Os
guarani e os jesuítas nas florestas do Paraguai: a noção de encontro colonial
como perspectiva de abordagem histórica (século XVII).
Compartilho aqui uma rápida reflexão sobre a noção
de encontro colonial originada nas aulas de história da América. Embora as
reflexões digam respeito ao século XVII da América Espanhola, acredito que elas
tenham alguma validade para pensarmos as complicadas relações – conflitos,
negociações, interações e distanciamentos - dos grupos indígenas com as sociedades
americanas contemporâneas. Mas este exercício deixo para vocês, caros leitores.
A noção de encontro colonial não é nova, mas também
nunca foi suficientemente desenvolvida. Mary Louise Pratt a utilizou para
caracterizar as diversas modalidades de contatos entre europeus e americanos no
contexto colonial. Da maneira como a emprego, seguindo a autora, sugere uma
situação de contato cultural inédito, no sentido de nunca antes vivenciado, que
aproxima sujeitos históricos que se desconheciam mutuamente, e que, sob o signo
do colonialismo, passam a conviver num espaço comum, trocando bens culturais e
simbólicos. Atravessado pelos diversos interesses do colonialismo e dos povos a
eles submetidos, este espaço conjugado é desigualmente compartilhado. É também
marcado por relações assimétricas de poder e pela sujeição e exploração das
populações locais. Estas populações, no entanto, agiam dentro dos espaços
delimitados pelo colonialismo com certa margem de autonomia e alguma margem de
negociação. Encarar as relações entre índios e missionários deste ponto de
vista significa estar atento aos sentidos do encontro colonial para ambos os
lados.
No início do século XVII, as florestas subtropicais
do antigo Paraguai foram palco de um surpreendente encontro colonial numa das
“zonas de contato” forjadas pelo colonialismo ibérico. De um lado, os povos
guerreiros guarani, desconhecedores da escrita, caçadores-coletores e
cultivadores em constantes deslocamentos geográficos, presos nas malhas do
colonialismo, sujeitados a exploração de mão-de-obra e com a sua área de
mobilidade geográfica cada vez mais reduzida; de outro, a Companhia de Jesus,
uma ordem que se construíra sob o signo da escrita, ponta de lança do
catolicismo romano reformado, que chegava à América com o firme propósito de
converter os povos gentios. Os jesuítas também estavam em constantes
deslocamentos geográficos, mas eram deslocamentos apostólicos. E ao contrário
dos indígenas, sua área de mobilidade expandia-se cada vez mais. Quanto mais
reduzido ficava o mundo guarani, mais o mundo se abria à ação missionária dos
jesuítas. Foram estes deslocamentos, sob a bandeira de Cristo, que trouxeram os
jesuítas à América e aproximaram os dois universos.
Os guarani, guiados pelas palavras proféticas dos
pajés, tinham na oralidade o meio de transmissão dos conhecimentos, dos
valores, dos ritos e das tradições míticas e cosmológicas, enquanto os jesuítas
tinham as verdades do deus único reveladas num livro, e na escrita epistolar a
sua principal forma de comunicação. Embora a oralidade e a escrita sejam
sistemas de comunicação distintos, não estou sugerindo uma dualidade. A
comunicação não se restringe ao universo da palavra. Entre a palavra falada e a
escrita, abrem-se inúmeras possibilidades de comunicação como a dança, o canto,
o desenho, a pintura, os gestos, os sons, que sugerem outras formas de
entendimento. Entre o dito e o escrito
insinuam-se a improvisação e o entrelaçamento das formas de comunicação,
característicos de um contato cultural marcado pelo ineditismo. Do contato
entre a oralidade primária dos guarani e a cultura letrada dos jesuítas
ocorreram inúmeros arranjos semânticos e ajustes linguísticos, originando uma
espécie de linguagem de conversão. Neste esforço de criar um horizonte de
entendimento, a escrita foi um suporte fundamental para o sucesso da catequese.
As dificuldades de comunicação impuseram aos missionários a elaboração de
gramáticas e catecismos em línguas indígenas. Em outras palavras, operou-se uma
redução gramatical da língua falada dos índios aos códigos escritos dos
missionários. A gramaticalização das línguas indígenas valeu-se da comparação,
isto é, da busca por equivalências entre as línguas indígenas e as línguas
conhecidas pelos missionários. Esta busca por equivalências aproximou
simbolicamente os dois universos e criou uma linguagem composta de elementos da
tradição religiosa e escrituraria católica dos jesuítas e da tradição religiosa
e cosmológica indígena.
O encontro entre a mística cristã e a
cosmologia guarani, sob o signo do colonialismo, resultou na “invenção” de
novos sujeitos: índios cristãos, índios infiéis, feiticeiros endiabrados,
padres feiticeiros (O termo invenção é, em parte, inspirado em Edmundo
O´Gorman. Segundo o historiador mexicano “a opção pelo termo invenção” é sugestiva pela ambiguidade que
possibilita: de um lado, o termo vem acompanhado de toda uma visão da América
na qual predomina o fantástico, o fabuloso, o legendário, o mítico; de outro, o
termo pode lembrar algo que é construído racionalmente. Por isso mesmo, sua
narrativa tem o sentido da construção de uma visão. Sua crítica tem o caráter
de uma crítica à historiografia que produziu o conceito de “descoberta”. O
uso que faço do termo sugere também os novos arranjos culturais, linguísticos e
identitários que resultam da interpenetração entre as formas culturais trazidas
pelos conquistadores e as das populações locais. Invenção tem portanto o
sentido de criação e recriação de sentidos para o mundo, de formas de convívio,
que considera os dois lados da relação colonial). Esta simbiose entre o colonialismo e a evangelização criou,
opôs e fundiu no imaginário da conquista personagens como o missionário jesuíta
Roque González e o cacique/pajé guarani Ñezú. Roque González, canonizado em
1988, dispensa apresentações. Ñezú era um poderoso líder que concentrava
poderes políticos e religiosos, e que vivia num lugar conhecido como Pirapó, no
Yjuí, na margem oriental do rio Uruguai. Foi descrito nas crônicas jesuíticas como
cacique e feiticeiro. Estes dois personagens podem servir de guias para as nossas
reflexões. Por vezes, o jesuíta convertia-se no feiticeiro e incorporava
poderes mágicos, andando de povoado em povoado realizando curas e batizando
crianças, ou então o feiticeiro se apoderava da mística cristã e improvisava
missas no interior das florestas para desfazer o feitiço do padre. Roque foi
morto em 1628 na redução de Caaró a mando de Ñezú, até então seu aliado na
evangelização do Yjuí. O corpo foi esquartejado, queimado e o coração arrancado
do peito. As vestes litúrgicas foram rasgadas e entregues a Ñezú, que as
vestiu. Símbolos cristãos – cruzes e a imagem da Virgem Conquistadora - foram
destruídos e os batismos realizados pelo missionário foram desfeitos. O chefe
guarani se apoderava das vestes do padre, destruía os símbolos que traduziam o
seu poder e se apropriava de ritos cristãos para reafirmar o seu poder na
comunidade. Depois da morte de Roque, e das diligências para capturar os
indígenas envolvidos, Ñezú desapareceu e nunca mais foi visto. A morte do padre
Roque, no entroncamento cultural onde as místicas se cruzaram, reúne vários
elementos destas apropriações recíprocas e traduz as tensões e fusões culturais
daquele momento. A conquista traumática da América aproximou universos mentais
e fundiu práticas religiosas, modos de expressão, originando criações híbridas
e improvisações culturais, sob o signo do conflito ou da conciliação. A morte do
padre Roque foi marcada por este jogo de oposições e fusões, a dupla face do
encontro colonial.
Por encontro, entendo o movimento de
duas culturas que, em determinadas situações, estabelecem contato e passam a
coexistir num espaço compartilhado. A palavra encontro, como forma de abordagem
histórica, tem suscitado fortes reações e, frequentemente, alguns mal
entendidos. A proximidade do Quinto Centenário de Descobrimento da América
reavivou a polêmica em torno dos termos utilizados para descrever a chegada dos
europeus à América. As acaloradas discussões se deram em torno das palavras descoberta e encontro. Para alguns não houve descoberta, pois já haviam povos
desenvolvidos vivendo por aqui, para outros não houve um encontro, mas um confronto.
Outros, negando as duas possibilidades, sustentaram não ter ocorrido nem um encontro, tampouco uma descoberta, mas uma invasão.
Aqueles que condenam o emprego da palavra para se referir à chegada dos
espanhóis na América, costumam afirmar que a ideia de um encontro esconde, ou
minimiza, o violento choque cultural e a dominação europeia sobre as culturas
nativas. Sustentam também que o termo encontro, assim como descoberta, possui
um forte conteúdo eurocêntrico e colonialista. Por conta disso, preferem o
emprego de categorias como conquista, choque, invasão, encobrimento,
supostamente mais críticas. Na
coletânea de ensaios intitulada Tempo e História publicada em 1992, organizada
por Adauto Novaes, alguns autores discutem a terminologia adotada para
descrever os acontecimentos ligados ao ano de 1492. Catherine Darbo-Peschanski,
por exemplo, afirma que o termo “encontro” sugere uma perspectiva mais neutra.
“Se por ‘descoberta’ entende-se ‘revelação’ e quase ‘nascimento’, a palavra
veicula uma ideologia eurocêntrica e colonialista, pois as culturas do
continente americano existiram e se desenvolveram bem antes de 1492. Quanto ao
‘encontro’, antes assumiu a forma de um enfrentamento.” Numa linha semelhante
de argumentação, Eduardo Subirats diz que em vão “os nomes de encontro ou
descoberta (...) tentam encobrir a palavra proibida desde o século XIV:
conquista.”
Como tento mostrar, o uso do termo encontro não implica no encobrimento de
conflitos nem no ocultamento da “palavra proibida”. A terminologia encontro, ao
contrário de encobrir alguma coisa, explora faces não muito visíveis em outras
nomeações das relações entre europeus e americanos. Penso que o uso de um termo
ou outro – conquista, encontro, invasão ou descoberta – depende muito do que se
pretende historiar. Não os vejo como excludentes, mas como termos com
diferentes cargas semânticas. Essas expressões mais contundentes, embora
focalizem o lado dramático e violento da conquista, conservam um ponto cego em
relação ao que escapa à lógica do conflito. Além disso, estes termos empregados
para fazer um contraponto à ótica eurocêntrica e colonialista acabam por
reforçar o que pretendem denunciar. A invasão, a conquista e o encobrimento
são, afinal, as ações do invasor, do conquistador, daquele que encobre.
Mudam-se os termos, explicitam-se os mecanismos de dominação, mas os sujeitos,
o verbo, a ação, continuam com aqueles que chegam através do mar.
Sustento,
em defesa do emprego da palavra, que encontro não tem exclusivamente um sentido
de aproximação amistosa, amigável ou amorosa. A palavra indica tanto a
possibilidade do entendimento, quanto do choque e do conflito (No dicionário
Aurélio, por exemplo, a palavra Encontro sinaliza uma variedade de significados
que vai desde um encontro amoroso a uma rivalidade, uma briga: ato de
encontrar; luta, briga e reencontro; confluência de rios; encontro de duas
pessoas, de finalidade amorosa, sem que as partes se conheçam; ajuste de
contas. Ou ainda: ao encontro de, em busca de, em favor de, na direção
de; de encontro a; no sentido oposto a, em contradição com, contra). A
serviço dos interesses coloniais ou realizando os ideais missionários da
Companhia de Jesus, os jesuítas foram ao encontro dos índios para convertê-los
e salvá-los, ou então vários grupos indígenas motivados por seus próprios
interesses foram ao encontro dos padres para escapar do jugo colonial. Mas o
mesmo ideal missionário dos jesuítas os fazia ir de encontro aos costumes indígenas,
às suas tradições, ao seu modo de vida, e colidirem contra grupos menos
dispostos à sua pregação ou lideranças que se sentiam ameaçadas com a sua
presença. É exatamente esta ambivalência da palavra que pretendo explorar. Um
encontro tanto pode ser um entendimento cultural como pode ser uma violenta
colisão. A ideia de um encontro pressupõe existirem dois lados, mesmo que a correlação
de forças não seja igual. Pressupõe também um desconhecimento do outro, de
ambas as partes. O contato dos guarani com os primeiros padres no final do
século XVI e início do XVII foi marcado por este ineditismo e descobertas
recíprocas da alteridade. Já os jesuítas que chegavam à América ou ao Paraguai
no século XVII, depois do estabelecimento das reduções, possuíam um conhecimento
prévio do que iriam encontrar. As cartas dos primeiros padres, lidas nos
colégios da Companhia de Jesus espalhados pelo mundo, já haviam se encarregado
de informar sobre estes povos. Mesmo
assim, o conhecimento do outro é relativo, indireto. Para os guarani os padres
que adentravam seus territórios, salvo nos primeiros encontros, também não eram
totalmente desconhecidos. A mística e a fama dos “novos xamãs” já corriam o mundo indígena. Este desconhecimento
total, ou parcial do outro, é o pressuposto da ideia do encontro, do estar
diante imprevisível.
A perspectiva do encontro tampouco
encobre as relações de dominação e exploração, apenas as recoloca de outra
maneira. Ao invés do dualismo reducionista que opõe dominadores e dominados ou
exploradores e explorados, insuficiente para dar conta da rica e complexa
dinâmica da vida social, proponho um olhar que inclua as mesclas e
improvisações culturais, as formas ambíguas e escorregadias de existência
social e o imponderável dos contatos culturais.
O avanço do colonialismo sobre
os territórios indígenas da bacia do Prata, aproximou estes universos estranhos
e forjou um espaço de convivência. Mas não se trata evidentemente de uma
convivência entre iguais. O desequilíbrio de forças em favor do poder colonial
e, por extensão, dos jesuítas era enorme. No entanto, se observarmos as
primeiras décadas da conquista espiritual, desconsiderando momentaneamente a
nossa visão retrospectiva privilegiada que nos mostra a o avanço implacável da
colonização, o que vamos encontrar é um quadro de relativo equilíbrio entre os
dois lados. E em diversas situações veremos os missionários e conquistadores em
visível desvantagem. Não podemos esquecer que naqueles espaços de selvas onde
foram erguidas as primeiras reduções o poder colonial ainda não se fazia
presente. Embora sob jurisdição espanhola, a autoridade colonial nestes espaços
era fraca ou inexistente. Os guarani ainda eram os senhores das planícies, das
florestas e dos rios e a entrada dos padres nestes territórios era mediada
pelos chefes indígenas (Ñezú afiançou a entrada do padre Roque no Yjuí). Nestas condições, o encontro entre jesuítas e
guarani nas fronteiras difusas do mundo colonial foi marcado por negociações,
arranjos e acordos. Mas também foi marcada por tensões, intolerâncias e
violentos conflitos, físicos e simbólicos, sobretudo entre os padres e os
líderes espirituais guarani, os pajés. Portadores de outra espiritualidade, os
inacianos chegavam à região trazendo nas suas palavras eloquentes discursos
condenatórios e promessas de salvação. Outros homens, não menos eloquentes, que
até então eram os guias espirituais dos guarani, se recusaram a aceitar a
redução e opuseram dura resistência aos padres. Quero dizer com isso que o
estabelecimento das reduções em território guarani não foi uma simples
imposição colonial-jesuítica. Foi um projeto colonial estratégico, mas a sua
realização dependeu de mediações e interesses de ambos os lados. É necessário,
pois, examinar tanto o lado do redutor quanto o do reduzido.
A ideia
de um encontro, no sentido de troca cultural, permite fugir das visões
dualistas e polarizadas sobre os sujeitos em questão. Os jesuítas ora foram
vistos como santos, abnegados protetores e salvadores dos pobres índios, ora
foram pintados como demônios, farsantes e intransigentes, que estabeleceram um
regime coercitivo nas reduções. Os índios, por sua vez, foram bons ou maus
selvagens, dependendo do projeto ou da teoria a ser comprovada. Foram a página
em branco ou o canibal inveterado. O mesmo dualismo que demonizava os
conquistadores e missionários, vitimizava os índios, transformando-os em meros
objetos de catequese, conquista e exploração. Quando não foi vítima indefesa, o
índio resistiu heroicamente às imposições do colonialismo na defesa do seu modo
de vida. De uma maneira ou de outra, o que prevalece é a lógica colonial ou a
denúncia dela. O historiador Héctor Bruit, por exemplo, construiu a célebre
tese da dissimulação dos vencidos. De acordo com esta hipótese o fracasso
relativo da conquista espanhola deveu-se à resistência camuflada dos índios.
Abalados inicialmente pelo trauma psicológico da conquista e movidos,
posteriormente, por uma “vontade de
resistir”, os índios desenvolveram “uma série de atitudes que enganaram e desorientaram os conquistadores”.
A “resistência indígena” à dominação e exploração europeia valeu-se
de armas como o silêncio, a teimosia, a mentira e a bebedeira como instrumentos
de defesa e de manifestação do inconformismo “perante a nova sociedade que os explorava”. Graças a esta
resistência sub-reptícia conseguiram sobreviver à destruição e ao genocídio e
conservaram as suas “tradições
culturais”. Bruit examina a conquista hispânica e a sociedade
colonial a partir da dualidade entre dominação e resistência, vencedor e vencido.
De um lado, os espanhóis invasores e exploradores, impondo sua dominação, seus
valores e crenças, de outro, os índios explorados, massacrados, resistindo à
destruição das suas culturas. Esta perspectiva que aprisiona o índio dentro de
categorias como vencido, explorado e massacrado, acaba por vitimizá-lo e não
percebê-lo como sujeito de ação, mas apenas de reação a uma determinada
situação. Restava aos vencidos resistir à aculturação. Não existe nesta lógica
a possibilidade da integração, pois isto significaria a concretização da
conquista hispânica.
Bruit
questiona a noção da miscigenação e o seu corolário, isto é, a criação de uma
nova sociedade a partir da fusão de aspectos das culturas indígenas com traços
da cultura europeia. A hipótese da miscigenação encobriria o fracasso relativo
dos conquistadores perante as performances indígenas. Esta abordagem supõe uma impermeabilidade
cultural que impede as mesclas, as mestiçagens. Os espanhóis parecem vestir uma
armadura cultural impenetrável, enquanto os índios fingem incorporar os novos valores para preservar
alguma essência cultural de um passado
longínquo. Algumas situações que sugerem um hibridismo entre
formas religiosas indígenas e o catolicismo, Bruit vê um jogo de esconder
indígena que teria “claramente” enganado
os espanhóis. Recorrendo a um fragmento da crônica peruana de Poma de Ayala,
revela as máscaras usadas pelos índios para ludibriar os conquistadores e agir
sobre a sociedade que eles organizavam: “Que os mencionados índios bêbados, cristãos,
sabendo ler e escrever, usando rosário, vestidos como espanhóis, com
colarinhos, e parecendo santos, na bebedeira falam com o demônio e reverenciam
as guacas, os ídolos e o Sol.”
Héctor Bruit não enxerga na
descrição do cronista uma possível fusão do catolicismo com a espiritualidade
andina, mas uma dupla atitude indígena. Os traços espanhóis e cristãos
incorporados pelos índios são interpretados como um jogo de faz de conta, de
aparência e opacidade, sugerindo um falso efeito de integração. Os gestos dos
indígenas e dos conquistadores são percebidos exclusivamente a partir da
relação colonizador/colonizado. Esta dicotomia, que secciona os sujeitos em
identidades fixas, é tomada como um dado e não como categorias historicamente
construídas, que respondiam a determinadas expectativas. Em estudos mais
recentes de historiadores, antropólogos e etno-historiadores, têm-se
sistematicamente apontado o eurocentrismo e o reducionismo destas abordagens.
Examinando e revisitando o tema do encontro entre culturas, alguns
pesquisadores vêm focalizando as mesclas culturais e as redefinições de
identidades num mundo em transe pelos efeitos da conquista. Com isso, estão se
multiplicando pesquisas que dedicam especial interesse pelas culturas indígenas
e pelas formas como reagiram/interagiram com os europeus. Para além das
construções binárias, e na esteira destes novos estudos, índios e jesuíta são
vistos aqui a partir de uma multiplicidade de olhares, relativos à complexidade
das formas de contatos que estabeleceram.
Ñezú e Roque González são os
fios condutores privilegiados para refletir sobre as diversas faces deste
encontro. Não os considero como representativos dos jesuítas e dos indígenas,
tampouco de uma suposta cultura ocidental e outra indígena. Sob vários aspectos,
o jesuíta crioulo que virou santo e o feiticeiro guarani perseguido e
desterrado, são figuras singulares e deslizantes do universo colonial que
escapam a uma tentativa de classificação: um como modelo de evangelizador, o
outro como modelo de resistência indígena. Eles traduzem o jogo de interesses
dos dois lados, as negociações e as fusões de horizontes simbólicos, que
presidiu o colonialismo, quer sob o signo do conflito quer da conciliação. A
morte do padre Roque é um acontecimento de enorme apelo simbólico que revela as
incertezas, as angústias, as aproximações e as diferenças irredutíveis de ambos
os lados do encontro. Por isso mesmo é um acontecimento que nos abre inúmeras
possibilidades de interpretação sobre um tema já bastante visitado pelos
historiadores.