num estudo clássico sobre as migrações tupi-guarani. “Gracias a los mitos y a las tradiciones recogidas em nuestra época, reconhece o antropólogo suíço, sucesos oscuros, consignados em las narraciones de viajeros y misioneros de los siglos XVI y XVII, adquieren hoy su verdadeira significación.”. Partindo dos dados recolhidos por Nimuendaju entre os apapocúva e comparando-os com as informações dos cronistas coloniais – Nóbrega, Thevet, Abbeville, Cardim, Yves d’Evreux, para a costa brasileira, e Barco Centenera, Montoya, Lozano, Techo e José Guevara, para o Paraguai – Métraux chegou a conclusão de que o mito da terra sem mal não só era parte fundamental da estrutura religiosa dos guarani do século XVI, como se conservou intacto entre os do século XX, como demonstrou Nimuendaju. Estes fenômenos ocorreram tanto na costa brasileira como no Paraguai, pois os tupi e os guarani “participaban de una misma tradición cultural (...)”. O “antiguo Paraguay, habitado por los índios guaraníes”, foi durante séculos a terra de eleição dos messias e profetas indígenas. Em nenhuma região do mundo, informa Métraux, ocorreram tantos movimentos de libertação mística.

A mitologia de algumas tribos tupi-guarani “deja constancia de una tierra maravillosa, llamada “La Tierra sin Mal”, a la cual el antepasado o el héroe civilizador se retiro después de haber creado el mundo y traído a los hombres los conocimientos esenciales para su supervivência.” (Métraux). A terra sem mal, da qual os apapocúva tinham “una imagen muy precisa”, não era somente um lugar de abundância e delícias, era também um refúgio eterno que estava à espera dos homens quando Nanderikey retirasse uma das estacas que escora a terra e precipitasse o fim do mundo. Profetas e messias eram os arautos deste paraíso e se apresentavam “como los salvadores de su pueblo”. Para garantir adeptos para as suas prédicas, que antecipavam as migrações, reivindicavam a qualidade de deus e de emissário divinos. Os heróis civilizadores, benfeitores celebrados nas narrativas míticas, serviam de modelos para os messias indígenas. A crença no retorno destes heróis estava fortemente enraizada na tradição guarani, o que amplificava os apelos dos messias (Métraux).

As tradições míticas e as migrações na direção da terra sem mal são vistos por Métraux como um messianismo genuinamente indígena, mas o impacto da colonização, e toda sorte de privações e sofrimentos que se abateram sobre aos indígenas, exacerbaram entre eles o desejo de evadir-se para um mundo “de reposo eterno e immotalidad.” A tese de Métraux é que fermentadas sob determinadas circunstâncias históricas de crise estes movimentos tendem a se multiplicar. A ameaça de esfacelamento da ordem tradicional, verificada em vários momentos e em “diversos países”, leva a agitação messiânica, que é a “expresión de la desesperación, más o menos conciente.” O desespero predispunha os indígenas a ouvirem os messias e as suas prédicas sobre o advento de uma idade de ouro. A fuga para a terra sem mal era a solução oferecida por esses “profetas”.

Sobre a natureza pura ou sincrética desses movimentos, Métraux fez a seguinte ponderação:

Si el mesianismo guarani y tupinamba era debido a causas internas, sería, sin embargo, poco inteligente ignorar los factores externos que han creado certamente un clima propicio a la predicación mesiánica. Algunos movimentos han tenido un caráter sincrético; otros, a pesar de ciertos prestamos del catolicismo, expresaban creencias y valores puramente indígenas.


Assim, na América do Sul, sacudida pelo colonialismo, se encontra, segundo Métraux, o esquema clássico do messianismo: a crença num profeta ou homem-deus, o desenvolvimento de uma ação que tende a apressar o advento da idade de ouro, a reação social e cultural contra a civilização branca e, frequentemente, a formação de uma nova religião sincrética. Os “mesías” guarani citados por Métraux foram Oberá, Yaguariguay, Guiravera, Juan Cuara e Ñezú. Baseado nas narrativas de Barco Centenera, Lozano, Montoya, Techo e Guevara, Métraux descreve essas personagens e as linhas gerais dos movimentos por elas liderados. Oberá, que se dizia filho de Deus, pregava a destruição dos cristãos e prometia liberdade a todos; Rodrigo Yaguariguay se fazia adorar como Deus e a sua mulher como Virgem Maria, imitava os ritos cristãos e organizou uma revolta contra os espanhóis; Juan Cuara era um pajé do Guairá que reunia os índios para a resistência; Ñezú era venerado como um Deus, abrigava índios fugitivos das reduções e sua autoridade provinha da eloqüência e da reputação de grande feiticeiro; Guiravera se proclamava Deus e organizou a resistência contra os jesuítas.

Ao debruçarmo-nos sobre a documentação referente às rebeliões lideradas por esses chefes indígenas, verificamos que o que existe em comum entre esses movimentos é o fato de que foram liderados por chefes religiosos que se sublevaram contra a autoridade espanhola e jesuítica, e mesclaram temas indígenas e cristãos. Esse é o único traço messiânico, por assim dizer, encontrado nesses movimentos. Em nenhum deles, por outro lado, encontramos uma convocação ou um apelo à imigração, quanto mais uma fuga para a “terra sem mal”. Mas pelo fato dos guarani e os tupinambá participarem de uma mesma tradição cultural, e entre os tupinambá existirem evidencias de migrações, Métraux deduziu nas revoltas guarani um chamado à imigração e à restauração de uma idade de ouro.



Associado ao tema da “terra sem mal”, e inseparável dela, desenvolveu-se entre os etnólogos e etno-historiadores no século XX o conceito de messianismo tupi-guarani. Desde os estudos pioneiros de Alfred Métraux na década de 1920, o qualificativo messiânico vem sendo atribuído aos movimentos de resistência protagonizados pelos guarani contra, segundo a imaginação acadêmica, o poder colonial. Métraux lançou no debate etnológico o tema do messianismo, mas foi Maria Isaura Queiroz que lhe emprestou os contornos teóricos mais acabados num admirável estudo sobre as manifestações do messianismo no mundo. Acompanhando a trajetória dos termos messias e messianismo Maria Isaura os identifica na tradição bíblica e nas lutas do povo de Israel. A conotação definitiva de messianismo, como a promessa de uma idade de ouro que estaria ainda por vir como reparadora das injustiças e sofrimentos deste mundo, só se formaria após o cativeiro da Babilônia. Mas o que realmente interessa a autora é o emprego deste conceito nos estudos históricos e sociológicos para designar, sob o qualificativo messiânico, movimentos e lideres religiosos que carregaram promessas de redenção. Maria Isaura encontra em Max Weber uma definição de messias: um líder essencialmente carismático e dotado de poderes extraordinários.

Cristina Pompa ao fazer um balanço dos estudos clássicos sobre a terra sem mal e o messianismo atribuído aos tupi e guarani salienta as “preocupações totalizantes” de Maria Isaura ao tentar inserir os movimentos tupi-guarani num quadro geral sobre o messianismo no mundo. Seguindo uma classificação weberiana do “tipo ideal” a socióloga, segundo Pompa, arrolaria num único rótulo, e a partir de um único horizonte mitológico, os movimentos indígenas, “abstraído de qualquer contexto histórico e lançado no universo abstrato do presente sociológico”. Se lermos com atenção a apresentação que Roger Bastide faz do estudo e de algumas análises de Maria Isaura, veremos que a abordagem sociológica da autora não é tão inflexível e homogeneizadora como sugere Pompa. A obra busca, é verdade, abarcar os movimentos de várias épocas e lugares numa “sociologia do messianismo”, mas é também suficientemente flexível para não lançar os movimentos que destoam do modelo no leito de Procusto. Destaco um ponto. No capítulo sobre os “movimentos messiânicos em tribos primitivas” Maria Isaura diagnostica uma “efervescência religiosa” na costa brasileira. Identifica os movimentos migratórios “registrados por cronistas e jesuítas”, seguindo as ideias de Métraux, como movimentos em busca da “terra sem mal”, do paraíso nativo - e neste ponto estou de acordo com as críticas certeiras de Cristina Pompa no que se refere à leitura forçada dos cronistas e jesuítas –, mas não estende a mesma análise aos guarani do Paraguai. Com percepção aguçada, de quem leu a documentação, não hesitou em apontar a singularidade dos movimentos guarani: eram contra o crescente poder dos jesuítas, “e não uma fuga para Terra sem Males”.

Hélène Clastres é um caso a parte. O mito da “terra sem mal” deve a ela, sem dúvida, sua entronização na academia e sua popularidade. “Terra sem Mal” é uma obra tão empolgante quanto imprecisa. Acumula um conjunto de belas interpretações que algumas vezes se esvaziam em abstrações forçadas e deslocadas. Diversos pesquisadores apontaram os exageros e as derrapadas da etnóloga, mas a beleza, o estilo conciso e a originalidade da obra são evidentes. Ao mesmo tempo em que procura uma história indígena autêntica, subordina esta história à comprovação de uma teoria. Hélène anuncia na introdução que pretende mudar o “enfoque da história dessas culturas”. Ao contrário de Nimuendaju e Egon Schaden, que reconstroem o “passado dos tupis-guaranis a partir do que hoje se sabe, ou se acredita saber, sobre sua religião (...), assumimos a postura inversa e optamos por retomar a história a partir dos seus primórdios.” O fio condutor de Hélène é a terra sem mal, “um tema muito antigo, cuja presença já era atestada no século XVI entre todos os tupis-guaranis”, e que se verificou também entre os guarani do século XX. Apesar de afirmar que o núcleo da vida religiosa dos tupi-guarani gravitava em torno da “terra sem mal”, Hélène estabelece uma importante distinção entre os tupi e os guarani:

Se a religião dos tupis-guaranis foi mal compreendida, é que se confundiram, a nosso ver, sob o termo único de “messianismo”, movimentos na realidade profundamente diferentes, uns exclusivamente religiosos e que a partir de agora denominaremos proféticos (a procura da terra sem mal), e outros unicamente políticos (a resistência aos espanhóis e aos portugueses), movimentos cujo único ponto comum era terem caraís por atores principais.

De fato, não existem registros de migrações entre os guarani, nos séculos XVI e XVII, em busca da “terra sem mal”. O que não quer dizer que os movimentos/rebeliões tenham sido “unicamente políticos”. Como veremos mais adiante, os levantes indígenas também tiveram um forte conteúdo religioso, e foram orientados não apenas contra espanhóis e portugueses, mas também, principalmente aqueles liderados pelos pajés, contra os missionários. Mas se as revoltas dos guarani não tinham como objetivo a terra sem mal, o que estaria em jogo? Para Hélène Clastres as revoltas dirigidas pelos caraís representavam, naquele momento, a oposição política aos caciques.

Mesmo não encontrando evidências sobre a terra sem mal, Hélène sustenta que a busca por este paraíso da abundância e da imortalidade era o eixo fundamental das crenças dos guarani. No século XIX foram registradas migrações de “várias tribos”, desde o Mato Grosso, “à procura da Terra sem Mal”. Estas migrações, livres de todo sincretismo, deduziu Hélène, eram sinais inequívocos de que a tradição religiosa se manteve intacta: “uma tradição religiosa que nem os maiores abalos conseguiram enfraquecer.” Hélène fez exatamente aquilo que criticou em Nimuendaju e Schaden, ou seja, reconstruiu o “passado dos tupis-guaranis a partir do que hoje se sabe, ou se acredita saber, sobre sua religião”. 

Parafraseando Roger Bastide, o modelo dos movimentos messiânicos é o leito de Procusto dos pajés e caciques guarani que se ergueram contra a presença dos jesuítas em suas terras. Um dos ingredientes fundamentais do messianismo, aplicado aos movimentos indígenas sul-americanos, é a busca da “terra sem mal”. Contrariando o modelo, os pajés guarani nunca mencionaram ou prometeram nada que mesmo remotamente lembrasse o suposto paraíso nativo. Outro aspecto indispensável, apresentado por Egon Schaden, é a existência de uma comunidade que responda ao chamado do Messias, o “portador do ideal coletivo”, e deposite em suas mãos a esperança de restauração da antiga ordem desintegrada pelo “branco invasor”. Novamente os movimentos indígenas do Paraguai mostram-se escorregadios. De um modo geral, os levantes promovidos pelos pajés ou pelos caciques contrários a evangelização não mobilizam a comunidade com promessas redentoras. Na maioria dos casos os pajés estavam acuados e marginalizados, e usavam de ameaças para ter o apoio dos índios contra os padres.

As rebeliões desencadeadas por Guiravera e Ñezú, por exemplo, não cabem na fórmula messiânica. Para encaixá-las nesta categoria devemos aparar algumas sobras incômodas, que acabam por mutilar sua originalidade. Mas é possível sim identificar alguns aspectos do modelo messiânico em alguns movimentos. Guirabera, por exemplo, se passava por Deus e incitava os índios contra os missionários. Oberá, por sua vez, afirmava sua origem divina e se proclamava salvador de seu povo. Essas são características do que se convencionou chamar messianismo, mas isso não é suficiente para caracterizá-los como messiânicos. Falta-lhes o elemento central: a crença da comunidade na figura do redentor que colocará um termo no estado de degeneração em que as coisas se encontram e instituirá uma nova ordem de justiça e de felicidade. As revoltas dos pajés guarani, no Paraguai dos séculos XVI e XVII, não correspondiam a essas expectativas. Destaca-se, no caso famoso de Guiravera, o lado anti-colonial e místico do movimento, o lado romântico, diria, mas esquece-se com facilidade que o pajé queria comer padre Montoya, e que comeu um de seus ajudantes. Enfatiza-se que Yaguacaporo liderou um “movimento de libertação mística”, e não estou afirmando que isto não ocorreu, mas esquece-se que o pajé ameaçava os índios com figuras medonhas que sairiam de seus esconderijos e se lançariam vorazmente sobre eles.

Nas fontes da América espanhola dá época da conquista e do período colonial a busca por vestígios da “terra sem mal” é tarefa frustrante. Não há registros sobre o suposto paraíso guarani em nenhum dos relatos referentes à conquista do Paraguai e, o que parece ainda mais intrigante, não há nenhuma referência na extensa documentação jesuítica. Hélène Clastres reconheceu esta ausência.

Se a “terra sem mal” fazia parte do universo religioso-cosmológico dos guarani e sua busca motivou as migrações lideradas pelos pajés, que os conduziram a região inter-fluvial do Paraguai e Paraná, porque ela não é mencionada em nenhum momento nas narrativas da conquista, especialmente nas jesuíticas? A “terra sem mal” não só nunca foi mencionada, como não foi usada pelos jesuítas para fins de conversão. Se ela ocupava um lugar de destaque na cosmologia guarani, como sugerem etnólogos e etno-historiadores, seria de se imaginar que os jesuítas a incorporassem ao seu repertório de temas catequéticos, ou para desmistificá-la, ou para aproveitá-la como estratégia de conversão, associando-a a equivalentes simbólicos como, por exemplo, o tema do paraíso cristão. A “terra sem mal”, adaptada à linguagem da conversão, poderia resultar em úteis paralelos com o paraíso, o éden, o céu, temas recorrentes na predicação do cristianismo entre os guarani.

A etnologia no século XX traduziu a expressão yvýmarane’ý, encontrada no “Tesoro de lalengua Guarani”de Montoya, publicada em 1639, por “terra sem mal”. Em Montoya, como já foi assinalado por Meliá, a expressão significa “suelo intacto que no há sido edificado”. Esse era o sentido da expressão na época da conquista. A tradução encontrada em Montoya não autoriza sua equivalência por “terra sem mal”. No século XX, porém, Nimuendaju encontrou entre os grupos guarani que contatou a expressão yvýmarãey com o significado de “terra sem mal”, o paraíso onde desejavam ingressar. Tudo leva a crer que ocorreu uma alteração semântica. O mais provável é que as prédicas dos missionários sobre a existência de um paraíso podem ter se fundido as buscas pela terra boa e intacta, sobretudo quando esta terra começou a tornar-se cada vez menos acessível. A desmontagem do complexo político-militar guarani, o cerco à liberdade de movimento, o encontro com a mística cristã e a marginalização desses povos após a dispersão das missões e a criação dos estados nacionais, alteraram profundamente o seu modo de ser. Parece plausível, dadas essas condições, a hipótese de que a busca pela terra boa, não cultivada, cada vez mais distante, teria se transformado na busca por um lugar místico, cujo acesso seria possível graças ao poder mágico dos pajés. Bartomeu Meliá, distanciando-se dos modelos generalizantes e adotando uma visão histórica, mais próxima dos documentos coloniais, associou originalmente a mudança semântica de yvýmarane’ý com a história colonial:

La história semântica de yvýmarane’ý, de suelo virgen hasta “Tierra sin Mal” probablemente no está desligada de la história colonial que los guarani hás tenido que soportar. Em la busqueda de um suelo donde poder vivirse modo de ser auténtico, los guarani pueden Haber hecho cristalizar tanto sus antiguas aspiraciones religiosas quanto la conciencia de los nuevos conflictos históricos. Yvýmarane’ý se convertia en “tierra sin Mal, tierra física, como em su acepción antigua, y a la vez tierra mística, después de tanta migración frustrada.


Não pode passar despercebido também que em nenhum dos cronistas da primeira metade do século XVI – Luís Ramírez, Ulrico Schimdl, Cabeza de Vaca e mesmo Ruy Diaz de Guzmán - os “hechiceros”, ou os “messias indígenas”, foram mencionados com algum relevo. Essas figuras que atormentaram os missionários e povoaram as narrativas jesuíticas como grandes inimigos da evangelização não figuram nestes relatos dos primeiros contatos da conquista espanhola. Um dado realmente curioso se levarmos em conta as hipóteses de Métraux e os vaticínios de Hélène Clastres sobre as migrações místicas lideradas pelos “messias”, que vinham desde os tempos anteriores à conquista, em busca da “terra sem mal’.

A “terra sem mal” foi durante décadas um dos mais fascinantes temas relacionados às culturas tupi e guarani, tanto da costa brasílica quanto do Paraguai, dos séculos XVI e XVII. Os estudos mais recentes e as pesquisas com a documentação colonial têm, no entanto, levantado sérias dúvidas sobre a existência dessa espécie de paraíso dos povos tupi e guarani. Cristina Pompa, recentemente, relendo a documentação colonial, levantou sérios questionamentos sobre a existência do paraíso tupi-guarani no que diz respeito à América portuguesa. No caso do Paraguai colonial, como procuramos demonstrar, também não existe registros sobre a “terra sem mal” na documentação jesuítica nem nos relatos dos cronistas dos primeiros tempos da conquista. As descobertas etnográficas de Nimuendaju sobre a “terra sem mal” entre os guarani, que contatou no início do século XX, foram aceitas e projetadas para os povos tupi e guarani contatados pelos europeus nos séculos XVI e XVII. A documentação colonial foi lida a luz da etnografia com vistas a comprovar a tese da persistência dos movimentos migratórios em busca do paraíso terrestre entre os guarani, desde os tempos anteriores as conquistas europeias.

Talvez não seja exagero supor que o tema da “terra sem mal” fosse tão estranho a um guarani do século XVI e XVII quanto o canibalismo é para um guarani do século XX.


Bibliografia.

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UNKEL, Curt Nimuendajú. As lendas da criação e destruição do mundo como fundamento da religião dos Apapucúva-Guarani. São Paulo: Hucitec-EDUSP, 1987.
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SCHMIDL, Ulrico. Derrotero y viaje al Rio de Plata y Paraguay. Asunción: Ediciones NAPA, 1983. Disponível na Biblioteca Virtual Del Paraguay.