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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A NOVA “BOBAGEM” OU A ESQUIZOFRENIA SOCIOLÓGICA DE MARILENA CHAUÍ, A FILÓSOFA OFICIAL.


A NOVA “BOBAGEM” OU A ESQUIZOFRENIA SOCIOLÓGICA DE MARILENA CHAUÍ, A FILÓSOFA OFICIAL.

 


No último dia 13, em Goiânia, num evento conhecido como Café com Ideias, Marilena Chauí voltou a “teorizar” sobre a classe média brasileira. Em maio, num discurso proferido no lançamento do livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma”, ela manifestou, de maneira contundente, o ódio que sentia pela classe média. Agora voltou à carga, mas para desacreditar o surgimento de uma “nova classe média” brasileira.

Além de insistir no velho dualismo ortodoxo de classes que rege o mundo capitalista (classe trabalhadora X burguesia), Chauí sustenta que a “classe média” não tem função econômica, mas ideológica. A “classe média” é uma “correia de transmissão das ideologias das classes dominantes”. O uso da “correia de transmissão” (“cinta de material flexível, normalmente feita de camadas de lonas e borracha vulcanizada, que serve para transmitir a força e movimento de uma polia ou engrenagem para outras”) como metáfora para expressar o significado social da classe média é assaz revelador do mecanicismo desta visão de mundo. A ideia de uma “correia de transmissão”, dado o gosto pela simplificação, pode se converter num mecanismo de explicação que dispensa a pesquisa e a reflexão.

A “nova classe média”, que ela distingue da “antiga classe média”, é uma “bobagem sociológica”, já que foi uma ampliação da classe trabalhadora. Na sofisticada visão da filósofa, em termos sociológicos, tudo se resume a duas classes e seus epifenômenos. A classe média é uma ampliação da classe trabalhadora que funciona como correia de transmissão das classes dominantes (Entenderam?). Em maio de 2013 Chauí disse que odiava a classe média. Então deixa ver se eu entendi: o que ela odeia é, na verdade, uma “bobagem sociológica”?

A simplificação, a serviço da esquerda utilitária, beira a esquizofrenia. Assim é fácil explicar o mundo e suas “contradições”. Basta reduzir a realidade a duas categorias sociológicas e suas variações, definir quem esta a favor de quem (conservadores X progressistas) e está tudo resolvido. Se a realidade desmentir a tese, afirme, com a autoridade de uma filósofa, que tudo não passa de uma grande “bobagem”, e pronto. A militância acrítica espalha o novo evangelho nas redes sociais e molda a realidade de acordo com os surtos sociológicos da filósofa.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

REFLEXÕES SOBRE A “RESISTÊNCIA INDÍGENA” À DOMINAÇÃO ESPANHOLA NA AMÉRICA DO SUL.



REFLEXÕES SOBRE A “RESISTÊNCIA INDÍGENA” À DOMINAÇÃO ESPANHOLA NA AMÉRICA DO SUL.



As lutas e a “resistência indígena” à colonização espanhola são temas centrais da historiografia latino-americana. Todavia, parecemos desconhecer tanto os sentidos das lutas travadas no passado colonial quanto os deste início de século. A idealização das culturas indígenas e as projeções retrospectivas (que projetam, segundo Anna Roosevelt, o presente etnográfico para os tempos da conquista) talvez sejam ainda os maiores obstáculos à compreensão do que comumente chamamos de “resistência indígena” (As reflexões são extensivas à “resistência indígena” na América Portuguesa).

A contundência da conquista (séculos XVI ao XVIII) e os impactos sobre os povos americanos despertaram o interesse de pesquisadores do mundo todo, dedicados ao estudo das diferentes formas de resistência que, do México ao Rio da Prata, os indígenas ergueram contra a dominação espanhola. As abordagens concentram-se no México e no Peru, regiões de grande densidade demográfica convertidas em centros administrativos do poder colonial. Nestas regiões explodiram inúmeros e violentos conflitos contra conquistadores e colonizadores, que resultaram em quedas populacionais dramáticas. Ao mesmo tempo, produziu-se e conservou-se uma abundância de relatos sobre estes acontecimentos. As regiões periféricas, como o Rio da Prata, embora bastante estudadas, receberam bem menos atenção.

 A categoria “resistência” quase sempre é empregada para referir-se aos movimentos de contestação e oposição à dominação colonial. Na maioria dos estudos parte-se do binômio dominação/resistência, pressupondo a existência de pólos antagônicos – indígena e europeu – marcados por traços identitários bem definidos e inegociáveis. O que predomina é a lógica do conflito, do enfrentamento, como se as sociedades indígenas fossem sempre “opostas à sociedade colonial”. O desvio de comportamento é explicado por categorias como colaboração e cooptação. Como se o índio que rejeitasse e se opusesse à dominação colonial estivesse necessariamente defendendo sua cultura e falando em nome das populações indígenas, e aquele que buscasse a integração, ou alguma forma de adaptação, estaria colaborando com os dominadores. A dualidade que preside este olhar sobre o passado parece sugerir a existência de um eterno conflito entre potências luminosas, encarnadas nos movimentos de resistência, contra as forças do obscurantismo, reunidas em torno das elites dominantes, neste caso os conquistadores. Daí o romantismo que envolve os ditos movimentos de resistência. O campo de visão do passado, sob este ângulo apertado, que focaliza apenas os conflitos, fica demasiadamente estreito. O conflito é apenas uma das múltiplas facetas das relações colonizadores/colonizados.

 A lógica do conflito tem mais a ver com o olhar sobre o passado do que com o passado propriamente dito. Essa visão da “resistência indígena” projeta no passado certa idealização que reveste os movimentos indígenas com uma aura de heroísmo, dignidade e senso de justiça que mais se parecem com as demandas do presente sobre direitos sociais e políticos, a luta pela terra e por justiça dos ditos “excluídos” e “oprimidos”. Transfere-se para as lutas travadas no passado – que tinham lá as suas próprias razões – as expectativas a serem alcançadas no presente. Por vezes, a suposta “resistência indígena” é utilizada como fomento para certas empreitadas políticas, emprestando suporte histórico, por exemplo, para o chamado “Processo Bolivariano”, na Venezuela de Chávez, que instituiu em 20 de outubro de 2002, pelo Decreto Presidencial número 2.028, o “Día de la Resistência Indígena”. De acordo com um site bolivariano:

 “La resistencia indígena ante el colonialismo impuesto hace 512 años, ha sido una resistencia cultural e ideológica. Silenciada históricamente por las élites -y aún hoy por el aparato educativo, la iglesia y sobre todo por los medios de difusión masivos-, la resistencia contra el colonialismo y contra todas las ideologías dominantes en los actuales momentos es un proceso, una práctica, que debe ser asumida no sólo por los pueblos indígenas, sino por todos y todas las personas que quieren un mundo mejor.” (Ver: “Ideología, colonialismo y día de la resistencia indígena.” Disponível em www.aporrea.org/actualidad/a10082.html).

A autodenominada “revolução bolivariana” apresenta-se como herdeira das lutas indígenas contra o colonialismo. Instrumentaliza a “resistência cultural indígena” como antecedente legítimo da ruptura com “la matriz ideológica de la dominación ocidental” e com o capitalismo, que converte “todo en mercancía”. As referências pré-colombianas, devidamente selecionadas, e a suposta recusa indígena do modelo de civilização ocidental, são as âncoras históricas desses movimentos de ruptura com o colonialismo e com as heranças europeias. A “resistência indígena”, anacrônica, depurada, genérica e descontextualizada, vira estandarte desses movimentos. As rebeliões indígenas, transformadas num patrimônio metafísico das Américas, espécie de entidade transhistórica que flutua sobre as “consciências críticas” e as “forças de libertação”, são apresentadas como um ideal de defesa de uma cultura ameaçada e de luta contra todas as formas de dominação e exploração. 

Mas a noção de resistência aplica-se somente aos eventos de oposição à ordem colonial? Quando em 1609 o cacique Arapizandú procurou o governador Hernandarias para selar um acordo e pedir que enviassem missionários às suas terras com o propósito de predicar o evangelho e fundar reduções, com a condição de livrar seu povo da encomienda, ele estava colaborando, adaptando-se as novas circunstâncias, ou resistindo à “dominação espanhola” negociando com os espanhóis? (Arapizandú era cacique dos índios guarani, chamados na época de Paranáes, e estendia os seus domínios na região situada ao sul do Tebicuary e Sudoeste de Assunção). O cacique buscava uma forma de inserção na sociedade colonial envolvente, que não fosse a encomienda, manobrando nas fendas que se criavam entre as forças coloniais conflitivas: os jesuítas, a Coroa e os encomenderos. Nestes casos, adaptação e colaboração podem ser vistos como formas de resistência? Ou a categoria “resistência” diz respeito apenas às reações de contestação, oposição e conflito contra uma determinada ordem, como aquela que o cacique Ñezú moveu contra os três missionários da Companhia de Jesus, matando-os e declarando guerra ao cristianismo? (Ñezú era um poderoso cacique e feiticeiro que vivia na região do Pirapó, no Yjuí, atual Rio Grande do Sul. Na rebelião que moveu contra os missionários jesuítas mandou matar o padre Roque González e seus dois companheiros). A origem latina de resitência – resistentia – comporta diversos significados, entre os quais: oposição, reação, defesa e obstáculo. A lógica do conflito associada à palavra resistência não esgota a interpretação das estratégias indígenas frente ao colonialismo. Enfatizar um dos sentidos de resistencia é uma eleição do historiador. Os acordos contra o trabalho compulsório e pela manutenção de um espaço indígena livre da interferência espanhola – mesmo que para isso fosse necessário abandonar o antigo modo de vida – são também formas de resistência, mas defensivas e negociadas, que visam a adaptação, não a ruptura. Num estudo sobre a “resistência negra” no Brasil escravista, Eduardo Silva sugeriu que na “escravidão nunca se vivia uma paz verdadeira, o cotidiano significava uma espécie de guerra não convencional.” Nesta guerra, na qual escravos e senhores buscavam ganhar “posições de força”, a resistência à escravidão não se dava somente pela via do conflito, mas também por ela. “Ao lado da sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de conflitos.” Entre Zumbi, que encarna a contestação violenta à escravidão, e Pai João, que representa a submissão conformada, desenrolavam-se inúmeras formas de resistência que podiam ir das negociações por um pedaço de terra para o cultivo dos escravos, a chamada “brecha camponesa”, às fugas e revoltas. A negociação, mostra Eduardo Silva, era uma posição intermediária entre a aceitação da escravidão e a ruptura pelo conflito. Era por meio de negociações com os senhores que os escravos inventavam o seu viver num mundo adverso que lhes reservava a condição de meros objetos de trabalho (Ver: SILVA, Eduardo e REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra do Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1999). Com a licença do autor, diria que entre Ñezú, que se rebelou contra os missionários, e o índio que aceitou sem condições a evangelização, abre-se um leque de possibilidades de resistências. Entre a contestação violenta e a pronta adesão havia uma zona intermediária que oscilava entre a aceitação e a repulsa. E estas posições podiam mudar no decorrer do “jogo”. O pajé rebelde de hoje tornava-se o mais devoto e prestativo dos fieis amanhã, e o cacique batizado que confiara seu povo ao missionário poderia rebelar-se ao menor sinal de insatisfação (como ocorreu com Ñezú).

 John Monteiro, as vésperas do V Centenário do Brasil, fez uma bela proposição para se repensar a resistência e a história indígena:
 “Para se repensar a resistência dos índios, faz-se necessária uma reinterpretação abrangente dos processos históricos que envolviam essas populações. Mais do que isso, é preciso também reavaliar como os diferentes atores nativos criaram e construíram um espaço político pautado na rearticulação de identidades, contemplando evidentemente não apenas as formas pré-coloniais de viver e proceder, como também e especialmente a sua inserção – ou não – nas estruturas envolventes que passaram a cercear cada vez mais as suas margens de manobra. Assim, tanto as sociedades que se mantinham avessas ao contato, por assim dizer, como as que foram mais intensamente envolvidas nos esquemas coloniais tiveram que adotar novas formas de resistência, muitas vezes lançando mão de estratégias, retóricas e materiais buscados entre os europeus.”

Além da proposição, um chamado aos historiadores. A reavaliação das formas de resistência passa pela reconstrução detalhada dos cenários, ou “processos históricos”, nos quais estas populações interagiam com os colonizadores. A contribuição mais significativa que nós historiadores podemos oferecer ao estudo das culturas indígenas é exatamente esta reconstrução minuciosa das relações indígenas/colonizadores baseada numa leitura atenta e menos dualista da documentação colonial. 
 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O INACREDITÁVEL BARÃO DE MUNCHAUSEN DE TERRY GILLIAM. OU: O Discurso Cinematográfico Anti-Racionalista de Terry Gilliam.

O INACREDITÁVEL BARÃO DE MUNCHAUSEN DE TERRY GILLIAM. OU: O Discurso Cinematográfico Anti-Racionalista de Terry Gilliam.

Em plena “era da razão”, do progresso e do otimismo das luzes, uma figura lendária emerge das sombras, invade o palco de um teatro caindo aos pedaços, desafia os saberes constituídos, desdenha do racionalismo triunfante, desembainha sua espada e brada por um mundo menos lógico e mais poético, com direito a Cíclopes e Deusas de inominável beleza. É assim que Terry Gilliam nos apresenta o seu Barão de Munchausen (John Neville): um homem que se recusava a viver num mundo que desconfiava da imaginação e fazia da ciência e do progresso os carros-chefes da inexorável marcha da história rumo ao luminoso futuro que se anunciava. O otimismo racionalista entediava o Barão. Definitivamente, ele não se via vivendo num mundo guiado unicamente pela razão.
Munchausen não se opõe à razão propriamente dita (a faculdade subjetiva do pensar). Sua revolta é contra a perversidade da razão ou, se preferirem, a instrumentalização da razão, também conhecida como “razão instrumental”, identificada como instrumento de dominação, de exploração, de poder e de subjugação dos seres humanos e da natureza (A expressão “razão instrumental” foi cunhada por Max Horkheimer no livro “Dialética do Esclarecimento”, escrito em parceria com Adorno). O progresso técnico e científico não trouxe a tão desejada maioridade. A razão emancipatória sucumbiu e foi engolida pela racionalidade técnica. De instrumento de libertação humana na luta contra os obscurantismos, a razão foi convertida numa entidade tentacular castradora da autonomia individual que alcançou todas as esferas da vida social. O velho Barão, imaginado por Gilliam, se recusava a ser um número, um dado estatístico ou uma curva qualquer de uma massa quantificável, mensurável e controlável. Munchaussen é a crítica à hipertrofia da razão. A racionalidade tornou-se uma prisão lógica e abstrata. Munchausen pulou fora do festejado trêm do progresso e se refugiou na fantasia.
O filme de Terry Gilliam “As Aventuras do Barão de Munchausen”, de 1988, é livremente inspirado nas narrativas de Karl Friedrich Hieronymus, um nobre alemão que viveu entre 1720 e 1797. Karl Friedrich, o “verdadeiro” barão de Munchausen, foi pajem do duque Anton Ulrich de Braunschweig, acompanhando-o em campanhas militares na Rússia. Em 1840 foi promovido ao posto de tenente. Depois de 12 anos dedicados às armas abandonou o ofício e foi viver na propriedade rural da família em Bodenwerder, em Hanover. Os hóspedes e amigos que visitavam a família eram entretidos pelo barão que se deliciava em contar as suas aventuras nas guerras, nas caçadas e nas extraordinárias viagens, adornadas com mentiras e exageros extravagantes. Mas o velho Karl o fazia de tal forma, e com tamanha seriedade e naturalidade, que quem não o conhecia acreditava. O homem virou uma lenda e suas mentiras extraordinárias ganharam o mundo. Rudolph Erich Raspe, um bibliotecário de Hanover de péssima reputação, que levava a vida aos trancos e barrancos, sempre atrás de dinheiro, foi quem reuniu as narrativas do barão e as transformou em livro. Escreveu as aventuras do barão muito provavelmente por dinheiro. Outras histórias do Barão sobre caçadas foram reunidas e apareceram anonimamente em Berlim na revista Vade Mecum für Lustige Leute entre 1781 e 1783. Novas edições foram surgindo ao longo dos anos, com novos acréscimos, alguns inspirados na Vera Historia, de Lucian (escritor grego do século II), e sua narrativa satírica da viagem à lua, nas Voyages Imaginaires, de 1787, nas memórias do barão de Tott, nos voos de balão de Montgolfier e Blanchard, nas buscas pelas nascentes do Nilo de James Bruce e na expedição do capitão Phipps ao polo norte. Como bem disse Ana Goldberger, as narrativas sobre as aventuras de Munchausen são “uma colcha de retalhos. Raspe é responsável apenas por seu núcleo inicial, mas esse núcleo é dotado de tal força que os acréscimos não conseguiram estragar a obra” (As informações sobre as diferentes edições e os acréscimos às aventuras do barão foram retiradas da apresentação da obra “As Aventuras do Barão de Munchausen”, de Rudolf Raspe, com ilustrações memoráveis de Gustave Doré, publicada no Brasil em 2010 pela Iluminuras).



Terry Gilliam fez uso muito particular das aventuras de Munchausen e não se prendeu ao núcleo narrativo de Rudolf Raspe. Para criar o seu próprio Barão fez um recorte seletivo das clássicas aventuras: o desentendimento com sultão de Constantinopla, uma inacreditável viagem de balão, a viagem à lua, uma inesperada viagem ao interior de um vulcão, uma fantástica escapada do estômago de um peixe-mostro e um voo espetacular numa bala de canhão. Nas mãos de Gilliam as aventuras do Barão de Munchausen receberam um tratamento bastante original e foram inseridas num contexto discursivo de lutas anti-racionalistas. Michael Löwy usou, e usou com muita originalidade, diga-se de passagem, a figura do Barão, particularmente a narrativa em que ele se salva e salva o seu fiel cavalo Bucéfalos do afogamento erguendo-se das águas de um pântano puxando o próprio cabelo, como metáfora para desmistificar a objetividade científica sustentada pelo positivismo (Ver o belo livro de Löwy “As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchausen”). Terry Gilliam fez um caminho diferente e usou as aventuras do Barão para confrontar o racionalismo e uma de suas versões mais agudas e exacerbadas que foi o positivismo.
Gilliam, ex-integrante do grupo inglês Monty Python, é o que em cinema podemos chamar de “autor”. Seus filmes são inconfundíveis, caros, suntuosos, criam um mundo à parte e nem sempre atraem o grande público. “As Aventuras do Barão de Munchausen” é um bom exemplo. O filme custou entre 40 e 46 milhões de dólares e arrecadou apenas 8 milhões. Foi um fracasso retumbante de público, que contou com um boicote do estúdio (Columbia) que parecia torcer pelo fracasso do filme e do diretor. Mas convenhamos, os filmes de Gilliam, este em particular, não são para o paladar do público que lota as salas de cinema mundo afora para assistir blockbusters como “Piratas do Caribe".
O filme é grandioso nos enquadramentos, exuberante na cenografia e contou com a fotografia impecável do experiente Giusseppe Rotunno, que trabalhou com os mestres Fellini e Luchino Visconti (Ver a fotografia do incomparável Amarcord). Rotunno usou filtros e lentes para criar diferentes sensações em diferentes ambientes (no interior do vulcão usou cores quentes e fortes, no estômago do monstro que devorou o barão e sua turma criou uma atmosfera gélida para traduzir o ambiente hostil, etc.). Os efeitos especiais, produzidos à moda antiga, e as soluções cinematográficas são impagáveis.
Vamos ao filme?  
No começo do filme, em meio ao cerco fictício dos turcos a cidade (que parece ser uma cidade mediterrânea), uma Companhia de Teatro itinerante encena as aventuras do Barão de Munchausen para uma plateia que busca no teatro uma fuga para os horrores da guerra. Repentinamente, um homem bastante velho invade a cena e diz ser o verdadeiro Barão. Afirma que é a causa do cerco turco e que somente ele pode por fim à guerra. Com exceção de uma menina chamada Sally (a excelente Sarah Polley), que vive nos bastidores do teatro, todos insultam o velho chamando-o de lunático. Pacientemente, ele pede que todos se acalmem e escutem o que tem a dizer. O público se acalma e o velho começa sua narrativa. Tudo começou, há muito tempo, com uma aposta com um Sultão, que o recebeu no seu palácio. Munchausen provou do melhor vinho da adega do seu anfitrião, aprovou, mas afirmou que conhecia melhores. Divergências à mesa, propõe-se uma aposta: o Barão deve, em uma hora, apresentar ao sultão o vinho da rainha da Rússia (a quem teve a honra de declinar um pedido de casamento). Caso não consiga, o Sultão terá como prêmio a sua cabeça. Caso vença, poderá levar do tesouro do Sultão tudo o um homem puder carregar. O problema é que o vinho está na Rússia e eles em Constantinopla! Nada demais para quem tem como servos/companheiros homens com extraordinários poderes. Nas suas aventuras Munchausen sempre se fazia acompanhar de quatro amigos, que possuíam fantásticos recursos: Berthold, Adolphus, Albrecht e Gustavus.  Berthold (interpretado por Eric Idle, companheiro de Gilliam no Monty Python), rápido como o vento, disparou em direção à Rússia. Foi uma longa espera. Quando o último grão de areia pipocava na ampulheta Berthold chega com a valiosa garrafa. Aposta vencida, o Barão dirige-se com seus amigos para o tesouro do sultão. Adolphus, homem de incomensurável força, consegue limpar o tesouro e carrega-lo nas costas. Quando o Sultão soube da tragédia era tarde demais. Desde então ele está à procura do Barão. O cerco à cidade está explicado. O Barão é causa da guerra. Ou, poderíamos dizer: a guerra tem causas que a razão desconhece.

À medida que vai narrando suas aventuras o palco do teatro, como num passe de mágica, se metamorfoseia no harém do Sultão de Constantinopla. Já não distinguimos mais as fronteiras entre e a realidade e fantasia. E reside justamente neste ponto a força do filme de Gilliam. Imaginação e realidade se fundem de tal maneira que não podemos, ou não conseguimos, vê-las como esferas opostas e irredutíveis.


Depois de contar sua aventura em Constantinopla, e explicar as causas da guerra, o velho Barão promete salvar a cidadela. Para isso, precisa encontrar seus velhos companheiros de aventuras. Elabora um mirabolante plano de fuga para escapar ao cerco. Pede educadamente que as moças lhe emprestem suas roupas de baixo e constrói com elas um balão. A menina Sally, a única que de fato acredita no velho, se esconde no balão e, contra a vontade do Barão, embarca na jornada. Daí para frente ela vai ser o ponto de contato da dupla com a “realidade”. Ao mesmo tempo que, como criança, ainda tem um pé na fantasia, e acredita no Barão, Sally quer salvar a cidade e as pessoas queridas que lá deixou. Ela puxa o barão para a terra quando ele, deslumbrado com Afrodite ou desiludido com a humanidade, quer abdicar de vez do mundo.



A primeira parada da improvável dupla é a lua. Munchausen se lembra de ter deixado um dos seus companheiros por lá. Sally se mostra reticente, mas a naturalidade com o barão encara a situação a faz embarcar na fantasia. Na lua vivem o rei e a rainha. São figuras lunáticas e desmedidas, verdadeiras caricaturas platônicas. Vivem a eterna oposição do corpo com a alma. A cabeça, destacável do corpo, busca o conhecimento, as essências. O corpo, por sua vez, vive preso aos desejos e necessidades físicas. A cabeça almeja o cosmos, o corpo a impede. As cabeças, eventualmente, se separam dos corpos e se libertam para voos maiores. Mas uma coceira no nariz as faz lembrar o quão necessárias, por vezes, são as mãos.
Resgatado o amigo que ficou na lua, o trio parte em busca do restante da turma. A fuga da lua (o rei da lua, por ciúmes, quer matar o barão) é simplesmente um desafio munchauseano (acabei de inventar a palavra) às leis da física e ao conhecimento científico. O trio anda até a ponta de uma lua minguante e amarra uma corda na pontinha da lua para poder descer. No meio da descida falta corda. Aí entre em cena a criatividade fantástica do Barão que, sem opções, corta a parte de cima da corda e amarra embaixo. O plano só dá errado quando Berthold coloca a ideia do barão em xeque ao duvidar do plano. O trio despenca e cai no interior de um vulcão. A queda, segundo o Barão, foi amortecida por correntes de ar quente. No vulcão, representado como uma fábrica moderna na qual o deus Vulcano (Oliver Reed) explora a mão de obra de gigantes, eles reencontram Adolphus. Terry Gilliam cria uma sequência antológica ao reproduzir o nascimento de Afrodite, de Botticelli, no vulcão. A deusa (Uma Thurman, com 17 anos) emerge nua das águas no interior de uma concha, para o deslumbre do Barão. Rapidamente estabelece-se uma conexão entre eles (o Barão era um sedutor irresistível). Quando Vulcano, o enciumado esposo de Afrodite (Vênus), se dá conta, os dois estão dançando uma valsa a dez metros do chão.
Transtornado, o deus interrompe a valsa e arremessa os “intrusos” por um redemoinho para fora do vulcão. Inexplicavelmente, o Barão e sua turma acabam sendo jogados em algum lugar dos mares do sul. Estão agora em alto mar, à deriva. Avistam uma ilha e nadam em sua direção. A ilha começa a se mover e assume aspecto aterrorizante. Era um mostro camuflado. O grupo é engolido e lançado nas entranhas da criatura. Explorando o lugar descobrem que não estão sozinhos. Uma luz no fim do monstro revela habitantes mais antigos. Para surpresa de Barão os habitantes do monstro são seus antigos companheiros Albrecht e Gustavus. O grupo está, enfim, reunido. Festejam o reencontro, sentam-se a volta de uma mesa improvisada e se entregam a um eterno jogo de cartas. Simbolicamente a morte também esta sentada à mesa. Sally, sempre ela, lembra ao Barão que eles precisam salvar a cidade. Se dependesse do Barão aquela seria a sua última e coerente morada. O mundo da lógica e da ciência o aborrece. O estômago do monstro, e os velhos amigos reunidos, lhe parecem bem mais convidativos. Mas Sally insiste. O Barão não resiste aos apelos da menina e decide que chegou a hora de deixar o monstro. Mas como, todos perguntam? O Barão, claro, tem uma carta na manga. Tira um pote de rapé do bolso e sopra. O monstro entra em ebulição, se contorce e, por fim, jorra todos para fora num espirro épico! O grupo, com exceção do Barão, cai dentro de um bote. (Não me perguntem como. Não vamos racionalizar as aventuras do velho Munchausen. São como os antigos mitos. Ou, como diria Vico, são “impossibilidades críveis”). Todos procuram pelo Barão. De repente ele aparece emergindo do fundo do oceano, puxando o próprio cabelo, e montado no fiel Bucéfalos. A bordo do pequeno bote partem em direção à cidadela sitiada pelos turcos. Os amigos do Barão estão velhos e, aparentemente, perderam os fantásticos poderes. Como enfrentar o poderoso exército invasor? Num gesto calculado, Munchausen se entrega ao Sultão, oferecendo a cabeça em troca da libertação da cidade. O gesto é uma encenação. Os velhos amigos precisam de uma motivação. Quando se dão conta que o Barão vai ser decapitado os poderes ressurgem e a batalha assume uma dimensão extraordinária. De posse dos fantásticos poderes o grupo derrota o exército turco. A cidade está salva.

Do teatro das batalhas o Barão reaparece no palco do velho teatro. Sally olha para o velho que acabou de terminar sua narrativa e diz: “isso aconteceu mesmo?” O Barão olha para a menina e pisca. E anuncia para a plateia que a cidade esta salva. Ninguém acredita. O Barão exorta as pessoas a se dirigirem aos portões para verem com os próprios olhos. Abrem-se os portões e, para a surpresa de todos, os turcos foram derrotados e bateram em retirada.

Os lugares que o Barão visita, intencionalmente ou não, são lugares ainda não mapeados e controlados pela razão exploratória e esquadrinhadora. A lua, o centro da terra (vulcão) e os monstros (fundo do mar) pertencem mais ao reino da imaginação. Foi nestes lugares que o Barão foi buscar reforços para libertar a cidade dos turcos e, principalmente, do burocrata lógico que a governa. A guerra é contra os turcos, mas o grande inimigo do Barão não é o Sultão.  A guerra contra os turcos é a moldura que encerra o confronto entre a imaginação e o racionalismo. O administrador da cidade (Jonathan Pryce), que a governa cientificamente (que encarna um proto-ditador científico-positivista), é o arqui-inimigo do Barão. Ele repudia tudo o que escapa à fúria cartesiana das certezas e das verdades comprováveis. A guerra para ele, nas palavras do Barão, é um joguinho lógico.


Do começo ao fim do filme a morte, representada por um esqueleto vestido em trajes escuros e rotos, portando uma foice, persegue o Barão. A morte representa o viés totalitário da razão em sua obstinada luta para matar a imaginação. Logo após libertar a cidade o Barão é atingido por um tiro em meio às celebrações. A sequência é emblemática. O burocrata lógico, apoiando a arma no ombro da morte, dispara mortalmente contra o Barão. Essa foi uma de suas muitas mortes. Morto na realidade governada pelo administrador científico, o Barão renasce no teatro para terminar sua narrativa sobre o confronto com Sultão de Constantinopla. Onde termina a fantasia e começa a realidade?


O Barão de Munchausen (re)criado por Terry Gilliam é a resistência poética ao absolutismo da lógica. É a fertilidade da imaginação contra o deserto racionalista. É a libertação da fantasia contra as pretensões totalizantes da razão. É Vico contra Descartes. É um grito do fundo da fantasia contra a matematização do mundo. As aventuras do Barão, contadas por Raspe e tantos outros, são deliciosas e divertidíssimas. Nas mãos de Terry Gilliam essas aventuras, devidamente selecionadas, foram reunidas numa unidade narrativa, envolvidas por uma linguagem surrealista e articuladas por um discurso anti-racionalista. Gilliam sacou a singularidade das narrativas e o vigor das fantasias, criadas justamente num momento (século XVIII) em que elas eram rechaçadas, desqualificadas e lançadas no porão escuro das aberrações da “Idade da Razão”.

“As Aventuras do Barão de Munchausen” é a celebração da fantasia e um banho de imaginação na realidade nossa de todos os dias.

sábado, 26 de outubro de 2013

A REVOLUÇÃO BOLIVARIANA ANUNCIA O CAMINHO PARA A “SUPREMA FELICIDADE”. Ou: Seria a Felicidade o Estágio Superior do Socialismo do Século XXI?



A REVOLUÇÃO BOLIVARIANA ANUNCIA O CAMINHO PARA A “SUPREMA FELICIDADE”.  Ou: Seria a Felicidade o Estágio Superior do Socialismo do Século XXI?




Enquanto certos intelectuais da esquerda sul-americana (como Gilberto Maringoni) fazem verdadeiros malabarismos teóricos e semânticos para sustentar que o regime venezuelano é democrático, Nicolás Maduro parece esforçar-se para demonstrar o contrário. É constrangedor. É tão constrangedor que Gilberto Maringoni escreveu um texto no Opera Mundi afirmando que a Venezuela é democrática e não citou uma única vez o nome de Maduro. Citou Chávez duas vezes, citou os Estados Unidos, Snowden, mas não citou Maduro (Para afirmar a existência de democracia na Venezuela é preciso, antes, dizer que o sistema político norte americano “é pouco democrático”?). 

Uma ligeira digressão psicanalítica sobre o texto de Maringoni. Não acredito, neste caso, numa casualidade. A ausência do nome do atual presidente é significativa. É o lapso freudiano, conhecido por aqui como “ato falho” (Erros ou esquecimentos triviais na aparência podem comportar significados profundos). Os atos falhos manifestam desejos do inconsciente.  

A coleção de bravatas e gestos populistas baratos que Maduro acumula é formidável. Mas a situação começou a ficar realmente grave quando declarou que às vezes dorme junto ao túmulo de Hugo Chávez, onde consegue "ponderar calmamente" as suas ações. "Por vezes, disse Maduro, vou lá durante a noite e, na maior parte das vezes acabo por dormir lá". A devoção de Maduro por Chávez é conhecida, mas desta vez parece que foi longe demais. Claro. O homem não é bobo. Sabe que Chávez, mesmo morto, é o fiador do seu governo. As visitas ao túmulo do comandante, neste sentido, são calculadas e habilmente exploradas na mídia oficial.


De qualquer maneira, a declaração, embora excessivamente apelativa, não surpreende. Na campanha eleitoral Maduro afirmou que o presidente Chávez, recém falecido, apareceu na forma de um pássaro e voou à sua volta. Tínhamos ali um forte indício do caminho que o homem trilharia. Será que alguma cartilha bolivariana seria capaz de explicar, à luz do socialismo do século XXI, esta extraordinária aparição? 

O que esperar depois disso? Não duvidem do estafeta do chavismo, ele se supera a cada gesto. A Venezuela, claro, vai a reboque. A cada declaração, o país parece distanciar-se cada vez mais de qualquer definição de democracia. Menos para Gilberto Maringoni, para quem a combinação de progresso social com efervescência participativa é que solidifica a democracia venezuelana”. Maringoni só esqueceu o nome do atual presidente. 

Na quinta feira, em meio à grave crise econômica e de abastecimento, Maduro anunciou a criação de um vice-ministério para supervisionar os programas sociais do governo nas áreas da saúde, do esporte, da ajuda financeira aos mais pobres e de moradias populares. Os projetos do governo nestas áreas não são previstos na proposta de orçamento e estão fora do controle e da fiscalização do legislativo. O vice-ministério foi batizado de “Ministério da Suprema Felicidade Social”. O objetivo, segundo Maduro, é que as pessoas sejam "atendidas da forma mais sublime, sensível, delicada e amável por pessoas que se dizem cristãs, revolucionárias e chavistas". E num adendo místico complementou dizendo que é preciso chegar ao céu, onde está o ex-presidente Hugo Chávez. Entenderam? O vice-ministério, além de promover a felicidade na terra, seria uma espécie de condutor espiritual do povo ao paraíso, ao céu, onde o comandante descansa e zela pela revolução.

O novo ministério lembra os quatro ministérios da Oceania (de Orwell): Ministério da Verdade, da Paz, do Amor e Fartura. A diferença é que Maduro leva a sua criação a sério. 

O “Ministério da Suprema Felicidade” é de dar inveja em muitos ditadores. Kim Jong-il deve estar se perguntando: “Como é que eu não pensei nisso antes?” Pois é Kim, na Venezuela agora a felicidade é uma questão de estado. O estado é o demiurgo do milagre social da felicidade. E não é qualquer felicidade: é a “felicidade suprema”. Deve ser o estágio superior do socialismo do século XXI.

No mesmo ato de lançamento do vice-ministério, Maduro instituiu também o “Dia de Lealdade ao Legado de Chávez e do Amor à Pátria”. O dia escolhido para homenagear o comandante foi 8 de dezembro. “El 8 de diciembre, disse Maduro, será a partir de este momento el día de la lealtad y amor a Hugo Chávez, porque ese día vino a despedirse de su pueblo, aún con su dolencia vino con mucha serenidad y fuerza a despedirse de su patria". 8 de dezembro foi o dia da última aparição pública de Chávez. Na ocasião, designou Maduro como o seu sucessor. Mas é também, coincidentemente, o dia das eleições municipais, na Venezuela. A partir do próximo dia 8 de dezembro as eleições e a lealdade à Chávez serão inseparáveis. 8 de dezembro será um dia de “lealdade mobilizadora, quando o amor se expressará” na ação do povo que jamais faltará a Chávez, disse Maduro. Será que é esta forma de mobilização e lealdade que Maringoni chama de “efervescência participativa”? É possível considerar este tipo de mobilização mística da população, como vem ocorrendo desde os tempos de Chávez, como democrática?  


O 8 de dezembro se juntará às outras datas comemorativas do calendário bolivariano, como 28 de julho (aniversário de Chávez), 8 de agosto (data de sua entrada à Academia Militar) e 4 de fevereiro (dia do golpe contra Carlos Andrés Perez). A figura de Chávez se impõe de diferentes maneiras na cultura política venezuelana. A ocupação do calendário comemorativo é uma forma de manter viva a memória do comandante, do seu suposto legado e usá-lo como elemento de coesão e mobilização social para exorcizar os problemas e intimidar os inimigos.

O vice–ministério - a piada política pronta de Maduro - já caiu no gosto popular. O humor das ruas se encarregou de colocar a “coisa” no seu devido lugar. Victor Rey, vendedor ambulante de bananas, exprimiu, do seu modo, o lado folclórico da situação: 

"Só espero que um dia Maduro lance o vice-ministério da Cerveja para que eu e todos os bêbados fiquemos felizes".


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

“MARIA ANTONIETA” E “ADEUS, MINHA RAINHA”: DOIS OLHARES SOBRE A CONTROVERTIDA RAINHA FRANCESA.



“MARIA ANTONIETA” E “ADEUS, MINHA RAINHA”: DOIS OLHARES SOBRE A CONTROVERTIDA RAINHA FRANCESA.  
  

“Maria Antonieta não foi a grande santa da realeza, tampouco a prostituta, a grue da revolução, e sim um caráter medíocre, na verdade uma mulher comum, não particularmente esperta, não especificamente insensata, nem fogo nem gelo, sem especial inclinação para a bondade e sem nenhum apego ao mal, a mulher mediana de ontem, hoje e amanhã, sem pendor para o demoníaco, sem ânsia pelo heróico e, talvez por isso, tema pouco adequado a uma tragédia.” (Stefan Sweig). 

Dois filmes recentes, um francês e um norte-americano, revisitaram a corte francesa às vésperas da revolução de 1789 e, cada um a sua maneira, nos ofereceram duas provocativas releituras histórico-cinematográficas da rainha insensível que, num momento difícil, teria zombado da miséria que assombrava a França e sugerido ao povo que, na falta de pão, comesse brioches. Maria Antonieta foi esta criatura odiosa e insensível que não se importava com a desgraça dos seus súditos ou isso não passa de uma caricatura habilmente difundida pelos adversários, que lhe custou a vida? As respostas não são fáceis. E o mérito das duas cinebiografias é justamente não apresentar respostas simples que reduzam a imagem da rainha a uma coisa ou outra. Antonieta era uma figura complexa e heterodoxa. Inventou um estilo de vida extravagante que atraiu para si a admiração e o ódio. Cultivou inimigos importantes e antipatias ressentidas. Tornou-se impopular, e foi atropelada pelo curso da revolução que varreu o absolutismo da França.


Vamos aos filmes? 

 “Adeus, minha rainha”, o belo filme francês de 2012, dirigido por Benoît Jacquot, narra os primeiros dias da revolução francesa vistos do palácio de Versalhes. O ponto de partida são os acontecimentos em Paris que levaram a tomada da famosa prisão-símbolo do “antigo regime”. A partir daí a narrativa explora os efeitos dos acontecimentos no palácio real da perspectiva da criadagem, da nobreza e da rainha, que vive um drama amoroso. Maria Antonieta (Diane Kruger), sob forte pressão, dividi-se entre as notícias perturbadoras que chegam de Paris e a eminente separação de sua amada, Gabrielle de Polignac. A cabeça de Gabrielle, por sua ligação com a rainha, é pedida nas ruas de Paris. Temendo pela vida da amada, Maria Antonieta, dilacerada, pede que ela deixe a França. O drama amoroso é tocante e ocupa um lugar de destaque no filme, mas a personagem central é Sidonie Laborde (Léa Seydoux), a fiel serva que dedica seus dias a ler para a rainha. É pelos olhos dela, cheios de admiração e paixão por Antonieta, que assistimos o desenrolar dos acontecimentos em Versalhes. O filme reconstrói o início das revoltas da perspectiva da serva e da relação que ela estabelece com a rainha. Pela subjetividade de Laborde somos conduzidos pelos labirínticos corredores do palácio que levam aos aposentos e aos dramas pessoais de Maria Antonieta deflagrados pela queda da Bastilha. O recorte temático e subjetivo do filme nos apresenta, portanto, os momentos iniciais da revolução vistos dos luxuosos aposentos da rainha. 
Felizmente, vivemos num tempo em que o passado pode também ser construído e narrado da perspectiva da rainha, de Versalhes, das elites, dos senhores de escravos e dos patrões, sem que isso soe elitista, reacionário ou tradicional. Quando a história era escrita somente do ponto de vista das “classes altas”, com total desinteresse pelas “classes populares”, havia um sentido conservador, misto de preconceitos cultivados e de uma concepção elitista da história. O que se convencionou chamar de “história vista de baixo”, e as diferentes formas de abordagem popular do passado, abriram o campo da história para os diferentes grupos sociais e personagens socialmente menos favorecidos, arrancando a escrita da história dos domínios exclusivamente conservadores. O lado negativo disso foi a emergência de certa visão redentora/popular/messiânica da história e dos inequívocos populismos historiográficos. Nas décadas de afirmação e consagração da dita “história vista de baixo” qualquer tentativa de se olhar o passado pela ótica das “classes altas” era taxada de reacionária. Só se escrevia sobre as elites para criticar suas condutas e revelar os seus preconceitos de classe. O que era perfeitamente compreensível. Hoje a situação é bem diferente. A história das “classes populares” não só está consagrada, como ocupa o centro das preocupações dos historiadores. Escrever sobre as elites hoje, diferentemente do que ocorria antes, traduz um esforço de compreensão do passado a partir de diferentes perspectivas. Afinal, os ricos também faziam parte das tramas do passado. E, convenhamos, as ditas elites não são portadoras de todos os defeitos, assim como as classes populares não carregam toda a decência e a dignidade do mundo nas costas.


Então vamos, sem culpas e julgamentos axiomáticos, nos deliciar com as narrativas palacianas, com as histórias íntimas, com os amores fictícios da rainha e nos exercitarmos no voyeurismo cinematográfico de quem espia as intimidades do passado de dentro de uma sala escura de cinema. Deixe os seus preconceitos de classe e de rigoroso estudioso do passado de lado e se entregue aos deleites de uma bela construção anacrônica que, entre outras coisas, nos faz interrogar sobre a imagem da rainha pintada pelos seus inimigos. Maria Antonieta foi julgada por traição e guilhotinada em 1793. Toda revolução tem os seus justiceiros, que se auto-atribuem o direito de falar a agir em nome do povo e decidir sobre a vida e a morte. O legado de Robespierre foi fecundo. Maria Antonieta era grande coisa? Não sei. Mas sempre desconfiei da imagem dela construída e fixada pela tradição revolucionária e republicana francesa. As biografias históricas recentes e algumas narrativas cinematográficas têm nos ajudado a questionar estas imagens. Não estamos falando numa reabilitação da figura de Maria Antonieta, mas no necessário questionamento dos julgamentos históricos e das imagens herdadas do passado e consagradas pelas narrativas históricas. Maria Antonieta e os filmes, neste caso, são pretextos para examinarmos os possíveis equívocos e abusos que marcaram a gênese da república liberal. 

Para além das questões políticas e sociais envolvidas (como se eu precisasse me explicar), a exuberante e exagerada figura de Antonieta sempre me atraiu. Ela era a alteridade austríaca a desafiar a esnobe corte francesa. Gostava de bailes de máscara – e da oportunidade de se misturar aos plebeus -, freqüentava a ópera e o teatro (atuava em peças, no papel de burguesas e camareiras, no seu petit trianon, ao lado da sua troupe de seigneurs), e usou e abusou da moda para se impor à corte que a rejeitava. Para Caroline Weber, especialista norte-americana na literatura francesa do século XVII e em revolução francesa (autora do livro “Queen of Fashion: What Marie Antoinette Wore to the Revolution”), “Maria Antonieta entendeu que ser uma rainha significava essencialmente interpretar um papel. Mais que isso, ela logo descobriu que, por meio de mudanças na moda, ela podia modificar esse papel e até fugir dele”. Caroline Weber comparou o estilo provocador e multifacetado de Antonieta a Madona: “A rainha mudava constantemente sua aparência, ia dos penteados extravagantes aos rústicos camisetes que usava em seu retiro particular, passando pelas andróginas silhuetas masculinas de montaria. Ela se reinventava constantemente, uma maneira de manter o público curioso sobre sua próxima faceta. Também como Madonna, a rainha acendeu os debates nacionais sobre a sexualidade feminina.” O estilo heterodoxo de Antonieta descontentou muita gente e deu margem às intrigas e aos falatórios que extravasaram o círculo da nobreza e caíram na boca do “povo”.


O filme de Benoît, adaptação do romance histórico de Chantal Thomas (“O adeus à rainha”), apresenta uma Maria Antonieta mais humanizada e frágil, capaz de gestos de gratidão e sacrifícios pela pessoa amada. Chantal Thomas, filósofa, ensaísta e especialista no século XVIII francês, que já se debruçou sobre as vidas de Sade, Casanova e Thomas Bernhard, dirigiu seu olhar feminino e detalhista para Maria Antonieta. O livro explora os acontecimentos, históricos e fictícios, que ocorreram entre dias 14 e 16 de julho de 1789. Mostra o pânico que tomou conta de Versalhes, a fuga dos nobres e o abandono do casal real.


A imagem que Chantal e Benoît nos oferecem sobre Maria Antonieta é bem diferente daquela que nos acostumamos a ver e ler nos livros e nos filmes, que sugerem uma rainha fútil, esbanjadora (a rainha do déficit), desumana e perversamente elitista, que dilapidava o tesouro francês com jóias, vestidos caros, festas de arromba e sofisticados arranjos de cabelo e maquiagem. A estrangeira moralmente devassa se tornou o símbolo do luxo excessivo e desregrado da monarquia francesa e foi convertida no emblema de tudo o que era desprezível no “antigo regime”. A perversa e insensível rainha, com a arrogância acumulada dos Bourbon e dos Habsburgo, teria dito, quando informada de que o povo das províncias passava fome: “se não tem pão, que comam brioches”. Esta imagem amplamente difundida de Maria Antonieta a fez merecedora da pena de morte. A historiadora inglesa Antonia Fraser, que escreveu uma biografia da rainha francesa, contesta esta visão. Sustenta, ou suspeita, que a famosa frase jamais foi dita por Maria Antonieta. Um século antes a frase fora atribuída a uma princesa espanhola que se casou com Luis XIV e depois da morte de Maria Antonieta continuou sendo emprestada a outras princesas. Uma passagem de Rousseau, no livro Confissões, reforça a suspeita da historiadora: “Recordo-me de uma grande princesa a quem se dizia que os camponeses não tinham pão, e que respondeu: ‘Pois que comam brioche’.” E numa carta endereçada à mãe, escrita na época da coroação, Maria Antonieta demonstra sensibilidade em relação à condição de vida dos menos favorecidos: “Tendo visto as pessoas nos tratarem tão bem, apesar de suas desgraças, estamos ainda mais obrigados a trabalhar pela felicidade deles”. São pistas que, colhidas aqui e ali, ajudam a construir uma nova imagem da rainha.  


Embora a biografia escorregue em alguns momentos para a narrativa hagiográfica, a historiadora questiona com competência a imagem de rainha socialmente insensível e sexualmente devassa que abundava nos panfletos pornográficos do século XVIII. O empenho para recuperar a imagem da rainha é assumido, e às vezes excessivo. Todavia, o valor da obra reside no esforço histórico, bem documentado, de problematizar uma imagem negativa herdada sem maiores questionamentos diretamente das tensões do século XVIII.


“Maria Antonieta” (2006), o bonito filme de Sofia Coppola inspirado na obra de Antonia Fraser, embora por outros caminhos, também nos leva a questionar a imagem tradicionalmente aceita da personagem em tela. A escolha de Kirsten Dunst para o papel da rainha não foi mera casualidade. A atriz norte americana revelada na última década, conhecida do público por filmes como Entrevista com o Vampiro e O Homem Aranha, empresta leveza e graça, desfazendo a atmosfera severa e pesada que envolve a personagem. Sofia narra, numa linguagem ousadamente contemporânea, os episódios marcantes da vida de Maria Antonieta desde a saída da Áustria, aos quatorze anos, para se casar com Luis Augusto, até a explosão das revoltas em Paris em julho de 1789. A diretora deixa evidente que a releitura que faz da vida da rainha francesa é muito particular, embora amparada nas narrativas e em biografias históricas recentes. A trilha sonora escolhida a dedo não deixa dúvidas. Os dias de tédio, de amor, de dor, de futilidade, de esbanjamento e de solidão e desespero da rainha são embalados com canções do The Cure, Sioux and The Banshees, The Stroukes, New Order, Bow Wow Wow. A coroação da rainha ao som de Plainsong, do Cure, é de tirar o fôlego. O título do filme, escrito numa faixa rosa, faz clara referência ao disco Never Mind the Bollocks, dos Sex Pistols. As referências são inúmeras. São as digitais de Sofia Coppola plantadas no filme.

Mas é o par de all star azul entre os calçados da rainha que evidencia a assinatura da diretora. Embora se reporte historicamente às décadas de 1770, a leitura inspira-se na década de 1980. Maria Antonieta parece uma garota dos nossos dias, deslocada, mal compreendida, desligada das questões políticas, que sonha com sapatos e suspira pelo conde Ferson ao som da banda The Stroukes (Ever Happened). (Vale lembrar que Sofia Coppola inspirou-se no cantor Adam Ant para criar a identidade visual do conde Ferson). Na cena em que o converse all star aparece jogado displicentemente no ambiente rococó entre os sapatos da rainha, a música de fundo é “I want candy”, da banda Blow Wou Wou. Numa outra seqüência, uma cena emblemática: uma criada calça Maria Antonieta, que come bolos, e esta cercada de doces coloridos, ao som de “Natural’s Not in It”, da banda Gang of Four:

 “The problem of leisure
What to do for pleasure
Ideal love a new purchase
A market of the senses
Dream of the perfect life
Economic circumstances
The body is good business
Sell out, maintain the interest
Remember Lot's wife
Renounce all sin and vice
Dream of the perfect life
This heaven gives me migraine
The problem of leisure
What to do for pleasure (…)”.


A Maria Antonieta de Sofia Coppola não era uma rainha frívola, insensível e esbanjadora. Era, antes, a jovem filha da rainha Maria Teresa, que da noite para o dia foi afastada do convívio familiar, do palácio Imperial de Hofburg na Áustria, do cãozinho de estimação e das damas de companhia. Aos quatorze anos mudou-se para a França, virou delfina e logo em seguida rainha. Ao invés de reproduzir a imagem conhecida de Maria Antonieta e caracterizá-la como fútil e insensível, o filme, sem julgar antecipadamente, mostra as circunstâncias da futilidade, dos gastos desmedidos e da propalada insensibilidade. Maria Antonieta era uma jovem estrangeira (era chamada na corte de L'Autre-chienne, uma paronomásia com as palavras autrichienne e autre-chienne), com hábitos e maneiras distintas, que foi jogada pela mãe no ninho de cobras da nobreza francesa para celebrar uma aliança entre as inimigas Áustria e França. Seguindo os passos de Antonia Fraser, Sofia Coppola explora a situação de estrangeira deslocada da arquiduquesa austríaca, vista como espiã, e dos embaraços em torno da não consumação do casamento (Maria Antonieta e Luis XVI levaram sete anos para levar o casamento as vias de fato. Todos os dias, pela manhã, as roupas de cama do casal eram vistoriadas em busca de sinais da consumação). Os comentários maldosos, as comparações e a pressão da mãe, que lembrava o tempo todo da instabilidade da aliança sem um herdeiro, eram humilhantes. Os excessos, ou fugas, da jovem rainha seriam decorrentes das enormes pressões e da relativa solidão em que vivia. Ou ainda, o estilo de vida de Maria Antonieta seria uma resposta ao pesado ambiente cerimonial que a cercava, ao excesso de formalismo e a etiqueta sufocante da corte. A rainha pop de Sofia Coppola criou um mundo próprio – expresso numa palheta de cores vibrantes -, elegeu suas companhias de ocasião e driblou como pode o tédio, a falta de privacidade, a tristeza e a indiferença do marido. A menina austríaca que se tornou rainha da França foi uma vítima das circunstâncias, das ambições da mãe e do veneno da corte francesa? Nada disso. Ela jogou o jogo, exerceu o poder à sua maneira e tentou fazer as circunstâncias correrem a seu favor. Stefan Zweig, escritor austríaco que lhe dedicou importante biografia, descreveu Maria Antonieta como uma mulher comum, de talentos medianos. Por minha conta, acrescento que a revolução, ao transformá-la, para fins demagógicos, no símbolo da devassidão e do aviltamento moral de uma época, comparando-a as mulheres mais dissolutas do passado (Messalina, Agripina e Fredegunda), agigantou sua figura e lhe permitiu oferecer-se ao “martírio”, vestida de branco, em nome da monarquia.  A revolução, no afã de construir um inimigo à altura dos seus ideais, criou um mito.  Fez de Antonieta uma mulher incomum. 

Os dois filmes – que declaradamente não primam pelo rigor histórico - parecem desejar libertar Maria Antonieta do julgamento que a transformou numa das mais famosas e odiadas vilãs da história. A intenção é legítima. Pairam muitas dúvidas sobre o julgamento da rainha. O Tribunal Revolucionário jogou sobre ela a culpa por todos os males que assolavam a França e a condenou por alta traição, baseado em três acusações: esgotamento do tesouro nacional, negociações e trocas de correspondências secretas com a Áustria e com os monarquistas e conspiração contra a segurança nacional e as relações externas da França. Maria Antonieta se defendeu das acusações e disse que apenas defendia os interesses da monarquia. Mas o veredicto já estava dado, antes mesmo dela tentar se defender. O idealismo liberal deu lugar à paranóia, que via conspiração em toda parte, e a implacável ditadura que instituiu o terror para salvar a revolução. O triunfo da república jacobina exigia a cabeça da monarquia. A cabeça de Maria Antonieta ostentou penteados exuberantes que escandalizavam a sobriedade espartana da república. A cabeça da rainha era o troféu moral dos guardiões da coisa pública. O julgamento era uma mera formalidade. Mas Antonieta não se dobrou. Escolheu encarar a guilhotina vestindo um impecável vestido branco. Caroline Weber explica: “A escolha foi intencional. Era uma forma de se declarar, de maneira corajosa, como mártir e leal guardiã da monarquia. Com sua roupa, ela dizia aos revolucionários que eles haviam tomado a coroa, mas jamais quebrariam seu espírito.” Não vamos confundir o gesto da rainha com heroísmo, muito menos com martírio. Ela estava apenas defendendo aquilo que julgava certo.


A revisão da imagem de Maria Antonieta não é um caso isolado. Nos últimos anos surgiram varias releituras de figuras históricas femininas ligadas a nobreza, na Europa e no Brasil, que se contrapõem as imagens negativas fixadas pela memória e pelas historiografias republicanas. Princesa Isabel, Carlota Joaquina (Me vem a lembrança a intragável Carlota do filme de Carla Camurati) e Dona Leopoldina, por exemplo, receberam novas leituras, baseadas em documentos antes negligenciados ou desconhecidos. As novas interpretações, pelo menos as que valem a pena, não lhe são simpáticas nem antipáticas. Tentam compreender a personagem e a mulher, e as relações nas quais estavam envolvidas, para além das caricaturas e das apologias.  

O léxico simplificador, como diria Alfredo Bosi, e os conceitos que empregamos para descrever ou situar socialmente homens e mulheres do passado, devoram, em parte, as suas subjetividades e intersubjetividades. É o caso do substantivo genérico “nobreza”, uma categoria tão significativa para os historiadores e, ao mesmo tempo, tão rasa e vazia para descrever os sentimentos, as relações, as vulnerabilidades, as virtudes e os amores das pessoas definidas como nobres. Do ponto de vista histórico, o conceito é esclarecedor. Permite a definição de uma identidade coletiva e, conseqüentemente, explicar as posições e as diferenças sociais, os privilégios, etc. Do ponto de vista dos indivíduos, o conceito é generalizante. O qualificativo nobre se impõe sobre a individualidade e sugere um coletivo homogêneo e simplificador. Isto poderia valer aos propósitos dos revolucionários ou dos republicanos que tinham na nobreza o inimigo histórico a ser vencido, “superado”. Mas para nós historiadores, situados a uma distância suficientemente segura para não aceitarmos sem questionamentos os estereótipos e os pré-conceitos revolucionários, não é bem assim. 



 “Maria Antonieta”, de Sofia Coppola, recria a famosa personagem à semelhança das patricinhas consumistas e hedonistas dos nossos dias. A projeção de uma estética da década de 1980 para o passado, com exageros calculados e riscos assumidos, nos lembra o quanto nós historiadores projetamos os dramas e as tramas do presente no passado. O all star azul de Maria Antonieta é uma invasão simbólica e intempestiva, ou simplesmente um modo criativo de dizer sobre o lugar de onde se olha o passado.

“Adeus, minha Rainha” observa a tomada da Bastilha dos aposentos de Maria Antonieta, mas não é um filme reacionário ou elitista. É um retrato íntimo da rainha pintado por sua fiel leitora enquanto o mundo ao redor de Versalhes desabava. O filme não julga a revolução francesa nem a população que toma o presídio. As revoltas compõem a moldura social que encerra o drama pessoal. As diversas personagens populares que cercam a rainha assumem papeis relevantes na trama e expressam de diferentes maneiras seus pontos de vistas. O ponto alto do filme é justamente o jogo de olhares sobre os acontecimentos. A leitora da rainha, a camareira, as damas de companhia, o bibliotecário, a nobreza que vive em Versalhes, o barqueiro, a rainha, a rebelião popular em Paris afeta a todos. A visão de todos é relevante. Desde Nietzsche, e sua concepção perspectivista do conhecimento, sabemos que não conhecemos a realidade em si. Existem interpretações, decorrentes dos distintos ângulos de observação assumidos. Ao contrário do que propunha a noção clássica de perspectiva, não existe ângulo privilegiada sobre os acontecimentos. O filme leva esta máxima a sério. Benoît Jacquot elegeu o seu ângulo.

A construção/imaginação cinematográfica do passado, descompromissada com os códigos e as relações que regem academicamente a construção do conhecimento histórico, oferece insights criativos aos historiadores que buscam novos ângulos de observação do passado.