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segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

TRADUÇÃO E INVENÇÃO: Ruiz de Montoya, uma ponte semântica entre dois mundos.


TRADUÇÃO E INVENÇÃO: Ruiz de Montoya, uma ponte semântica entre dois mundos.



A tradução é uma espécie de ponte semântica que opera um fluxo de sentidos capaz de conferir legibilidade àquilo que, a primeira vista, não é dado a ler. Nos encontro culturais entre os europeus e os povos americanos, a tradução desempenhou um papel central. As narrativas jesuíticas lançaram uma ponte entre as duas margens do oceano, por onde as novidades e as estranhezas captadas, e decodificadas, fluíam por meio de cartas, relações e crônicas. Encapsuladas pela escrita, as informações cruzavam o atlântico para serem lidas na Europa. Entre o mundo da oralidade e o mundo da escrita, o suporte tecnológico da tradução era a palavra escrita. As experiências dos missionários nos confins do mundo cristão chegavam aos leitores europeus devidamente decodificadas. Das fronteiras ao centro da cristandade, a escrita transportava as experiências, as novidades e as curiosidades, que tanto interessavam aos leitores externos das cartas jesuíticas. António Ruiz de Montoya, jesuíta e missionário peruano, autor da “Conquista espititual hecha por los religiosos de la compañía de Iesus en las provincias del Paraguay, Parana, Uruguay e Tape” (1639), foi um mestre na arte da tradução e decodificação das culturas indígenas.

Montoya (1585-1652) chegou a Assunção, no Paraguai colonial, em 1612. Foi um dos mais importantes estudiosos do idioma guarani dos tempos coloniais e deixou um riquíssimo registro linguístico da língua desses povos (“Tesoro de la lengua guarani”). Antes dele, o franciscano Luiz Bolanõs já realizara estudos linguísticos na região e deixara um conjunto de anotações, que compunham a base do sistema gráfico guarani. Montoya se serviu das anotações de Bolanõs, levou-as adiante e as aperfeiçoou. Os estudos linguísticos de José de Anchieta sobre os guarani da América portuguesa, publicados em Coimbra em 1595, sob o título de “Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, inspiraram os jesuítas, Montoya em particular, da América hispânica. “Tesoro de la lengua guarani” (1639), elaborado quando Montoya dedicava-se aos trabalhos apostólicos da redução de Nossa Senhora de Loreto, é o primeiro dicionário da língua guarani, resultado de quase trinta anos de convivência do missionários com os guarani (MELIÁ). Todo o trabalho linguístico de Montoya tinha como fim a conversão dos indígenas ao catolicismo. Além disso, o missionário-linguista foi um excepcional cronista das experiências apostólicas e reducionais dos jesuítas no Paraguai. Protagonizou célebres embates contra “índios infiéis” (era assim que os jesuítas chamavam os índios que se opunham à evangelização), encomenderos e bandeirantes e foi um incansável defensor das reduções (CHAMORRO, 2007).


O missionário jesuíta se construiu no “trato das diferenças culturais”. A missão o empurrava para o confronto com a alteridade e exigia um (re)conhecimento, para si próprio e para o seu mundo de origem, deste novo universo que se abria à evangelização. Um destes confrontos ocorreu numa visita que Ruiz de Montoya, acompanhado do padre José Cataldino, fez à antiga Redução de Loreto. O missionário saiu percorrendo a região “á convidar á los índios á que se redujesen en poblaciones grandes”. Numa dessas “aldeias” conheceu o “grande cacique Taubici”:

“Llegamos á um  pueblo cuyo gobernador era un gran cacique, gran mago y hechicero y familiar amigo do demônio, chamado Taubici, que quiere decir, diablos en hilera ó hilera de diablos. Era muy cruel y con cualquier achaque hacia matar índios a su antojo(...)” (Conquista Espiritual, p.45).

Neste fragmento significativo da narrativa de Montoya surpreendemos o narrador empenhado em traduzir o outro. Seguro de si e do entendimento que tinha da língua guarani, o jesuíta não hesitou em traduzir o nome do cacique. Mas traduzir não se resume a encontrar sinônimos linguísticos ou equivalentes semânticos. Traduzir é uma maneira de ler a diferença, de enunciá-la. Dizer o outro, configurá-lo no interior de uma narrativa destinada a ser lida no mundo de origem do narrador, envolve sempre uma operação de tradução. Esta operação se dá tanto no nível mais epidérmico, da comunicação entre pessoas, em que a busca por correspondentes linguísticos caracteriza uma primeira aproximação e entendimento, quanto no nível mais profundo da interpretação cultural, dos sistemas de crenças e valores dos povos indígenas.

Mas traduzir o outro não é transformá-lo no espelho invertido do mesmo? Mirando o jogo de espelho criado por François Hartog para ler Heródotos, interrogo as narrativas jesuíticas para visualizar o papel da tradução na construção da alteridade, na elaboração de uma representação do outro como suporte para a conquista espiritual. Este princípio heurístico, que permite compreender e dar sentido ao que num primeiro momento parece incompreensível denominamos aqui de “retórica da alteridade, ou seja, uma operação de tradução que visa transportar o outro ao mesmo - constituindo uma espécie de transportador da diferença.” Sigamos então as reflexões de Hartog sobre as Histórias de Heródotos e a maneira como ele traduz para os gregos as diferenças culturais dos não-gregos. A diferença só é percebida e enunciada a partir do momento em que se reconhece existirem dois termos, digamos A e B, e que um é diferente do outro. E, “a partir da relação fundamental que a diferença significativa instaura entre os dois conjuntos, pode-se desenvolver uma retórica da alteridade própria das narrativas que falam do outro”. O narrador, elo entre os dois conjuntos, pertence ao grupo A e contará ao seu grupo, as coisas do grupo B. O problema do narrador então é tornar-se persuasivo, tornar sua narrativa crível, digerível. É aqui que situamos o problema da tradução. Como dizer o outro de maneira a ser compreendido pelos destinatários? Para traduzir a diferença, diz Hartog, o narrador tem a sua disposição “a figura cômoda da inversão”. Por este mecanismo, o outro se torna o inverso e não há mais A e B como termos próprios, mas simplesmente A e o inverso de A. “O princípio da inversão transcreve a alteridade tornando-a fácil de apreender no mundo em que se conta (trata-se da mesma coisa, embora invertida).”

Os jesuítas, mestres da tradução e da inversão, realizarão esta ponte semântica entre o velho e o novo mundo. O complexo universo narrativo jesuítico cria cenários, enredos barrocos, constrói personagens e distingue os inimigos e os aliados. Transforma a confusão e a implausibilidade do universo indígena, e do espaço que ele habita, numa ordem coerente, descritível e inteligível. Eis o papel da tradução: tornar legível o que não é dado a ler, dizer o indizível, nomear o desconhecido para criar um efeito de familiaridade.

Taubici, na linguagem da conversão, torna-se “diabos em fila”. O nome do cacique não é apreendido pelo que significa entre os guaranis, mas pelo que representa para a evangelização. Ele é o inverso, o contrário, o inimigo declarado e devidamente nomeado. À tradução do nome segue-se a descrição da sua natureza cruel, violenta, diabólica. Traduzir, neste caso, não é apenas verter do guarani para o espanhol. Traduzir é atribuir sentidos associados à experiência, é inventar. Taubici, traduzido por Montoya, torna-se outra coisa. O chefe indígena que lemos na “Conquista Espiritual” é uma invenção do jesuíta. Afirmar isso não é negar a existência de Taubici, nem a validade da tradução de Montoya. É inegável, no entanto, que Taubici, entre os guaranis, representava algo muito diferente. A tradução realiza-se num campo de disputas físicas e simbólicas. Montoya esta descrevendo o inimigo com os conhecimentos que possui dos indígenas, mas também com o repertório de significados que a luta de vários séculos do cristianismo contra as “milícias del abismo” legou aos jesuítas (Expressão criada pelo jesuíta Pedro Lozano). A tradução, numa situação como essa, é um ato político de negação.


A invenção do cacique diabólico pela escrita conquistadora, foi motivada por projetos políticos e religiosos, e fundada num querer, no logos ocidental, que percorre o mundo e o ordena a partir de um conjunto de saberes europeu. A invenção do outro, que no fundo é o exercício de uma dominação e um desejo de tradução, é um fenômeno de fronteira que visa trazer para o lado de cá o que está do lado de lá. Demonizar Taubici é domesticar sua natureza incompreensível. É trazê-lo para o campo de referências do jesuíta e poder explicá-lo. Podemos dizer, com Michel de Certeau, que se trata, de fato, de uma “hermenêutica do outro”. Os Jesuítas transportam para a América o aparelho exegético cristão nascido, neste caso, dos embates contra as supostas forças satânicas e do espírito de reforma que contaminou os aliados de Roma na luta contra a heresia protestante. A relação entre a Europa e o resto do mundo é mediada, assim, por uma atividade tradutora, que opera uma leitura do outro, decifrando-o. Os indígenas – homens, mulheres, crianças, velhos, caciques e pajés – que povoam as cartas e crônicas são personagens idealizados que se ajustam harmonicamente ou se chocam contra os trabalhos apostólicos. Personagens que cumprem um papel retórico na estratégia jesuítica que condenava “os vícios e os maus hábitos dos nativos quando queriam explicar o fracasso de uma determinada ação, e exortavam suas virtudes e inocência quando queriam demonstrar o sucesso de sua empresa evangélica” (EISENBERG). Mas esses personagens idealizados não são signos sem referente, não são criações do nada. São projeções/invenções jesuíticas elaboradas a partir do encontro/confronto com os indígenas.

A tradução, a serviço da conquista e da conversão, pode ser caracterizada como uma operação de redução do universo alheio aos signos religiosos e de comunicação dos conquistadores. Esta operação resulta amiúde na invenção do outro, isto é, na construção de sujeitos que flutuam numa região intermediária entre o que se vê e o que se crê, entre o que se tem e o que deseja.

Felizmente a escrita, verdadeira cápsula do tempo, registrou as experiências missionárias que, preservadas do efeito implacável do tempo, chegaram intactas até nós. Estava agora pensando sobre isso. Lendo uma edição antiga da “Conquista Espiritual” (em espanhol), do Montoya, que tenho comigo, pensava no privilégio que temos de ter um registro admirável como esse ao nosso alcance. Por um lado, o impagável prazer de ler as “aventuras” apostólicas barrocas, quase cinematográficas, das crônicas de Montoya. Por outro, a possibilidade de desfazermos os equívocos, ainda que bem intencionados, da tradução cultural e restituirmos ao cacique Taubici o seu nome.

Referências Bibliográficas.

CERTEAU Michel De. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
CHAMORRO, Graciela. Antonio Ruiz de Montoya: promotor y defensor de lenguas y pueblos indígenas. História Unisinos, 2007. Vol. 11, N° 2, maio/agosto de 2007.
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LOZANO, Pedro. História de la Compañia de Jesus de la Província del Paraguay. Madrid: 1754-55.
MELIÀ, Bartomeu. O guarani: uma bibliografia etnológica. Santo Ângelo/RS, Fundação Missioneira de Ensino Superior, 1987.
______. Los Guarani del Tape en la etnografia missioneira del siglo XVII. In: Segundo Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros. Anais. Santa Rosa, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Dom Bosco, 1977.
 ______. El Guarani conquistado y reducido. Biblioteca de Antropologia. Vol. 5. Centro de Estudos Antropológicos. Asunción: Universidade Católica, 1988.
 ______. La lengua Garaní en el Paraguay colonial. Asunción: CEPAG, 2003.
RUIZ DE MONTOYA, António. Conquista espititual hecha por los religiosos de la compañía de Iesus en las provincias del Paraguay, Parana, Uruguay e Tape. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.




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