ENTRE CILA E CARÍBDIS: A
DIFICIL ESCOLHA DOS PERUANOS NAS URNAS.
"Quantos,
na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem
estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar da
corrente, se iriam perder cegamente, ou em Cila, ou em Caríbdis".
(Sermão de Santo António aos Peixes. Padre António Vieira).
A certa
altura da viagem de regresso à Itaca, Odisseu se deparou com duas criaturas
ameaçadoras, emboscadas em ambos os lados do estreito de Messina, entre a
Itália e a Cicília. Não tinha outra alternativa, tinha que escolher entre Cila
e Caríbdis, monstros marinhos que aterrorizavam os navegadores. Cila era um monstro do
rochedo, em forma de mulher, com seis cães que devoram tudo o que estivesse a
seu alcance. Caríbdis era um monstro das profundezas que sorvia e vomitava água
constantemente, formando um redemoinho que engolia tudo. Quem desviasse
do turbilhão de Caríbdis se destruiria nos rochedos de Cila. Fosse qual fosse a
escolha, as perdas seriam inevitáveis e terríveis.
Navegando
em águas perigosas, distantes do continente da democracia, o povo peruano está
diante de uma escolha difícil nas urnas. De um lado, o candidato “de esquerda”
Pedro Castillo; de outro, Keiko Fujimori, da direita fujimorista e filha do
ex-ditador. São candidaturas opostas, com projetos distintos, mas ambas
representam perigos significativos às lutas políticas contemporâneas e ao
estado democrático de direito. Seja qual for a escolha, no plano da metáfora, a
democracia peruana vai de encontro ao redemoinho ou ao rochedo.
Pedro
Castillo é professor no ensino fundamental e dirigente sindical. Saiu do
anonimato e ficou conhecido do público em 2017, quando esteve à frente de uma
greve de professores por melhores salários e contra a avaliação dos professores
por desempenho (modelo gerencialista de educação), que durou três meses. A
greve o transformou numa liderança nacional e o habilitou a disputar as
eleições presidenciais. A campanha do candidato baseou-se em dois eixos fortes:
o reconhecimento da saúde e da educação como direitos fundamentais e o combate
à corrupção (ponto frágil da opositora).
Concorre à
presidência pelo partido marxista leninista mariategusita Peru Libre, fundado e
refundado entre 2007 e 2012 por Vladimir Cerrón. A presença de Cerrón na
campanha traz algum desconforto à candidatura de Castillo. Ex-governador de
Junin, Cerrón foi afastado sete meses depois da posse por corrupção. Indagado
sobre a presença do secretário geral do Peru Libre no seu governo, Castilllo,
tentando se distanciar, afirmou: “O senhor Vladimir Cerrón está legalmente
impedido. Não vão vê-lo nem como porteiro de nenhuma instituição do Estado.
Essa luta não é do Cerrón, nem do Castillo, é do povo”.
Na
campanha, Castillo defendeu a construção de um “estado socialista” e, na mão
oposta da adversária, que o Estado tenha um papel mais presente e ativo na
economia. Manifestou interesse em negociar diretamente com os mineradores e
empresas de gás para convencê-los a investir parte de seus lucros no país e
propôs um aumento do orçamento para a educação de 3,5 % para 10 % do PIB, com o
propósito de combater o analfabetismo, investir em melhores salários para os
professores e em infraestrutura. Paralelamente, as declarações controversas de
Castillo desgastam a imagem de um homem simples, educador rural, que usa chapéu
de palha e anda a cavalo, que se coloca ao lado dos pobres e excluídos da ordem
econômica e anuncia uma mensagem direta: “Chega de pobres em um país rico”.
Conservador em relação às pautas identitárias e à legalização do aborto,
Castillo reconhece apenas os direitos de homens e mulheres, como expressões
naturais e legítimas, rejeita veementemente o casamento entre pessoas do mesmo
sexo e se opõe à inclusão do gênero nos currículos escolares. Recentemente,
disse que o feminicídio é resultado da ociosidade gerada pelo Estado e
sustentou que o estímulo ao desenvolvimento nacional é a melhor política contra
a violência sofrida pelas mulheres. De maioria católica, o Peru, quando
comparado à Argentina e ao Uruguai, é um dos países da região mais atrasados
nas discussões sobre igualdade de gênero e direitos da comunidade LGBTQI+.
Castillo
está longe de ser um outsider da política, como querem alguns analistas
políticos. É uma novidade e uma surpresa eleitoral, um azarão talvez, mas não
um outsider. Sindicalista e católico, o candidato representa um tipo
político muito comum na América Latina, que personifica as lutas sociais, a
indignação com a pobreza e a exploração do trabalho e as reveste com o manto
moral da religião. Isso explica, em parte, a aversão do candidato ao aborto
legal e às reivindicações LGBTQI+. No Peru a religião tem um peso decisivo nas
eleições. Foi neste país que o sintagma “ideologia de gênero” apareceu pela
primeira vez numa
nota oficial da Conferência Episcopal do Peru, intitulada La ideología
de género: sus peligros y alcances, assinado pelo ultraconservador
monsenhor Óscar Alzamora Revoredo, marianista e bispo auxiliar de Lima, em
1998. Traduzido em diversos idiomas, o texto tornou-se referência e passou a
exercer contínua influência na comunidade cristã mais arredia à discussão do
tema. Nas mãos dos detratores reacionários “Ideologia de gênero” tornou-se uma
arma poderosa para atacar e estigmatizar os adversários, comumente chamados de:
destruidores da família, cristofóbicos, homossexualistas, gayzistas, feminazis,
pedófilos, heterofóbicos, zoofilistas, e por aí vai. No Peru, o movimento
latino-americano contrário a “ideologia de gênero”, “Não se mete com meus
filhos” (#ConMisHijosNoteMetas), tem ampla base popular e mobilizou milhares de pessoas em
manifestações em 2018.
Fundado em Lima, em 2016, o movimento reuniu milhares de peruanos na Plaza San
Martin, em Lima, em novembro de 2018, exigindo que o governo de Martin Vizcarra
não promovesse as pautas de gênero nas escolas. A abordagem LGBTQI+ do governo,
para representantes do movimento, era fruto de um ideal marxista que quer impor
a “ideologia de gênero” pela força coercitiva do Estado. O populismo
conservador, de direita e de esquerda, de Keiko e de Castillo, abraçou este
movimento e o incorporou às suas campanhas. Castillo tornou-se ativista e Keiko alisou-se a pastores evangélicos também ligados ao movimento.
Trocando em miúdos, Castillo combina
o socialismo marxista, a defesa de um Estado forte e interventor, o fim dos
monopólios privados e a erradicação da exploração do trabalho, com um conservadorismo
intransigente, moralista e homofóbico.
Algumas
declarações também colocam o véu da suspeita sobre suas convicções
democráticas, como a criação de uma lei de regulação da mídia, o
fechamento do Congresso Nacional, caso não aceite a proposta de uma
Constituinte, e o fechamento da suprema corte peruana.
Com o perdão do exagero, Pedro
Castillo parece uma síntese infeliz de Maduro com Bolsonaro.
Keiko
Fujimori, do partido da direita fujimorista Força Popular, não é nenhuma
novidade. Keiko fundou o partido em 2009 e foi candidata à presidência em três
oportunidades. Carrega o peso do sobrenome e do passado recente, seu e do pai,
na política peruana. Pelo lado do pai, os horrores da ditadura, a corrupção e
os abusos dos direitos humanos (motivos pelos quais Alberto Fujimori está
preso); por sua própria conta, a denúncia de corrupção e a prisão, em 2018, sob
a acusação de lavagem de dinheiro e de ter recebido 1, 2 milhão de dólares
irregularmente da Odebrecht e de um grupo financeiro peruano para bancar as despesas das
campanhas presidenciais de 2011 e 2016.
No lado
oposto ao de Castillo, Keiko não é intervencionista, defende a manutenção das
regras econômicas em vigor e se posiciona a favor do livre comércio e de
medidas que atraiam mais investimentos externos para o país, especialmente para
a mineração (área que Castillo quer nacionalizar).
Num
esforço para se distanciar da imagem do pai, Keiko tem reiteradamente declarado
respeito à democracia. Promete conduzir o país observando o estado democrático
de direito, mas com “mão forte”. Chegou a criar um neologismo para caracterizar
a “democracia firme” que pretende exercer: demodura. Vindo de quem vem,
e com o sobrenome como corolário, o conceito é de provocar calafrios.
Na mesma linha de Trump e
Bolsonaro, a campanha de Keiko utilizou as redes sociais para denunciar uma
suposta fraude eleitoral em ação e acusar e associar a candidatura de Pedro Castillo
ao comunismo (o bicho papão da direita) e ao terrorismo (do Sendero Luminoso).
É a velha tática da direita populista de desinformar e espalhar o medo,
apelando para teorias conspiratórias, e insistir no discurso envelhecido de que
o comunismo ameaça as liberdades. Numa briga com Evo Morales, durante a
campanha, mandou um recado que respingou até no Lula: “Eu quero dizer bem claramente ao
senhor Evo Morales: você não se meta no meu país, não se meta no Peru. Fora do
Peru, Evo Morales! Nós, peruanos, não vamos aceitar a sua ideologia, o
socialismo do século 21. Dizemos fora ao comunismo, fora a Maduro, fora a Lula
e a esse tipo de ideologias que buscam nos destruir e trazer pobreza”.
Numa campanha populista de
direita, seguindo a tendência contemporânea, também não poderiam faltar as fake
News. A mais bizarra envolve Leonel Messi. Na sua conta no Twitter,
Rafael López Aliaga, aliado de Keiko, divulgou que Messi teria entrado em campo
contra Pedro Castillo e a ameaça do comunismo. López Aliaga, conhecido como o
“Bolsonaro peruano”, é um empresário milionário e solteiro, ligado à Opus Dei
(vanguarda ultraconservadora da igreja católica, muito forte na América
Latina), que promete dar combate sem tréguas a “nova ordem marxista”, o suposto plano global para
destruir a economia e instaurar um “paraíso socialista”. O sujeito, que se declara
apaixonado pela Virgem Maria, se diz “viciado na Eucaristia” e praticante diário da autoflagelação
com uma corrente de metal com ponta, para se manter no caminho da castidade.
A imagem, que viralizou nas
redes sociais fujimoristas, é uma fraude. Adulteraram uma campanha da Adidas
que chamava a atenção para a poluição dos oceanos – Run for the
oceans –, que Messi divulgou em suas redes sociais.
Castillo ou Fujimori? Que
escolha difícil! Odisseu teve que escolher o caminho menos perigoso. Escolheu,
mas perdeu os seus melhores homens e passou a conviver com o terrível peso de
sua decisão.
A unidade
fraseológica "entre Cila e Caríbdis" nos adverte sobre os perigos
que, em situações em que temos que optar por um lado, ambos os lados nos
ameaçam simultaneamente.
Para não
ser destruído, Odisseu sacrificou seis valorosos homens. Dirigiu seu navio para
Cila, para fugir do segundo monstro. Julgou o rochedo menos perigoso. O plano
era navegar bem perto e bem depressa. Era preferível perder alguns homens a
perder todos. Enquanto do outro lado Caríbdes sorvia a água terrivelmente, Cila
agarrou seis dos melhores e mais fortes homens do barco e retirou-se para
dentro da caverna para devorá-los. Aterrorizados pelos gritos dos homens que
lutavam contra a morte e clamavam por ajuda, o navio conseguiu passar e seguir
viagem com os sobreviventes. Foi o mais lamentável espetáculo que os olhos do
herói testemunharam, sentenciou Homero.
O Peru se
encontra, à sua maneira, no estreito de Messina. As duas candidaturas, não há
dúvidas, situam-se em espectros políticos opostos e antagônicos e apontam para
distintos modelos de sociedade. Mas as duas campanhas também apontam para a
construção de sociedades intolerantes e ameaçadoras às liberdades individuas.
Faço uso
livre do que a ciência política chama de “teoria da ferradura” para entender
melhor os extremos da política peruana polarizadas nesta eleição. A expressão foi criada por
Jean-Pierre Faye, linguista e teórico do pensamento totalitário, no livro O
Século das Ideologias, publicado em 2002. Faye se refere a uma ferradura
terminológica que reúne os vários matizes da paleta ideológica. Ao contrário de
serem extremos opostos expostos num plano linear e contínuo, à semelhança de
uma régua, os extremos do espectro político (direita e esquerda) acabam se
aproximando, da mesma forma que os extremos de uma ferradura. A ferradura
parece uma ferramenta útil para o caso das eleições peruanas. Pedro Castillo e
Keiko Fujimori acabam se encontrando, e quase dando as mãos, nos seus arroubos
extremistas e manifestações de intolerância. Moralmente, são siameses
políticos. São opostos convergentes. As táticas populistas e o
conservadorismo atávico os aproximam. São opostos no plano ideológico, pessoal
e social. Pedro era menino pobre, de uma família de camponeses, de San Luis de Puña,
uma área pobre e periférica do Peru; Keiko nasceu no Peru urbano, cosmopolita, da elite econômica de Lima, é bacharel pela Universidade
de Boston, casada com um estadunidense e filha do ex-ditador. Mas ambos
compartilham de visões muito semelhantes em relação à pauta de costumes. Ambos se opõem
veementemente ao casamento gay, se declaram defensores da família tradicional e
não pretendem promover nem reconhecer os direitos da população LGBTQI+ nem o
aborto, mesmo em caso de estupro. E tudo isso com amparo bíblico. “O religioso
não divide os seguidores de Fujimori ou Castillo, eles são conservadores”, disse,
em 31 de maio deste ano, Luiz Pássara, analista do Diálogos do Sul, de Lima. A
direita reacionária, da qual Keiko é a representante na eleição, associa a
“ideologia de gênero” ao marxismo de Castillo, mas o candidato da esquerda não
chega a ser atingido pelas críticas porque é religioso e inimigo declarado das
pautas de gênero.
Seja quem for o vencedor das
eleições, a travessia do estreito vai ser perigosa. Odisseu apostou no lado
menos arriscado. Mesmo assim as perdas foram devastadoras. Mario Vargas Lossa,
notório antifujimorista, declarou apoio à Keiko, por considerá-la um “mal
menor”. Outros(as) investem em Castillo como uma aposta na democracia. Aqui do
meu canto, desejando toda sorte do mundo aos peruanos, torço para que as
minorias identitárias, desprezadas por ambos os lados, não fiquem como os
companheiros de Odisseu, aos gritos pedindo socorro enquanto o rochedo
impiedoso os devorava na sua tranquila e feroz indiferença.
Para diversos analistas, a eleição
no Peru, polarizada entre duas candidaturas populistas, reflete a situação de
desmonte e descrença nos partidos políticos tradicionais, a crescente
desconfiança na política, decorrente dos sucessivos escândalos de corrupção, e
os efeitos devastadores da pandemia do coronavírus. O Peru é um dos países mais
afetados da América do Sul. No dia 31 de maio o
número oficial de mortes por Covid-19 alcançou o total de 180.764
mortos. Segundo dados da Universidade John Hopkins, o Peru tem
a pior taxa do mundo de mortos da pandemia em números relativos à população. São mais de 500 vítimas do coronavírus para cada 100 mil
habitantes.
Olhando para a
nossa paróquia, e com todos os cuidados para não equipararmos realidades
distintas e personagens diferentes, estamos às vésperas de adentramos o
perigoso estreito de Messina. O rochedo e o redemoinho, por aqui, têm as suas
próprias particularidades, mas não são menos perigosos. Mas este é um assunto
para um próximo post.