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sábado, 11 de maio de 2019

OS PODERES DA INVISIBILIDADE E OS DILEMAS DO SUJEITO ÉTICO: DO ANEL DE GIGES AO SENHOR DOS ANÉIS.


Os poderes da invisibilidade E OS DILEMAS DO SUJEITO ÉTICO: do Anel de Giges ao Senhor dos Anéis.


Quem já não se imaginou, por diferentes razões, dominando a técnica ou o poder da invisibilidade? Nas minhas fantasias de menino desejava me tornar invisível para apanhar bergamotas, peras e butiás no pomar de um velho beberrão da vizinhança, que tinha uma arminha de pressão para derrubar chumbo e sal na molecada invasora. Era difícil enganá-lo. O sujeito parecia invisível. Do nada ele aparecia e atirava sem dó. Eu nunca fui atingido, mas alguns amigos não tiveram a mesma sorte e foram feridos nas pernas. Imaginávamos que o homem fosse um bruxo, com uma bola de cristal, capaz de adivinhar as nossas intenções e se antecipar. Nem dos galhos carregados que pendiam para fora dos muros podíamos apanhar os frutos. Para alcançar os galhos tínhamos que subir no muro. E aí começavam os problemas.

Michel de Certeau nos ajuda a decifrar os segredos do cobiçado pomar e da incansável luta para defendê-lo ou invadi-lo. Nada de bruxaria e bolas de cristal. A invisibilidade do vizinho era estratégica; ficava escondido, longe do nosso campo de visão, para pegar-nos de surpresa. Conhecia o terreno, se posicionava bem, e cobria vários ângulos ao mesmo tempo. A nossa, era tática. Inventávamos mil maneiras de entrar no pomar sem sermos vistos. Dividíamos as funções: enquanto uns chamavam a atenção na parte da frente do terreno, outros subiam no muro na parte de trás. Agíamos à tardinha, certos de que a pouca claridade nos favoreceria. Era um jogo de gato e rato. O vizinho, na defesa dos seus domínios, montava as armadilhas; nós, com molecagens astutas, procurávamos driblá-las. Quem conseguisse ficar sem ser visto levava a melhor. Mas o jogo podia mudar no dia seguinte. Para nós era uma brincadeira, ligeiramente perigosa, que, se bem-sucedida, poderia render bons frutos. Para ele talvez também fosse. O velho era solitário, não recebia visitas e bebia o dia inteiro. Dá para imaginá-lo de tocaia, paciente, bebericando alguma coisa para calibrar a mira, à espera dos endiabrados adversários! Acho que os belos pés de frutas eram apenas chamarizes para atrair a gurizada e se exercitar no tiro ao alvo.

Quando o velho morreu, perdemos o interesse pelo pomar. A brincadeira perdeu a graça. O lugar ficou abandonado durante anos e nós raramente subíamos no muro para apanhar frutas. No começo dizíamos que o fantasma dele estava lá, rondando, vigilante e invisível, para espantar os intrusos. A imaginação infantil, estimulada pelos causos de assombração que ouvíamos dos adultos, até que rendeu bons sustos. Mas logo perdeu a graça também. Nosso valoroso e respeitado adversário não merecia ser reduzido a uma triste e vingativa assombração. Acho que por esta época meu interesse pelas frutas foi diminuindo à medida que aumentava meu interesse pelas meninas. Tímido, e nada descolado, desejava me tornar invisível para saber o que as gurias da rua de cima falavam sobre nós, sobre mim. Evitaria o constrangimento de um não. A invisibilidade seria a arma secreta perfeita contra os terríveis dramas da insegurança adolescente.

Minha referência de invisibilidade era o seriado estadunidense “O Homem Invisível”, com 13 episódios, de 1975, que estreou no Brasil em 1978. Os efeitos especiais, empregando a técnica de chroma key, eram de arrasar. Basicamente, eliminava-se o fundo de uma imagem para isolar, ou descontextualizar, personagens ou objetos de interesse que, posteriormente, seriam combinados com outra imagem de fundo (A técnica é usada hoje, por exemplo, nos programas de previsão do tempo, na televisão). No seriado, era possível criar a ilusão do telefone que flutuava e das portas que se abriam sozinhas. Para a época eram efeitos extraordinários!

Tanto o seriado quanto os filmes de 1933, de 1940 e de 1958, foram inspirados na obra O Homem Invisível, de H. G. Welles. Nos filmes, o homem invisível era um assassino. No seriado, Daniel Westin, o cientista que descobriu a fórmula da invisibilidade, tornou-se herói. Quando percebeu que suas descobertas seriam utilizadas pelos militares para fins bélicos e políticos, usou o poder que descobriu para destruir o equipamento e a fórmula, para que ninguém pudesse utilizá-las para outros fins. Daniel Westin foi um dos meus heróis da infância. Eu queria ser o Homem Invisível (Embora meus propósitos não fossem tão elevados).

A ideia de tornar-se invisível e desfrutar dos privilégios da invisibilidade ocupa a imaginação humana há mais de três mil anos. O tema atravessa os tempos, perpassa diferentes culturas, com diferentes significados, e é recorrente nas diversas expressões humanas: está presente nas narrativas míticas, na filosofia, na literatura e nas narrativas cinematográficas, graças às quais o tema sobreviveu até os dias de hoje. Parece-me um exercício oportuno, de fundo ético e histórico, perceber os diferentes sentidos atribuídos à invisibilidade e refletir sobre o que faríamos se pudéssemos fazer o que bem entendêssemos sem ser vistos ou descobertos.

Como a invisibilidade não depende da vontade humana, ela é adquirida, nas diferentes narrativas, por meio de objetos divinos (o capacete de Hades), de objetos mágicos (anéis), de acidentes cósmicos (a mulher invisível do Quarteto Fantástico) ou de experiências científicas clandestinas (O Homem Invisível).

Uma das narrativas mais antigas e conhecidas é o mito de Perseu. O herói, que se lançou na missão de trazer ao rei Polidectes a cabeça da terrível Medusa, ganhou de presente das Ninfas o capacete de Hades, que assegurava a invisibilidade para quem o portasse. O capacete fora um presente dos Cíclopes a Hades, uma arma poderosa para ser usada na guerra contra Cronos (A Titanomaquia, a guerra do Titãs, liderados por Cronos, contra os deuses Olímpicos). Sem ser visto, Hades desarmou Cronos enquanto Posídon e Zeus se encarregaram de derrotar o Titã. A etimologia de Hades - á (a - não) e ’ideîn (idêin - ver) - faz referência à invisibilidade (não visto), tanto do deus quanto do reino subterrâneo que preside (o reino dos mortos).


De posse do capacete de Hades, Perseu pode se aproximar da Medusa sem ser notado. Decepou a cabeça do monstro e a guardou prudentemente numa bolsa especial, que também ganhara das Ninfas (Um alforje conhecido como quíbisis). A invisibilidade era uma dádiva dos deuses para o filho mortal de Zeus. O privilégio era para poucos. Foi assim que Perseu pode cumprir sua imprudente promessa a Polidectes e, no seu papel de herói, tornar a terra (Geia) um lugar menos perigoso de se viver. Havia um monstro a menos no mundo.

A Tentação dos Anéis Mágicos

Do mito, passamos à filosofia, embora sem abandonar a narrativa mítica. Platão, no Livro II da República, nos apresenta Giges, um pastor que servia na casa do soberano da Lídia. Glauco, irmão mais velho de Platão, debatendo com Sócrates o tema da Justiça, usa o caso de Giges para ilustrar um argumento sobre dar aos homens, justos e injustos, o poder de fazer o que quisessem. O que fariam eles? Uma grande tempestade e um tremor de terra, conta Glauco, abriu uma fenda no solo, onde Giges apascentava o rebanho. Admirado, desceu pelo buraco e viu um cavalo de bronze oco, dentro do qual encontrou um cadáver, provavelmente de um gigante, que trazia um Anel de ouro na mão. O pastor se apossou do Anel e retornou à superfície.

Numa reunião com o Rei, para comunicar sobre os rebanhos, como era habitual, Giges, com seu Anel, sentou-se ao lado dos pastores. Ao girar distraidamente o engaste do Anel tornou-se invisível e pode ouvir o que os outros falavam sobre ele. Surpreso, girou o engaste na direção contrária e voltou a ser visível. Experimentou novamente, para se certificar do poder no Anel. Cheio de si, fez-se delegado de um grupo de pastores que se reuniriam com o Rei para prestar contas das ovelhas. Lá chegando, seduziu a esposa do soberano e, com sua ajuda, matou-o e tomou o poder.

O mito encerra algumas lições. Na imaginação filosófica de Platão a narrativa da invisibilidade serve de pano de fundo para refletir sobre a justiça. Ponderando sobre a postura de Giges, Glauco concluiu que, se houvesse dois anéis, e um fosse colocado no dedo de um homem justo e outro no dedo de um injusto, nenhum dos dois seria suficientemente inabalável que permanecesse no caminho da justiça e fosse capaz de resistir à tentação de se apossar do que não era seu. A fronteira entre o que é justo e injusto se dissolveria como num passe de mágica. Dispondo de um grande poder, e certo da impunidade, o ser humano se comporta como se fosse um deus. Ninguém é justo por sua vontade, mas forçado, sentencia Glauco. Não existe uma moral essencial que habita, desde sempre, as profundezas ontológicas do ser! Tudo não passa de um jogo de convenções e aparências. O Anel da invisibilidade derrubaria a máscara das convenções e faria emergir a amoralidade constitutiva da natureza humana, que se esconde sob o véu das obrigações morais.

Glauco, segundo o filósofo francês André Comte-Sponville, quer provar que o justo e o injusto, o bom e o mau, ambos, conduzidos pelo desejo, perseguem o mesmo fim, divergindo apenas pela escolha tática dos meios. O Anel mágico, dispensando quem o usa de toda e qualquer preocupação tática, tornaria os fins visíveis à luz do dia. O Anel de Giges é um espelho singular, que reflete e escancara os nossos vícios.

Giges era um pastor da Lídia. Hoje, poderia ser qualquer um, cada um de nós - um médico, um professor, um pedreiro, um homem, uma mulher -, que teve a sorte ou o azar de encontrar um Anel mágico. Todos nós, segundo Glauco, seríamos profundamente abalados e modificados pelo poder da invisibilidade. Nossos comportamentos morais desapareceriam e, longe do alcance dos julgamentos alheios, atenderíamos apenas ao chamado, sem freios, do nosso desejo.

Sócrates, herói trágico de Platão, demonstrará, de forma magistral, que a justiça é mais vantajosa que a injustiça, e em si mesma o maior dos bens. Giges encontrou o Anel, trapaceou e se tornou Rei. Se Sócrates tivesse encontrado o Anel, teria continuado a ser o velho e virtuoso Sócrates? Para Platão sim. É a sua aposta da moral (André Comte-Sponville. Viver: O mito de Ícaro. 2º volume). O Anel é um espelho singular, que pode também realçar nossas virtudes. É o espelho do sujeito ético. O discurso e os exemplos de Glauco são eloquentes, tentadores e convincentes. É isca atraente lançada em bom anzol. Porém, a contra argumentação serena, mas incisiva, de Sócrates, demonstrando pacientemente as fragilidades do discurso do interlocutor, o põe por terra. No horizonte filosófico de Platão haviam essências a serem encontradas e cultivadas. Para além das opiniões e das convenções, havia uma moral essencial, ideal, que a filosofia (como meio) poderia acessar. Sócrates, o homem mais justo e sábio que Platão conheceu (Carta Sétima), era a encarnação deste ideal. Sócrates preferiu morrer a usar o Anel da invisibilidade (o plano de fuga preparado pelos amigos) para escapar sorrateiramente da prisão.

Da imaginação filosófica, passamos à imaginação literária e cinematográfica. Na saga épica o Senhor do Anéis, os Hobbits Bilbo e Frodo, da linhagem dos bolseiros, carregam um pesado fardo: guardar o “Um Anel” do Poder. Bilbo, nas aventuras que viveu ao lado do mago Gandalf e dos Anões, encontrou o “Um Anel”, forjado por Sauron na Montanha da Perdição, em Mordor, que outorgava enormes poderes para quem o portasse. Não era um Anel qualquer. Era o Anel Mestre, forjado com o propósito de dominar e governar os outros Anéis. Os versos, conhecidos na tradição élfica, que Gandalf diz a Frodo, resumem a história dos Anéis:

“Três Anéis para os Reis-Elfos sob este céu,
Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para os Homens Mortais fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontrá-los,
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.”

Bilbo guardou o “precioso” objeto por 60 anos na sua casa, no Condado dos Hobbits, e se manteve imune à tentação, embora tenha se afeiçoado a ele. O Anel lhe trouxe longevidade e, aos 111 anos, quando deixou o Condado para ir em busca de novas aventuras, deixou o objeto de estimação sob os cuidados do seu sobrinho Frodo, que também demonstrou incrível capacidade de resistir. Coube a Frodo a difícil missão de levar o Anel à Mordor para destruí-lo e evitar que Sauron o recuperasse para realizar suas ambições de poder. Apesar de ser tentado diversas vezes, e quase sucumbir, Frodo usou o Anel, como também o fizera Bilbo, para passar despercebido em situações difíceis, não ser capturado e ajudar seus companheiros a se livrar de perigosas enrascadas.


Com exceção dos Hobbits, que resistem virtuosamente aos poderes do Anel, a tentação de tomar o objeto desejado perturba os personagens ao longo da saga. Uns o desejam para conquistar o poder e impor a tirania sobre a Terra Média, outros, para se opor à tirania e defender o mundo dos humanos. Mas ninguém, mesmo que movido pelas melhores intenções, como era o caso de Boromir, teria força para resistir às tentações. O Anel, na saga de Tolkien, pode ser visto como uma metáfora sobre o que cada um de nós faria com um poder desses nas mãos e sobre os efeitos de um grande poder sobre nós.
Frodo, a certa altura da jornada à Mordor, cansado do pesado fardo, entregou-o espontaneamente a Galadriel, a Senhora de Lorién, o ser mais antigo, poderoso e respeitado da Terra Média, que o recusou temerosa do que poderia se tornar tendo-o em sua posse. Nem ela, nem Gandalf, nem Elrond, se sentiam fortes o suficiente para portarem o Anel e recusaram a sua posse. Ele conferia poderes proporcionais à estatura do seu portador. No que se tornaria Galadriel, transformada pela força corruptora do Anel? Mesmo desejando fazer o bem, como seria o caso destes três personagens, seria muito difícil não sucumbir às tentações do poder de a todos governar. Mas os pequeninos Bilbo e Frodo permaneceram inabaláveis e não cederam à tentação de usar os poderes mágicos para seus próprios fins. Se mantiveram os mesmos. A estatura, física e política, e a ética Hobbit, por assim dizer, os tornavam menos apegados e menos vulneráveis aos chamados do Anel. Eles representam, no universo mítico criado por Tolkien, a rejeição da tese de Glauco de que não haveria distinção entre um homem justo e um injusto, quando expostos a tamanho poder. A grandeza dos pequeninos Hobbits, contrastando com a fraqueza dos humanos, é a aposta da moral numa terra assolada pelos terríveis Orcs e pelas sinistras ambições de Sauron! O caráter e a integridade moral de Bilbo, Frodo e Sam, são postos à prova diversas vezes ao longo das duras e perigosas jornadas, e eles respondem com ações virtuosas, com gestos de coragem, de grandeza, de solidariedade, de amizade e de desapego. Frodo carrega o Anel, sofre física e psiquicamente com o peso da responsabilidade, mas não o faz esperando algum tipo de recompensa. Não busca a glória, perseguida pelos homens, e não se lança na jornada como um herói típico, que deseja ser lembrado no futuro. Seu heroísmo é silencioso, humilde, feito de pequenas e invisíveis atitudes. Ele assume a árdua missão de levar o Anel à Mordor porque pensa que este é o seu dever, a sua responsabilidade. A ética Hobbit é eudemonológica, é a ética das virtudes, que pode conduzir à felicidade natural, que parece predominar no mundo sem grandes ambições do Condado (Tão apreciado por Gandalf).


E você, o que faria de posse de um destes Anéis? Usaria para propósitos elevados, como os adoráveis Hobbits? Ou se entregaria aos caprichos dos poderes do Anel, como Giges, para tirar vantagens das situações e realizar os seus sonhos secretos e inconfessáveis?

De posse de um Anel mágico, nos tempos de criança, eu não teria dúvidas de onde e de como usá-lo. Hoje, dono do meu próprio e modesto pomar, e consciente dos direitos alheios e dos limites que a vida em sociedade impõe ao meu querer, eu o usaria em duas situações declaráveis: para passar despercebido em certas situações (sou um tanto avesso a eventos sociais e continuo sendo um menino tímido) e para descobrir o que minha cachorra faz quando saio de casa. O resto eu não conto. Não sou puro como um Hobbit, nem ganancioso como Giges.

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