“MARIA ANTONIETA” E “ADEUS,
MINHA RAINHA”: DOIS OLHARES SOBRE A CONTROVERTIDA RAINHA FRANCESA.
“Maria Antonieta não
foi a grande santa da realeza, tampouco a prostituta, a grue da revolução, e sim um caráter medíocre, na verdade uma mulher
comum, não particularmente esperta, não especificamente insensata, nem fogo nem
gelo, sem especial inclinação para a bondade e sem nenhum apego ao mal, a mulher
mediana de ontem, hoje e amanhã, sem pendor para o demoníaco, sem ânsia pelo
heróico e, talvez por isso, tema pouco adequado a uma tragédia.” (Stefan Sweig).
Dois filmes recentes,
um francês e um norte-americano, revisitaram a corte francesa às vésperas da
revolução de 1789 e, cada um a sua maneira, nos ofereceram duas provocativas releituras
histórico-cinematográficas da rainha insensível que, num momento difícil, teria
zombado da miséria que assombrava a França e sugerido ao povo que, na falta de
pão, comesse brioches. Maria Antonieta foi esta criatura odiosa e insensível que
não se importava com a desgraça dos seus súditos ou isso não passa de uma
caricatura habilmente difundida pelos adversários, que lhe custou a vida? As
respostas não são fáceis. E o mérito das duas cinebiografias é justamente não
apresentar respostas simples que reduzam a imagem da rainha a uma coisa ou
outra. Antonieta era uma figura complexa e heterodoxa. Inventou um estilo de
vida extravagante que atraiu para si a admiração e o ódio. Cultivou inimigos importantes
e antipatias ressentidas. Tornou-se impopular, e foi atropelada pelo curso da
revolução que varreu o absolutismo da França.
Vamos aos filmes?
“Adeus, minha rainha”,
o belo filme francês de 2012, dirigido por Benoît Jacquot, narra os primeiros
dias da revolução francesa vistos do palácio de Versalhes. O ponto de partida
são os acontecimentos em Paris que levaram a tomada da famosa prisão-símbolo do
“antigo regime”. A partir daí a narrativa explora os efeitos dos acontecimentos
no palácio real da perspectiva da criadagem, da nobreza e da rainha, que vive
um drama amoroso. Maria Antonieta (Diane Kruger), sob forte pressão, dividi-se
entre as notícias perturbadoras que chegam de Paris e a eminente separação de
sua amada, Gabrielle de Polignac. A cabeça de Gabrielle, por sua ligação com a
rainha, é pedida nas ruas de Paris. Temendo pela vida da amada, Maria Antonieta,
dilacerada, pede que ela deixe a França. O drama amoroso é tocante e ocupa um
lugar de destaque no filme, mas a personagem central é Sidonie Laborde (Léa
Seydoux), a fiel serva que dedica seus dias a ler para a rainha. É pelos olhos
dela, cheios de admiração e paixão por Antonieta, que assistimos o desenrolar
dos acontecimentos em Versalhes. O filme reconstrói o início das revoltas da
perspectiva da serva e da relação que ela estabelece com a rainha. Pela
subjetividade de Laborde somos conduzidos pelos labirínticos corredores do
palácio que levam aos aposentos e aos dramas pessoais de Maria Antonieta deflagrados
pela queda da Bastilha. O recorte temático e subjetivo do filme nos apresenta,
portanto, os momentos iniciais da revolução vistos dos luxuosos aposentos da rainha.
Felizmente, vivemos
num tempo em que o passado pode também ser construído e narrado da perspectiva da
rainha, de Versalhes, das elites, dos senhores de escravos e dos patrões, sem
que isso soe elitista, reacionário ou tradicional. Quando a história era
escrita somente do ponto de vista das “classes altas”, com total desinteresse
pelas “classes populares”, havia um sentido conservador, misto de preconceitos
cultivados e de uma concepção elitista da história. O que se convencionou
chamar de “história vista de baixo”, e as diferentes formas de abordagem
popular do passado, abriram o campo da história para os diferentes grupos
sociais e personagens socialmente menos favorecidos, arrancando a escrita da
história dos domínios exclusivamente conservadores. O lado negativo disso foi a
emergência de certa visão redentora/popular/messiânica da história e dos inequívocos
populismos historiográficos. Nas décadas de afirmação e consagração da dita
“história vista de baixo” qualquer tentativa de se olhar o passado pela ótica
das “classes altas” era taxada de reacionária. Só se escrevia sobre as elites
para criticar suas condutas e revelar os seus preconceitos de classe. O que era
perfeitamente compreensível. Hoje a situação é bem diferente. A história das
“classes populares” não só está consagrada, como ocupa o centro das
preocupações dos historiadores. Escrever sobre as elites hoje, diferentemente
do que ocorria antes, traduz um esforço de compreensão do passado a partir de
diferentes perspectivas. Afinal, os ricos também faziam parte das tramas do
passado. E, convenhamos, as ditas elites não são portadoras de todos os
defeitos, assim como as classes populares não carregam toda a decência e a dignidade
do mundo nas costas.
Então vamos, sem culpas
e julgamentos axiomáticos, nos deliciar com as narrativas palacianas, com as
histórias íntimas, com os amores fictícios da rainha e nos exercitarmos no voyeurismo
cinematográfico de quem espia as intimidades do passado de dentro de uma sala
escura de cinema. Deixe os seus preconceitos de classe e de rigoroso estudioso
do passado de lado e se entregue aos deleites de uma bela construção anacrônica
que, entre outras coisas, nos faz interrogar sobre a imagem da rainha pintada
pelos seus inimigos. Maria Antonieta foi julgada por traição e guilhotinada em
1793. Toda revolução tem os seus justiceiros, que se auto-atribuem o direito de
falar a agir em nome do povo e decidir sobre a vida e a morte. O legado de
Robespierre foi fecundo. Maria Antonieta era grande coisa? Não sei. Mas sempre
desconfiei da imagem dela construída e fixada pela tradição revolucionária e republicana
francesa. As biografias históricas recentes e algumas narrativas
cinematográficas têm nos ajudado a questionar estas imagens. Não estamos
falando numa reabilitação da figura de Maria Antonieta, mas no necessário
questionamento dos julgamentos históricos e das imagens herdadas do passado e
consagradas pelas narrativas históricas. Maria Antonieta e os filmes, neste
caso, são pretextos para examinarmos os possíveis equívocos e abusos que
marcaram a gênese da república liberal.
Para além das questões
políticas e sociais envolvidas (como se eu precisasse me explicar), a
exuberante e exagerada figura de Antonieta sempre me atraiu. Ela era a
alteridade austríaca a desafiar a esnobe corte francesa. Gostava de bailes de
máscara – e da oportunidade de se misturar aos plebeus -, freqüentava a ópera e
o teatro (atuava em peças, no papel de burguesas e camareiras, no seu petit trianon,
ao lado da sua troupe de seigneurs), e usou e abusou da moda para se impor à
corte que a rejeitava. Para Caroline Weber, especialista norte-americana na
literatura francesa do século XVII e em revolução francesa (autora do livro “Queen of Fashion: What Marie Antoinette Wore to
the Revolution”), “Maria Antonieta entendeu que ser uma
rainha significava essencialmente interpretar um papel. Mais que isso, ela logo
descobriu que, por meio de mudanças na moda, ela podia modificar esse papel e
até fugir dele”. Caroline Weber comparou o estilo provocador e multifacetado de
Antonieta a Madona: “A rainha mudava constantemente sua aparência, ia dos
penteados extravagantes aos rústicos camisetes que usava em seu retiro
particular, passando pelas andróginas silhuetas masculinas de montaria. Ela se
reinventava constantemente, uma maneira de manter o público curioso sobre sua
próxima faceta. Também como Madonna, a rainha acendeu os debates nacionais
sobre a sexualidade feminina.” O estilo heterodoxo de Antonieta descontentou
muita gente e deu margem às intrigas e aos falatórios que extravasaram o
círculo da nobreza e caíram na boca do “povo”.
O filme de Benoît,
adaptação do romance histórico de Chantal Thomas (“O adeus à rainha”),
apresenta uma Maria Antonieta mais humanizada e frágil, capaz de gestos de
gratidão e sacrifícios pela pessoa amada. Chantal Thomas, filósofa, ensaísta e
especialista no século XVIII francês, que já se debruçou sobre as vidas de
Sade, Casanova e Thomas Bernhard, dirigiu seu olhar
feminino e detalhista para Maria Antonieta. O livro explora os acontecimentos,
históricos e fictícios, que ocorreram entre dias 14 e 16 de julho de 1789.
Mostra o pânico que tomou conta de Versalhes, a fuga dos nobres e o abandono do
casal real.
A imagem que Chantal e
Benoît nos oferecem sobre Maria Antonieta é bem diferente daquela que nos
acostumamos a ver e ler nos livros e nos filmes, que sugerem uma rainha fútil, esbanjadora
(a rainha do déficit), desumana e perversamente elitista, que dilapidava o
tesouro francês com jóias, vestidos caros, festas de arromba e sofisticados
arranjos de cabelo e maquiagem. A estrangeira moralmente devassa se tornou o
símbolo do luxo excessivo e desregrado da monarquia francesa e foi convertida no
emblema de tudo o que era desprezível no “antigo regime”. A perversa e
insensível rainha, com a arrogância acumulada dos Bourbon e dos Habsburgo,
teria dito, quando informada de que o povo das províncias passava fome: “se não
tem pão, que comam brioches”. Esta imagem amplamente difundida de Maria
Antonieta a fez merecedora da pena de morte. A historiadora inglesa Antonia
Fraser, que escreveu uma biografia da rainha francesa, contesta esta visão. Sustenta,
ou suspeita, que a famosa frase jamais foi dita por Maria Antonieta. Um século
antes a frase fora atribuída a uma princesa espanhola que se casou com Luis XIV
e depois da morte de Maria Antonieta continuou sendo emprestada a outras
princesas. Uma passagem de Rousseau, no livro Confissões, reforça a suspeita da
historiadora: “Recordo-me de uma grande princesa a quem se dizia que
os camponeses não tinham pão, e que respondeu: ‘Pois que comam brioche’.”
E numa carta endereçada à mãe, escrita na época da coroação, Maria Antonieta
demonstra sensibilidade em relação à condição de vida dos menos favorecidos: “Tendo
visto as pessoas nos tratarem tão bem, apesar de suas desgraças, estamos ainda
mais obrigados a trabalhar pela felicidade deles”. São pistas que, colhidas
aqui e ali, ajudam a construir uma nova imagem da rainha.
Embora a biografia
escorregue em alguns momentos para a narrativa hagiográfica, a historiadora
questiona com competência a imagem de rainha socialmente insensível e
sexualmente devassa que abundava nos panfletos pornográficos do século XVIII. O
empenho para recuperar a imagem da rainha é assumido, e às vezes excessivo.
Todavia, o valor da obra reside no esforço histórico, bem documentado, de
problematizar uma imagem negativa herdada sem maiores questionamentos diretamente
das tensões do século XVIII.
“Maria Antonieta”
(2006), o bonito filme de Sofia Coppola inspirado na obra de Antonia Fraser,
embora por outros caminhos, também nos leva a questionar a imagem
tradicionalmente aceita da personagem em tela. A escolha de Kirsten Dunst para o
papel da rainha não foi mera casualidade. A atriz norte americana revelada na
última década, conhecida do público por filmes como Entrevista com o Vampiro e O
Homem Aranha, empresta leveza e graça, desfazendo a atmosfera severa e pesada
que envolve a personagem. Sofia narra, numa linguagem ousadamente contemporânea,
os episódios marcantes da vida de Maria Antonieta desde a saída da Áustria, aos
quatorze anos, para se casar com Luis Augusto, até a explosão das revoltas em
Paris em julho de 1789. A diretora deixa evidente que a releitura que faz da
vida da rainha francesa é muito particular, embora amparada nas narrativas e em
biografias históricas recentes. A trilha sonora escolhida a dedo não deixa
dúvidas. Os dias de tédio, de amor, de dor, de futilidade, de esbanjamento e de
solidão e desespero da rainha são embalados com canções do The Cure, Sioux and
The Banshees, The Stroukes, New Order, Bow Wow Wow. A coroação da rainha ao som
de Plainsong, do Cure, é de tirar o
fôlego. O título do filme, escrito numa faixa rosa, faz clara referência ao
disco Never Mind the Bollocks, dos Sex Pistols. As referências são inúmeras. São
as digitais de Sofia Coppola plantadas no filme.
Mas é o par de all star
azul entre os calçados da rainha que evidencia a assinatura da diretora. Embora
se reporte historicamente às décadas de 1770, a leitura inspira-se na década de
1980. Maria Antonieta parece uma garota dos nossos dias, deslocada, mal
compreendida, desligada das questões políticas, que sonha com sapatos e suspira
pelo conde Ferson ao som da banda The Stroukes (Ever Happened). (Vale lembrar que Sofia Coppola inspirou-se no
cantor Adam Ant para criar a identidade visual do conde Ferson). Na cena em que
o converse all star aparece jogado displicentemente no ambiente rococó entre os
sapatos da rainha, a música de fundo é “I want candy”, da banda Blow Wou Wou. Numa
outra seqüência, uma cena emblemática: uma criada calça Maria Antonieta, que
come bolos, e esta cercada de doces coloridos, ao som de “Natural’s Not in It”,
da banda Gang of Four:
“The problem of leisure
What to do for pleasure
Ideal love a new purchase
A market of the senses
Dream of the perfect life
Economic circumstances
The body is good business
Sell out, maintain the interest
Remember Lot's wife
Renounce all sin and vice
Dream of the perfect life
This heaven gives me migraine
The problem of leisure
What to do for pleasure
(…)”.
A Maria Antonieta de Sofia
Coppola não era uma rainha frívola, insensível e esbanjadora. Era, antes, a
jovem filha da rainha Maria Teresa, que da noite para o dia foi afastada do
convívio familiar, do palácio Imperial de Hofburg na Áustria, do cãozinho de
estimação e das damas de companhia. Aos quatorze anos mudou-se para a França, virou
delfina e logo em seguida rainha. Ao invés de reproduzir a imagem conhecida de
Maria Antonieta e caracterizá-la como fútil e insensível, o filme, sem julgar
antecipadamente, mostra as circunstâncias da futilidade, dos gastos desmedidos e
da propalada insensibilidade. Maria Antonieta era uma jovem estrangeira (era
chamada na corte de L'Autre-chienne,
uma paronomásia com as palavras autrichienne e autre-chienne), com hábitos e maneiras distintas,
que foi jogada pela mãe no ninho de cobras da nobreza francesa para celebrar
uma aliança entre as inimigas Áustria e França. Seguindo os passos de Antonia Fraser,
Sofia Coppola explora a situação de estrangeira deslocada da arquiduquesa austríaca,
vista como espiã, e dos embaraços em torno da não consumação do casamento
(Maria Antonieta e Luis XVI levaram sete anos para levar o casamento as vias de
fato. Todos os dias, pela manhã, as roupas de cama do casal eram vistoriadas em
busca de sinais da consumação). Os comentários maldosos, as comparações e a
pressão da mãe, que lembrava o tempo todo da instabilidade da aliança sem um
herdeiro, eram humilhantes. Os excessos, ou fugas, da jovem rainha seriam
decorrentes das enormes pressões e da relativa solidão em que vivia. Ou ainda, o
estilo de vida de Maria Antonieta seria uma resposta ao pesado ambiente
cerimonial que a cercava, ao excesso de formalismo e a etiqueta sufocante da
corte. A rainha pop de Sofia Coppola criou um mundo próprio – expresso numa
palheta de cores vibrantes -, elegeu suas companhias de ocasião e driblou como
pode o tédio, a falta de privacidade, a tristeza e a indiferença do marido. A
menina austríaca que se tornou rainha da França foi uma vítima das
circunstâncias, das ambições da mãe e do veneno da corte francesa? Nada disso. Ela
jogou o jogo, exerceu o poder à sua maneira e tentou fazer as circunstâncias
correrem a seu favor. Stefan Zweig, escritor austríaco que lhe dedicou importante
biografia, descreveu Maria Antonieta como uma mulher comum, de talentos
medianos. Por minha conta, acrescento que a revolução, ao transformá-la, para
fins demagógicos, no símbolo da devassidão e do aviltamento moral de uma época,
comparando-a as mulheres mais dissolutas do passado (Messalina, Agripina e
Fredegunda), agigantou sua figura e lhe permitiu oferecer-se ao “martírio”,
vestida de branco, em nome da monarquia. A revolução, no afã de construir um inimigo à
altura dos seus ideais, criou um mito. Fez
de Antonieta uma mulher incomum.
Os dois filmes – que
declaradamente não primam pelo rigor histórico - parecem desejar libertar Maria
Antonieta do julgamento que a transformou numa das mais famosas e odiadas vilãs
da história. A intenção é legítima. Pairam muitas dúvidas sobre o julgamento da
rainha. O Tribunal Revolucionário jogou sobre ela a culpa por todos os males
que assolavam a França e a condenou por alta traição, baseado em três
acusações: esgotamento do tesouro
nacional,
negociações e trocas de correspondências
secretas com a Áustria e com os monarquistas e conspiração contra a segurança nacional e as relações externas da
França. Maria Antonieta se defendeu das acusações e disse que apenas defendia
os interesses da monarquia. Mas o veredicto já estava dado, antes mesmo dela
tentar se defender. O idealismo liberal deu lugar à paranóia, que via
conspiração em toda parte, e a implacável ditadura que instituiu o terror para
salvar a revolução. O triunfo da república jacobina exigia a cabeça da monarquia.
A cabeça de Maria Antonieta ostentou penteados exuberantes que escandalizavam a
sobriedade espartana da república. A cabeça da rainha era o troféu moral dos
guardiões da coisa pública. O julgamento era uma mera formalidade. Mas
Antonieta não se dobrou. Escolheu encarar a guilhotina vestindo um impecável
vestido branco. Caroline Weber explica: “A escolha foi intencional. Era uma
forma de se declarar, de maneira corajosa, como mártir e leal guardiã da
monarquia. Com sua roupa, ela dizia aos revolucionários que eles haviam tomado
a coroa, mas jamais quebrariam seu espírito.” Não vamos confundir o gesto da
rainha com heroísmo, muito menos com martírio. Ela estava apenas defendendo aquilo
que julgava certo.
A revisão da imagem de
Maria Antonieta não é um caso isolado. Nos últimos anos surgiram varias
releituras de figuras históricas femininas ligadas a nobreza, na Europa e no
Brasil, que se contrapõem as imagens negativas fixadas pela memória e pelas
historiografias republicanas. Princesa Isabel, Carlota Joaquina (Me vem a
lembrança a intragável Carlota do filme de Carla Camurati) e Dona Leopoldina,
por exemplo, receberam novas leituras, baseadas em documentos antes
negligenciados ou desconhecidos. As novas interpretações, pelo menos as que
valem a pena, não lhe são simpáticas nem antipáticas. Tentam compreender a
personagem e a mulher, e as relações nas quais estavam envolvidas, para além
das caricaturas e das apologias.
O léxico simplificador,
como diria Alfredo Bosi, e os conceitos que empregamos para descrever ou situar
socialmente homens e mulheres do passado, devoram, em parte, as suas
subjetividades e intersubjetividades. É o caso do substantivo genérico
“nobreza”, uma categoria tão significativa para os historiadores e, ao mesmo
tempo, tão rasa e vazia para descrever os sentimentos, as relações, as
vulnerabilidades, as virtudes e os amores das pessoas definidas como nobres. Do
ponto de vista histórico, o conceito é esclarecedor. Permite a definição de uma
identidade coletiva e, conseqüentemente, explicar as posições e as diferenças
sociais, os privilégios, etc. Do ponto de vista dos indivíduos, o conceito é
generalizante. O qualificativo nobre se impõe sobre a individualidade e sugere
um coletivo homogêneo e simplificador. Isto poderia valer aos propósitos dos
revolucionários ou dos republicanos que tinham na nobreza o inimigo histórico a
ser vencido, “superado”. Mas para nós historiadores, situados a uma distância
suficientemente segura para não aceitarmos sem questionamentos os estereótipos
e os pré-conceitos revolucionários, não é bem assim.
“Maria Antonieta”, de Sofia Coppola, recria a
famosa personagem à semelhança das patricinhas consumistas e hedonistas dos
nossos dias. A projeção de uma estética da década de 1980 para o passado, com exageros
calculados e riscos assumidos, nos lembra o quanto nós historiadores projetamos
os dramas e as tramas do presente no passado. O all star azul de Maria
Antonieta é uma invasão simbólica e intempestiva, ou simplesmente um modo
criativo de dizer sobre o lugar de onde se olha o passado.
“Adeus, minha Rainha”
observa a tomada da Bastilha dos aposentos de Maria Antonieta, mas não é um
filme reacionário ou elitista. É um retrato íntimo da rainha pintado por sua
fiel leitora enquanto o mundo ao redor de Versalhes desabava. O filme não julga
a revolução francesa nem a população que toma o presídio. As revoltas compõem a
moldura social que encerra o drama pessoal. As diversas personagens populares
que cercam a rainha assumem papeis relevantes na trama e expressam de
diferentes maneiras seus pontos de vistas. O ponto alto do filme é justamente o
jogo de olhares sobre os acontecimentos. A leitora da rainha, a camareira, as
damas de companhia, o bibliotecário, a nobreza que vive em Versalhes, o
barqueiro, a rainha, a rebelião popular em Paris afeta a todos. A visão de
todos é relevante. Desde Nietzsche, e sua concepção perspectivista do
conhecimento, sabemos que não conhecemos a realidade em si. Existem
interpretações, decorrentes dos distintos ângulos de observação assumidos. Ao
contrário do que propunha a noção clássica de perspectiva, não existe ângulo
privilegiada sobre os acontecimentos. O filme leva esta máxima a sério. Benoît
Jacquot elegeu o
seu ângulo.
A construção/imaginação
cinematográfica do passado, descompromissada com os códigos e as relações que
regem academicamente a construção do conhecimento histórico, oferece insights criativos
aos historiadores que buscam novos ângulos de observação do passado.