NA ESQUINA DO POSITIVISMO COM O JACOBINISMO REPUBLICANO: Reminiscências
da Esquina Republicana.
Passei minha infância e
adolescência (e parte da vida adulta) no ponto de encontro entre duas ruas bem
conhecidas em Santa Maria (RS), cujos nomes homenageavam duas figuras
importantes no contexto da construção do regime republicano (1889 – 1891) e de
sua afirmação nos planos simbólico e institucional: Benjamin Constant e Silva
Jardim.
Benjamin Constant (1837-1891) foi
intelectual e professor, de escolas civis e militares, republicano e
positivista. Foi um dos grandes divulgadores das doutrinas de Auguste Comte no
Brasil, um dos articuladores do golpe militar que derrubou a Monarquia, e
ocupou cargos importantes no governo provisório de Deodoro da Fonseca (Ministro
da Guerra e Ministro da Instrução Pública).
Silva Jardim encarnou a ideia
jacobina, a la Danton, de República, inspirada no modelo francês. Os jacobinos
brasileiros defendiam uma ideia de República considerada radical. Adversário
ferrenho do regime monárquico, Silva jardim participou ativamente da campanha
republicana.
Ambos morreram em 1891. Não viram
– como Lima Barreto e Euclides da Cunha viram, e se desencantaram – no que a República
se transformou. Constant morreu um pouco antes da Constituinte encerrar os seus
trabalhos e concluir a Constituição. Jardim morreu no vulcão Vesúvio, durante
uma visita, tragado por uma fenda que se abriu aos seus pés, antes do
jacobinismo se associar ao florianismo.
Nos anos iniciais da República,
os nomes das ruas foram alterados. Os antigos nomes, geralmente associados a
figuras e às tradições monarquistas, foram substituídos por nomes relacionados
à República. As mudanças dos nomes faziam parte das batalhas em torno da afirmação
do regime republicano no plano simbólico. Apagava-se a história, ou as
referências históricas ligadas à monarquia, e rebatizava-se as ruas das cidades
com nomes que homenageavam personalidades identificadas com os ideais ou com o
regime republicano. Silva Jardim e Benjamin Constant foram duas das figuras
mais homenageadas. Difícil encontrar uma cidade que não tenha ruas com os seus
nomes.
Na esquina da Silva com a
Benjamin, minha mais significativa referência urbana, eu encontrava os amigos. Jogávamos
futebol, andávamos de skate, brincávamos de esconde-esconde, trocávamos
figurinhas de álbuns de futebol e desenho animado, jogávamos bolinha de gude,
bebemos nossas primeiras cervejas e ensaiamos os primeiros namoros. Tudo
acontecia naquela esquina, que ficava numa elevação estratégica que dava vista
para todos os lados.
Na fase dos vinte e poucos anos,
já cursando a faculdade de História, virávamos as madrugadas naquela esquina.
Alguns amigos novos, de outros cantos da cidade, se juntavam ao meu grupo para
bater papo, sobre política, música, trocar vinis e fitas k7 e tocar violão (Improvisávamos,
com violões precários, canções do Belchior, do Caetano, do Gil, dos Stones, do
Mautner, interpretações da Elis, uma coisa ou outra do Led Zepelim, e por aí
vai. O gosto da moçada era variado e ninguém tocava muito bem). Não éramos mais
crianças e a esquina também já não era mais a mesma. Dois ou três prédios foram
construídos, o asfalto substituiu as charmosas pedras de paralelepípedo e os
carros, mais numerosos e andando mais rápidos, já não permitiam, às novas
gerações, brincar, como brincávamos, no meio da rua.
Àquela altura, já metido à historiador,
me dei conta dos nomes das ruas e brincava politicamente com a situação. Quando
alguém perguntava onde morava, respondia em tom de brincadeira: na esquina
republicana, no ponto de encontro do Positivismo com o Jacobinismo. Era uma
brincadeira inteligentinha para
impressionar os amigos.
Ainda hoje, quando volto à Santa
Maria, vou até a esquina dar uma olhada. Meu irmão ainda vive na casa onda
morávamos (a menos de 50 metros do encontro das ruas). Levo meu sobrinho, hoje
com 8 anos, sentamos na mesma calçada de cimento e ficamos de papo, observando
o movimento. Está tudo tão diferente, mas, se observo alguns detalhes, um muro
castigado pelo tempo, uma calçada tomada pelo mato, uma velha garagem, o
pequeno trecho de rua de pedras que dá acesso à esquina, tudo vem tão vivamente
à memória, como no filme do Tornatore, Cinema
Paradiso, quando Totó volta à sua cidadezinha, na Sicília, para o enterro
de Alfredo.
Para além dos nomes, e da
brincadeira política, as ruas Silva Jardim e Benjamin Constant eram as artérias
que me levavam, sempre a pé, para todos os cantos da cidade. Da esquina
republicana tomávamos todas as direções. Era o nosso ponto de partida. A
história que construí na e com a cidade passa por estas ruas.
Existe uma poética das ruas, escrita
com nossas experiências, tecida por lembranças, palmilhada pelas andanças,
constituída pelos universos que elas comunicam. Uma poética das direções, dos
sentidos, das reminiscências, do que se perde e do que se acha no vai e vem das
ruas.
Na esquina da Silva com a
Benjamin eu descobri o mundo. Ali, nas noites quentes, perfumadas de jasmim, eu
li Drummond. Nas madrugadas frias, envoltos pelo espesso lençol de cerração, filosofávamos
em vão, sem guia, sem chão, sem Comte, sem Danton, embalados apenas pelo gosto
da conversa, que aflora nas rodas de chimarrão.
Às vezes penso que nunca sai
daquela esquina.
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