E
ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE: OS DIFERENTES
SENTIDOS DAS CAMINHADAS E A PERCEPÇÃO HISTÓRICA DAS DISTÂNCIAS.
“É bom colecionar coisas, mas é melhor caminhar.
Porque caminhar também é uma forma de colecionar coisas: as coisas que a pessoa
vê, as coisas que a pessoa pensa” (Anatole France).
Idoso caminhando no campo de centeio. Óleo sobre tela (Laurits Andersen Ring).
Pensar historicamente,
por mais óbvio que possa parecer, é entender que as “coisas” não são sempre do
mesmo jeito. De uma maneira mais
sofisticada, é entender que “aquilo que foi nem sempre é” (Foucault). As
distâncias, em termos culturais, que nos separam de passados nem tão distantes
são tão grandes que, por vezes, não nos reconhecemos nas narrativas que ouvimos
de pessoas mais velhas. Olhar historicamente para trás, sem perder de vista a
nossa condição no tempo, é a melhor forma de nos darmos conta das mudanças de
valores, de comportamentos, das percepções de tempo e espaço (longe, perto) que
singularizam o nosso presente. Embora a referência ao filme no título possa
denotar o contrário, o post é um livre exercício de descontinuidade histórica.
Quando criança adorava
ouvir as histórias do meu pai sobre as enormes distâncias que percorria, a pé
ou a cavalo, para trabalhar na feira com meu avô ou visitar um parente no
interior de Santa Maria (RS). As narrativas de vidas de pessoas mais velhas,
ainda que com boas doses de exagero e de romantizações, são algumas das
melhores formas de retorno ao passado. Na década de 1950 meu pai namorava uma
menina numa localidade de Santa Maria chamada Caturrita. Saía de casa bem
cedinho, antes do sol nascer, andava o dia todo a pé e chegava a tardinha. No
dia seguinte, bem cedinho, iniciava a marcha de volta. Na ida, levava presentes.
Na volta, trazia algum pedaço de carne e banha de porco, boa para fritar peixes
e modelar o cabelo (nos tempos da brilhantina, os rapazes pobres do interior
usavam banha de porco como cosmético). Quando perguntado sobre a distância,
dizia sempre: “não era longe não, era logo ali, era um pulinho.”
Ouvia curioso e ficava
imaginando as longas caminhadas e as dificuldades encontradas pelo caminho (as
estradas eram de chão batido, as picadas no meio da mata eram perigosas e a
travessia dos rios e córregos era sobre pinguelas improvisadas ou um troco de
árvore). Anos depois, como historiador e pesquisador, procurando boas
histórias, me deparei com narrativas semelhantes. Ouvindo os moradores mais
velhos de cidades do Alto Vale do Itajaí (Santa Catarina) sobre os primeiros
tempos da colonização fiquei sabendo das longas caminhadas para chegar às localidades, entre as décadas de 1920 e 1950. A região onde se situam os municípios de
Petrolândia e Ituporanga, antes conhecidas respectivamente como Perimbó e Salto
Grande, foi povoada por colonos que subiam de colônias mais antigas como Santo
Amaro, Angelina e São Bonifácio, a pé, empurrando carroças carregadas com
pertences, em caminhadas que duravam mais de uma semana. Uma viagem de carro
hoje percorre essa distância em uma hora. (A região para onde se dirigiam era
habitada sazonalmente pelos xokleng e temporariamente por tropeiros que subiam
ou desciam de Lages). Naqueles tempos, tudo estava por ser construído e as
ligações entre os lugares eram por estradas ou picadas pouco transitáveis. Os
vínculos com a antiga colônia, fundamentais para se estabelecer nas novas áreas,
os obrigavam amiúde a percorrer grandes distâncias. Seu Evaldo Schistel, numa
divertida conversa, contou que para visitar parentes ou “buscar uma coisa ou
outra” em Angelina, distante 130 km aproximadamente, andava 30 km num dia. Era “fácil”,
dizia, uma “coisa normal’. Tudo era muito longe. Para ir à missa, para visitar
a namorada ou para buscar mantimentos na venda mais próxima, se não tivesse um
bom cavalo, o jeito era caminhar. Mas isso não desanimava aquela gente,
especialmente se a caminhada os levasse para um baile em Angelina.
Caminhadas longas, em
terrenos acidentados, ou no meio da mata, é hoje um esporte radical. O
praticante deve seguir uma série de recomendações, usar roupas especiais e
escolher bem o modelo de tênis que melhor responda à intensidade da caminhada.
Meu pai andava de sapatos, e vestia calça de tergal, os senhores que entrevistei
também. O máximo que usavam para se proteger do sol forte era um chapéu. As sensibilidades
e as susceptibilidades eram outras. O perigo não era o sol, eram as cobras, os
“bugres”.
Antes,
caminhava-se por necessidade. Não tinha outro jeito. Em alguns lugares mais acidentados
nem cavalo adiantava. Os colonos abriam picadas na mata, que mais tarde viravam
estradas, e iam desbravando os caminhos.
Hoje se caminha por esporte e
para manter a saúde em dia. Embora não como antes, as longas caminhadas ainda
fazem parte da rotina de muita gente no interior do Brasil. Quando estou
subindo a Serra, rumo a Petrolândia/Ituporanga, vejo, nas laterais das estradas,
pessoas caminhando, de chinelos de dedos, muitas vezes, vindo da roça ou da
casa de parentes (imagino). Olho para trás, para frente e para os lados e não
vejo um ponto de partida nem um possível ponto de chegada.
Não há dúvida de que as
distancia encurtaram e o ato de caminhar adquiriu novos significados. As
distâncias encurtaram com os sofisticados meios de transportes. O que era longe
ficou perto. Todavia, o que parecia perto para o seu Evaldo parece tão longe
para mim. Uma viagem de duas horas, de Florianópolis a Ituporanga, no conforto
do carro, com música e água gelada, parece uma eternidade.
É isso. Fico por aqui.
Vou calçar meu tênis, fazer alguns alongamentos e caminhar meus seis quilômetros
na beira mar sul. Seis quilômetros, ou mais, meu pai andava para ir à escola,
todo dia. E carregava o material escolar.
Os tempos são outros, as prioridades, as sensibilidades e as urgências não
são as mesmas.
Let´s walk? A motivação
do meu pai era a namorada, a do seu Evaldo era um baile em Angelina. A minha? Vamos
andar que eu te conto. Gosto de pensar e conversar enquanto caminho. Caminhadas
são dispositivos filosóficos. Nietzsche andava para pensar, pois “os grandes pensamentos, dizia, resultam da
caminhada”. Onde quer que estivesse, se entregava à longas caminhadas diárias,
que podiam chegar a 8 horas. Depois, se entregava à reflexão sistemática e à
escrita. Deixou um aforismo sobre escrita e caminhadas: "Não escrevo
apenas com a mão: o pé também quer sempre participar". Rousseau, que
também gostava das caminhadas, disse que a sua mente só trabalhava junto com as
pernas. Caminhar para eles era um ato filosófico. Aristóteles
lecionava caminhando pelo peripatos,
uma alameda dos jardins do Liceu. Jesus pregava aos seus discípulos enquanto
caminhava. Caminhar era um ato
pedagógico. A fórmula de Santo Agostinho de “resolver problemas caminhado”
(solvitur ambulando) reforça as
propriedades inspiradoras e reflexivas de uma boa caminhada. A arte de caminhar
ajuda a organizar as ideias e a pensar as coisas com mais clareza. Henry
Thoureau, no século XIX, mergulhava nos bosques de Massachussets em longas
caminhadas, para se encontrar consigo mesmo. Deixava tudo para trás, a cidade e
os afazeres diários, e voltava aos seus sentidos. Colocava “um pé metodicamente
adiante do outro” e seguia em frente. Nas suas metacaminhadas, refletia, a cada
passo, sobre o significado de estar caminhado. Eram caminhadas autoconscientes.
“Walden, a vida nos bosques”, publicado originalmente em 1854, é, em parte, uma
elegia e uma reflexão sobre as caminhadas e um manifesto radical contra a
civilização industrial. Caminhar era um
ato vital.
Certamente meu pai e o
seu Evaldo pensavam enquanto caminhavam. Pensavam nas coisas deles, nas chances
de melhorar de vida, inventavam planos, avaliavam as situações e resolviam seus
problemas andando. Não era o andar meditativo de Santo Agostinho, com as mãos
atrás das costas, nem o andar aristocrático e pausado de Nietzsche. Era a
marcha das urgências cotidianas, da sobrevivência.
As caminhadas, sejam
elas filosóficas, ecológicas, terapêuticas, forçadas, meditativas, laborais ou
pedagógicas, acompanham a trajetória humana. De Aristóteles ao seu Evaldo, as
pessoas sempre andaram. O que não quer dizer que caminhar é simplesmente
caminhar, independente do tempo e do lugar. As caminhadas têm suas próprias
historicidades. Não são práticas atemporais. Perder de vista os aspectos que as
singularizam em diferentes momentos e contextos é perder o pé da história, do
sentido histórico. Os próprios adjetivos elencados acima nos dizem muito sobre
os diferentes sentidos e motivos que envolvem o ato de caminhar.
Vamos caminhar enquanto
estamos vivos. Os mortos só caminham no cinema!