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sexta-feira, 28 de junho de 2013

MADAME SATÃ



MADAME SATÃ


Escrevi este texto em 2004, logo depois de assistir Madame Satã. O filme é um soco no estômago. E o texto saiu de um golpe só. Acho que agora é um bom momento para tirá-lo do esquecimento.  A vida e as batalhas de Madame Satã (João Francisco dos Santos) são a recusa vigorosa e o autêntico contraponto a esta tentativa obscena e desavergonhada, representada por Marco Feliciano, de interferir na intimidade dos indivíduos. 

Não alterei nada no texto. Mantive as imprecisões e a primeira impressão que tive do filme. Saí do cinema, cheguei em casa, abri o computador e joguei as palavras... Não lapidei o texto. Hoje eu mudaria alguma coisa, acrescentaria outras e suprimiria algumas passagens. Mas não fiz.  Preferi manter o texto original.
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Aviso aos navegantes: este não é um texto científico, acadêmico e politicamente correto. É um texto passional, comprometido, impreciso, mal comportado, rápido e rasteiro como o jogo de pernas do capoeira endiabrado.

Passou meio despercebido do grande público o primeiro longa-metragem do diretor cearense Karim Aïnouz, Madame Satã. O filme circulou apenas em algumas salas alternativas de cinema, com baixa média de público.

O filme é baseado na história de vida de João Francisco dos Santos, negro, boêmio, filho de escravos recém-libertos, homossexual, malandro, capoeira, analfabeto, afável e violento, pai adotivo e transformista, que viveu no Rio de Janeiro entre as décadas de 1920 e1970. Karim enfoca parte da vida de Madame Satã, nome adotado por João Francisco, quando ele começa apresentar-se na noite carioca com shows de transformismo. Shows que parecem evocar a ancestralidade de “Priscila, a Rainha do Deserto”, só que sem o charme, o otimismo e o tom jocoso que embala a Odisseia Gay das bichas australianas.



Karim Aïnouz optou por fazer uma espécie de crônica íntima do cotidiano de João Francisco, antes da criação do mito Madame Satã. O que chamou a atenção do diretor para a história desse personagem singular da história carioca foi o tema da exclusão. Karim tenta reconstruir o cotidiano pobre de uma parcela da população carioca, que gravitava em torno de João Francisco, e o modo como estas pessoas, especialmente o personagem em foco, reagiam à exclusão. O filme reconstrói com impressionante realismo toda a atmosfera boêmia e marginal da Lapa da década de 1930. Sombrio, depressivo, perturbador, marginal e lírico, Madame Satã definitivamente não é um filme feito para agradar espectadores eventuais que buscam diversão nas salas de cinema. É um filme bastante ousado e corajoso, com interpretações vigorosas, viscerais e inspiradíssimas, principalmente de Lázaro Ramos, ator estreante que interpreta de forma marcante e hipnótica Madame Satã.



As cenas de amor entre os homens, os beijos lambidos, as trocas de carinhos, delicadas e violentas, são de tirar o fôlego. De fazer heterossexuais moralistas corar, abandonar o cinema (o que realmente aconteceu durante a exibição do filme no festival de Cannes). São os beijos mais verdadeiros e sensuais, entre homens, que vi no cinema. O filme não tem pudor, não usa de meias palavras. É sujo, violento e depravado, como era o cotidiano pobre e marginal do subúrbio do Rio de Janeiro (na imaginação de Karim Aïnouz). É o reverso da Belle Époque carioca, é o outro lado da bossa. É a Lapa sem ilusões, não idealizada. Onde preto pobre e bicha, se não tem navalha e não luta capoeira, dá o cú ou vive com o cú na mão. Universo destituído do glamour burguês, mas onde a burguesia dos bairros elegantes e higienizados realizava suas fantasias impossíveis, inconfessáveis. Tipo aquela de “Botinha, mas Ordinária”, em que uma moça da classe média é estuprada na chuva, sob a capota de um fusca por um bando de negros molhados e suados. E adora. Quantos moços de famílias brancas tradicionais do Rio, “bonitinhos e ordinários”, não foram “sodomizados” pelo membro negro de Madame Satã? Mas por favor, não vamos confundir isto com “democracia racial” ou “democracia sexual”. João Francisco é o furacão negro que desorganiza a paisagem do bem arranjado mundo patriarcal de Casa Grande & Senzala. No filme, a Lapa se metamorfoseia numa espécie de quilombo moderno, urbano, onde Zumbi da Lapa ou Satã dos Palmares protege e abriga nos mocambos/cortiços improvisados, os desafortunados da Ordem e do Progresso. 

João Francisco adotou o nome de Madame Satã inspirado num filme homônimo de 1930, de Cecil B de Mille. Filme que viu e adorou. Verdadeira antropofagia do glamour hollywoodiano adaptado ao cotidiano pobre dos redutos marginalizados da capital de um país periférico. 





Madame Satã era malandro numa época em que a malandragem passou a ser vista como um mal a ser combatido pelo estado em nome da paz social. Era negro e bicha num país racista e moralista, recém-egresso da escravidão. Mas não era uma vítima indefesa de um sistema injusto que não dava oportunidades aos despossuídos. Satã não cabe numa explicação sociológica, histórica, e não pode ser explicado pela velha fórmula dos intelectuais de esquerda que reduzem tudo à questão da injustiça social capitalista. Ele é escorregadio, evasivo, resiste aos conceitos e escapa dos enquadramentos sociológicos com a mesma facilidade com que escapava da polícia. Madame Satã jogava o jogo, invertia os papéis, improvisava a vida, com sua inteligência iletrada conquistada nas ruas, e driblava as dificuldades com um jogo de pernas de capoeira endiabrado. Era a vingança tardia dos escravos, do negro que não esperou a Lei Áurea para chutar a porta da senzala. Era filho de Iansã e Ogum, do despudor e da guerra. Exu capoeira, terror da sociedade disciplinar e ordeira, antítese do mundo do trabalho produtivo. Demônio negro que vivia nas brechas da sociedade normatizada, a perturbar-lhe o sono, que repunha as energias para o trabalho, e a debochar do sonho cor de rosa da prosperidade burguesa.  Madame Satã era a crítica não racionalizada do mundo ordenado pelo trabalho produtivo e pela promessa liberal da ascensão social. É a contrapartida do cinema do sul do mundo à epopeia liberal de Forest Gump. E Lázaro Ramos não ficou devendo nada a Tom Hanks. 


Satã não era uma bicha delicada, frágil. Era dono de um rebolado macho, de uma voz potente e de um olhar intimidador. Desmunhecava com charme vigoroso. Foi durante muito tempo personagem singular do carnaval carioca. Mas encarnava e traduzia o lado menos apoteótico e mais indisciplinado do carnaval. E neste carnaval, Madame Satã era rei e rainha, a Carmen Miranda dos desajustados, dos que foram barrados no american way of life tropical.

Para quem gosta de ser surpreendido por um filme e ser invadido pela intimidade alheia, eu diria, vá correndo na locadora mais próxima e reserve a fita. Não espere pelos cinemas, especialmente dos shoppings.  Não é o tipo de filme para ser exibido nestes espaços. Não atrai público, constrange os desavisados e leva os donos das salas de cinema a falência. É o preço que se paga pela ousadia. A sensibilidade cinematográfica não afina no mesmo diapasão do mercado consumidor de filmes. Glauber Rocha que o diga. Orson Welles também. Valeu Karim Aïnouz.













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