“DITADURA
MILITAR” OU “DITADURA CIVIL-MILITAR”? Mais que uma questão terminológica, a
urgência do debate.
Porque os civis nos chamavam de
covardes. Eu fui chamado de covardes várias vezes. Fardado. Gente desconhecida
na rua da Praia, que é a rua do Ouvidor em Porto Alegre. “Vocês são uns
covardes. O que é que estão esperando?” Cansei de ouvir. “Estão esperando que o
Stalin venha sentar aqui em Brasília”. Era nesse tom. “Quer dizer, nós fomos
atrás do povo.”
(General Carlos Alberto da Fontoura. Depoimento
de 1993 sobre o apoio dos civis ao golpe de 64).
Participamos da Revolução de 1964,
identificados com os anseios nacionais de preservação das lnstituições
democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social
e corrupção generalizada. Quando a nossa redação foi invadida por tropas
anti-revolucionárias, mantivemo-nos firmes em nossa posição. Prosseguimos
apoiando o movimento vitorioso desde os primeiros momentos de correção de rumos
até o atual processo de abertura, que se deverá consolidar com a posse do novo
presidente.
(Roberto
Marinho. Editorial do Jornal O Globo, 1984).
Estava pensando cá com meus botões, na década de 70, era
filha de pobre e consegui cursar um cursinho de pré-vestibular caríssimo e
fazer 4 anos de faculdade numa universidade particular, por ter ficado como
excedente no curso de Medicina da UFRJ. Como não quis prestar vestibular no ano
seguinte, resolvi fazer Biologia na FTESM. O que hoje não me arrependo 1
minuto. Isso foi na ditadura militar. Paguei todas as mensalidades no dia
certo, sem ter entrado em nenhum plano do governo. Ao levar meu diploma na mão,
não devia um centavo. Hoje no "governo socialista", o pobre não
consegue nem pagar o cursinho de pré-vestibular... As faculdades particulares
"cheias de alunos"... que abandonam o curso no meio do caminho por
falta de recurso para pagar seus créditos.
(Leila de Souza Bastos. Bióloga e professora. 2013).
A “ditadura militar”,
ou “civil-militar”, está longe de ser um assunto do passado que deva ser
esquecido. A memória e os efeitos da ditadura na sociedade e na cultura
política brasileira estão mais vivos do que nunca e dividem as opiniões,
acadêmica e socialmente. Os trabalhos da Comissão da Verdade e o desejo de retorno
dos militares por parte de setores da sociedade brasileira, manifesto nas
recentes manifestações de rua contra o governo, nos dão bem a medida da
centralidade do tema no debate político atual. Não podemos ignorar que para uma
parcela crescente deste fenômeno sociológico mal compreendido que chamamos de
classe média brasileira, os militares que derrubaram o presidente João Goulart,
sob a acusação de suposta esquerdização do governo, são verdadeiros heróis
nacionais. Os admiradores dos militares já não têm mais vergonha de mostrar a
cara, nas ruas e nas redes sociais, e exibir cartazes pedindo uma nova
“intervenção militar”.
Na última década e
meia, marcada pela ascensão de governos de esquerda no Brasil e na América do
Sul, as ditaduras, como era de se esperar, ganharam ainda mais destaque nos
debates políticos. Nesse contexto, no Brasil, surgiu a expressão “ditadura
civil-militar”, empregada por acadêmicos, ativistas e, em menor escala, por
jornalistas, para designar com mais precisão o golpe e a ditadura imposta ao
Brasil em 1964. A expressão consagrada na literatura, nos meios jornalísticos,
e de uso corrente na sociedade até então, era “ditadura militar”. Mas afinal, o
que de importante a nova expressão traz e em que medida ela nos ajuda a
entender melhor o golpe e a ditadura?
O historiador Daniel
Aarão Reis Filho é um dos mais enfáticos defensores do uso da terminologia “civil-militar”.
Segundo Aarão, em artigo publicado em 2012: “Tornou-se
um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de
“ditadura militar”. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a
diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O
problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história
recente do país e da ditadura em particular. É
inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que
instaurou a ditadura, em 1964. É como tapar o sol com a peneira”.
Aarão destaca as
marchas de dezenas de milhões de pessoas, “de todas as classes sociais”, em
apoio e depois em comemoração ao golpe. Participaram das marchas “a maioria dos partidos, lideranças empresariais, políticas e
religiosas, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), as
direitas”. Entretanto, existe “a obsessão em caracterizar a ditadura como
apenas militar”. Quem se favorece disso? A memória atual, que sustenta que a
ditadura foi apenas militar interessa as entidades civis que apoiaram a
ditadura. Se ela foi “apenas” militar, “todas elas passam para o campo das
oposições”. “Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os
que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O
mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a
ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como
verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora - e foi - contra a ditadura”. A preservação desta memória, conclui Aarão,
limita a compreensão das complexas relações entre ditadura e sociedade.
O historiador
Carlos Fico sustenta um ponto de vista semelhante. Num evento em 2012, numa
mesa organizada pela Comissão da Verdade intitulada “Antecedentes, contexto e
razões do golpe militar”, Fico afirmou que “o golpe não foi militar, mas
civil-militar”. Num artigo publicado no jornal “O Globo” de 2014, voltou ao
tema e avaliou que o maior avanço da historiografia recente consiste na busca
de objetividade em relação à ditadura. Graças ao “distanciamento histórico”, as
novas abordagens nos lembram, baseadas em novas fontes documentais e
perspectivas regionais, que “setores significativos da sociedade apoiaram a
derrubada de João Goulart”. Os novos estudos comprovam, por exemplo, que a
insatisfação das classes médias urbanas não era apenas resultado da “manipulação
propagandística”, e que alguns estudantes apoiaram o golpe. “Por tudo isso, o golpe de Estado, outrora chamado de
“militar”, tem sido melhor designado como “civil militar”. Essa perspectiva, de
acordo com o historiador, é essencial, porque “se entendermos o golpe apenas como o episódio que iniciou uma ditadura
brutal, correremos o risco de construir leitura romantizada, segundo a qual a
sociedade foi vítima de militares desarvorados. Quando a historiografia mais
ousada se contrapõe a essa leitura vitimizadora, ela não está propondo um
“revisionismo reacionário” que buscaria eximir de culpa os golpistas. Apenas se
trata da reafirmação de algo óbvio: não há fatos históricos simples. Entender
porque uma solução autoritária foi de algum modo aceita naquele momento pode
servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do autoritarismo que tantas
vezes vitimou a história de nossa República”.
A
historiadora Denise Rollemberg, numa entrevista ao “IHU-on-line” em 2009, sobre
os 40 anos da morte de Carlos Marighela,
numa linha argumentativa próxima da de Fico e Aarão, observou que: “Segmentos
importantes da sociedade, não só das classes média e média alta, mas setores
populares receberam de uma forma muito alegre a instauração do regime e apoiou
o regime durante um bom tempo. Esta ideia de que a sociedade brasileira
resistiu contra a ditadura, que a ditadura é uma questão dos militares e não da
sociedade, é uma construção, a partir do fim dos anos 1970, que é memória e não
história. É importante perceber que a ditadura não foi militar, mas civil e
militar. Isto deve ser pensado para compreender porque a luta armada ficou tão
isolada. Foi porque a sociedade foi muito participante da ditadura”.
Longe de ser uma
unanimidade, o uso da expressão vem despertando acalorados debates envolvendo
pesquisadores e pessoas que direta ou indiretamente estão ou estiveram
envolvidas com a ditadura. Os que se opõe à nova conceituação afirmam que o uso
do termo “civil” descaracteriza a “ditadura militar”, tanto conceitualmente como
politicamente. O jornalista Pedro Pomar, num artigo publicado em 2012 no “Brasil
de Fato”, afirmou, em tom de reprovação, que virou moda o uso da expressão
“ditadura civil-militar” “para designar o
regime instaurado em nosso país por meio do golpe militar de março-abril de
1964”. Pomar considera a expressão um “modismo equivocado”. Ao propor a
designação “civil-militar” “com a finalidade de garantir que não seja esquecida
a participação dos civis”, por mais nobre que sejam as intenções, “termina-se por
obter efeito inverso, qual seja, o de diminuir a responsabilidade dos
militares, além de confundir a sociedade brasileira, já familiarizada com a
expressão Ditadura Militar para designar esse terrível período da nossa
história.” Além disso, arremata Pomar, “o termo civil também serve para
designar o regime como autoritário, brando, negociado etc. Como se não fosse
uma ditadura”, adverte o historiador Lincoln Secco”.
Vale também
registrar um comentário ao artigo de Daniel Aarão enviado ao jornal “O Globo”
pelo historiador Renato Luís do Couto
Neto e Lemos. A “revisão interpretativa” sobre a ditadura é vista pelo
historiador como a “reinvenção da roda historiográfica”. A expressão ditadura
civil-militar, ao contrário de esclarecer, “constitui um freio na elucidação
do seu sentido histórico, porque dilui
na vaga categoria “civil” o conteúdo classista do golpe e da ditadura,
sobejamente conhecido”. A ênfase no “apoio civil” ao golpe e a ditadura,
apresentada como “novidade historiográfica”, pode desestimular os jovens
historiadores de buscar a fundo os “poderosos interesses classistas” que
presidiram àqueles acontecimentos. “Em suma, concluiu Renato Lemos, jogar o
foco da análise de um processo de cruenta disputa política numa sociedade civil
metafísica, descarnada, sem conexões com classes e categorias sociais
portadoras de projetos classistas é induzir o respeitável público à
mistificação da história. Uma abordagem que falseia o estado atual do
conhecimento e não o faz avançar um milímetro sequer”.
“Ditadura
Civil-Militar” não é um “Modismo Historiográfico”.
As duas formas de se
referir à ditadura têm as suas legitimidades e, sobretudo, traduzem momentos e
contextos distintos da reflexão histórica sobre o tema. A expressão “ditadura
militar”, de um lado, está intimamente ligada à resistência a ditadura e a luta
pela redemocratização. O uso da expressão, como contraponto a ideia de
“revolução” empregada nos círculos de apoio ao regime, consagrou-se como
denúncia da tomada de poder pela força e da imposição de um regime construído à
base da cassação das liberdades democráticas e que usou da violência para
reprimir as forças de oposição. A expressão “ditadura civil-militar”, de outro
lado, embora sem perder de vista o teor crítico e de denúncia da ditadura, está
mais conectada com as demandas recentes da sociedade brasileira e a necessidade
de rever os conceitos e ampliar o olhar dos pesquisadores, e da sociedade,
sobre a natureza do golpe e do regime ditatorial. Mais do que a denúncia, e
tentando ir além, a expressão traduz um esforço de entendimento sobre a
ditadura, favorecido pelo maior distanciamento histórico.
A terminologia “civil-militar”
pode não agradar a todos, como vimos, mas ela tem lá as suas pertinências. Todavia,
não pretendo estimular uma disputa entre termos. Não se trata de afirmar esta
ou aquela terminologia, mas ressaltar a importância do debate. É no debate
político e historiográfico que podemos alargar nossa visão, ir além da memória
e do discurso da resistência, e avançar na compreensão mais abrangente tanto do
ponto de vista da arquitetura do golpe quanto da sustentação do regime.
Longe de ser um “modismo”
ou uma “manipulação terminológica”, como já foi sugerido, a expressão “ditadura
civil-militar” aponta para um esforço de compreensão da ditadura para além do
aspecto puramente militar. A terminologia “ditadura militar”, por certo, não
negligencia a participação civil no golpe e na sustentação da ditadura. Da
mesma forma, o acréscimo do termo “civil” não descaracteriza nem mascara o
caráter militar da ditadura. Em certo sentido, consciente ou não, a expressão
“ditadura militar” encerra uma visão vitimizadora da sociedade brasileira e das
esquerdas, atribuindo aos militares a culpa pelo que ocorreu na época. Mesmo
apontando para a cumplicidade de setores da classe média e de uma elite civil
próxima dos militares, a expressão reduz semântica e sociologicamente a
ditadura ao seu aspecto militar. A vitimização da sociedade e a vilanização dos
militares em nada ajudam a entender as complexas relações entre ditadura e sociedade.
Estas construções binárias tinham um caráter de denúncia e de condenação da
ditadura, importante nas décadas de 1970-80, desvelando os crimes e os excessos
cometidos pelos militares. Hoje, a uma distância confortável e segura daqueles
tempos, e sem a ameaça de um retorno dos militares, precisamos ir além e
entendermos a ditadura em todas as suas dimensões.
As críticas ao uso do
termo “civil”, e o suposto efeito de abrandamento da ditadura, vêm de setores
mais a esquerda, tradicionalmente avessos a revisões históricas, geralmente
taxadas de reacionárias.
O uso do termo “civil”
para adjetivar a ditadura, a meu ver, chama a atenção para um fenômeno que cada
vez mais nos interessa: a atual idealização dos militares como os salvadores da
pátria. Os sucessivos governos do PT, os escândalos de corrupção e o baixo
desempenho da economia criaram um ambiente de crise de legitimidade do governo
(Ainda que a noção de legitimidade seja bastante problemática). É em momentos
como este, como bem observou Raoul Girardet, que se situam os apelos mais
veementes ao herói salvador. No nosso caso, das forças armadas, a instituição
salvadora. As reflexões de Girardet sobre a figura do salvador e os contextos
de crise de legitimidade podem nos oferecer bons insights para pensar o que
aconteceu no Brasil em 1964 e o que acontece hoje. A defesa que alguns
movimentos e setores da sociedade brasileira fazem da intervenção restauradora
e purificadora dos militares tem um apelo mítico. Os mitos políticos aparecem
como respostas específicas de cada sociedade, ou de certos grupos sociais, a
determinadas situações: rejeição global de um governo justa ou injustamente
desacreditado, ruína financeira, desordem interna (Girardet), e eu
acrescentaria, como característicos da sociedade brasileira, a corrupção e a
ameaça de governos com tendências de esquerda. Nestes momentos, o ideal de
regeneração moral e os apelos a um suposto passado de ordem e decência - a
intervenção e o regime militar – aparecem como a solução para a desordem e a
decadência do presente. A intervenção salvacionista das forças armadas, como em
64, verdadeira panaceia conservadora, operaria uma correção dos rumos e
devolveria ao país a credibilidade, a confiança e a decência perdidas. Uma
breve consulta nas páginas dos grupos pró-intervenção nas redes sociais, e nos
comentários dos simpatizantes, é suficiente para identificar o apelo mítico à
intervenção regeneradora dos militares.
As crescentes e
inquietantes demonstrações públicas de apelo por uma “intervenção militar”
vindas de diferentes setores da sociedade brasileira, e o silêncio cúmplice, e
por vezes o apoio tácito, de parte da imprensa brasileira, nos obrigam a
entender melhor o apoio popular e a participação de agentes civis no golpe de
64 e no regime ditatorial. A simpatia pela ditadura e por mecanismos
autoritários de governo, ainda que alimentada pela desinformação, é um dado do
presente que deve reorientar o olhar do historiador/pesquisador sobre o passado
recente. A polarização política decorrente da ascensão da esquerda vem
provocando verdadeiros combates pela memória. Leituras favoráveis à ditadura e
aos militares, ainda que rasas e pobres heuristicamente, disputam com as
narrativas da esquerda e dos historiadores. Gostando ou não, as narrativas
pró-militares apresentam-se como contraponto conservador à chamada memória da
resistência, em certo sentido mistificadora, emplacada pela esquerda desde o
final dos anos 70. Personagens como Lamarca, Marighela e Dilma Rousseff, antes vistos
como heróis por enfrentar a ditadura, são hoje atacados e chamados de
terroristas. A violência praticada pelos miliares é relativizada e justificada
como necessária para deter o avanço do comunismo e impedir a cubanização do
Brasil.
Já existem estudos a respeito da participação de agentes civis e do apoio de setores da sociedade ao golpe de 64. O tema não é nenhuma novidade. Lembro, no livro do René Dreifuss “1964, a conquista do Estado”, de um capítulo dedicado ao complexo IPES/IBAD e ao envolvimento dos civis e de uma “elite orgânica” “na estratégia militar contra” o governo. A queda do governo de João Goulart, afirmou Dreifuss, “ocorreu como a culminância de um movimento civil-militar e não como um golpe das Forças Armadas contra João Goulart”. E ainda: “Apesar de a administração pós-1964 ser rotulada de ‘militar’ por muitos estudiosos de política brasileira, a predominância contínua de civis, os chamados técnicos, nos ministérios e órgãos administrativos tradicionalmente não-militares, é bastante notável”. Embora Dreifuss, no final da década de 1970, já apontasse a decisiva participação civil no golpe e nos governos militares, os estudos existentes sobre o tema são insuficientes e limitados. Precisamos de novas abordagens, iluminadas por novas fontes, orais e escritas, e que incorpore os documentos e as questões levantadas recentemente pela Comissão da Verdade.
Ao que parece, o
fenômeno de apoio a uma nova “intervenção militar” não se limita à classe média
elitizada imaginada pelos intelectuais de esquerda. O conceito de classe média
é bastante impreciso e insuficiente para dar conta do Brasil de hoje. O uso que
se faz é estereotipado e marcado, antes de tudo, por forte dose de
pré-conceito, o que dificulta muito o entendimento sobre as aspirações e visões
políticas dos setores identificados como de classe média. É preciso reavaliar
os conceitos com os quais se examina este tema, sobretudo o de classe. Ao
contrário do que sugeriu Renato Lemos, creio que é justamente a abordagem
centrada na noção de classe que pode estreitar o olhar e limitar o entendimento
das conexões dos militares com os setores da sociedade civil que apoiaram a ditadura. O conceito é redutor e já traz respostas apriorísticas. Tenho
mapeado, na medida do possível, a origem social dos movimentos e dos
simpatizantes, e percebido que a formação, o poder aquisitivo, a atuação
profissional e a faixa etária são bastante amplas e diversas, e que não se
restringe aos grandes centros urbanos do centro sul. Não adianta ficar
teorizando sobre os movimentos pró-intervenção com base num conceito
problemático, deslocado e anacrônico de classe média. Xingá-los de elitistas e
ignorantes ajuda menos ainda. É preciso botar a mão na massa e percorrer, com
instrumentos de pesquisas mais adequados, como entrevistas orais e netnografias
(porque não?), a anatomia destes grupos, a origem social, profissional e a
faixa etária dos participantes e simpatizantes. A netnografia, termo cunhado
pelo pesquisador norte-americano da área do marketing Robert Kozinets, entendida
como a adaptação dos procedimentos da etnografia ao ambiente virtual, pode ser
de grande valia para conhecer mais de perto os grupos e comunidades virtuais de
apoio ao retorno dos militares. O pesquisador, identificando-se ou não, entra
nas comunidades e passa a conviver com os grupos por um determinado período para
conhecer o perfil e a visão de mundo dos membros, e, a partir da observação
participante, extrair as informações que lhe permita entender melhor suas
motivações. As entrevistas orais com agentes militares e civis que participaram
do golpe e da sustentação da ditadura, como já vêm sendo feito, podem oferecer
novos ângulos de observação. O livro de entrevistas com militares que ocuparam
cargos importantes durante a ditadura, organizado por Maria Celina D'Araújo, intitulado
“Visões do Golpe”, é um bom exemplo.
A denominação “ditadura
civil-militar”, se observada com atenção, insisto, não diz respeito somente ao
passado ou a maneira como interpretamos o golpe de 64. Ela repercute as demandas
políticas urgentes do nosso tempo e a necessidade de revermos nossos conceitos
e categorias para entendermos melhor e lidarmos com mais maturidade com as
ondas de conservadorismo autoritário que, sob certas circunstâncias, reaparecem
no Brasil.
Roberto Marinho e o general Figueiredo.
O empresário e o general, de braços dados, é a melhor tradução da expressão “ditadura
civil-militar”.