O INACREDITÁVEL BARÃO DE MUNCHAUSEN DE TERRY GILLIAM. OU:
O Discurso Cinematográfico Anti-Racionalista de Terry Gilliam.
Em plena “era da razão”, do progresso e do otimismo
das luzes, uma figura lendária emerge das sombras, invade o palco de um teatro caindo
aos pedaços, desafia os saberes constituídos, desdenha do racionalismo
triunfante, desembainha sua espada e brada por um mundo menos lógico e mais
poético, com direito a Cíclopes e Deusas de inominável beleza. É assim que
Terry Gilliam nos apresenta o seu Barão de Munchausen (John Neville): um homem
que se recusava a viver num mundo que desconfiava da imaginação e fazia da
ciência e do progresso os carros-chefes da inexorável marcha da história rumo
ao luminoso futuro que se anunciava. O otimismo racionalista entediava o Barão.
Definitivamente, ele não se via vivendo num mundo guiado unicamente pela razão.
Munchausen não se opõe à razão propriamente
dita (a faculdade subjetiva do pensar). Sua revolta é contra a perversidade da
razão ou, se preferirem, a instrumentalização da razão, também conhecida como “razão
instrumental”, identificada como instrumento de dominação, de exploração, de
poder e de subjugação dos seres humanos e da natureza (A expressão “razão
instrumental” foi cunhada por Max Horkheimer no livro “Dialética do
Esclarecimento”, escrito em parceria com Adorno). O progresso técnico e
científico não trouxe a tão desejada maioridade. A razão emancipatória sucumbiu
e foi engolida pela racionalidade técnica. De instrumento de libertação humana
na luta contra os obscurantismos, a razão foi convertida numa entidade
tentacular castradora da autonomia individual que alcançou todas as esferas da
vida social. O velho Barão, imaginado por Gilliam, se recusava a ser um número,
um dado estatístico ou uma curva qualquer de uma massa quantificável, mensurável
e controlável. Munchaussen é a crítica à hipertrofia da razão. A racionalidade
tornou-se uma prisão lógica e abstrata. Munchausen pulou fora do festejado trêm
do progresso e se refugiou na fantasia.
O
filme de Terry Gilliam “As Aventuras do Barão de Munchausen”, de 1988, é
livremente inspirado nas narrativas de Karl Friedrich
Hieronymus, um nobre alemão que viveu entre 1720 e 1797. Karl Friedrich, o “verdadeiro”
barão de Munchausen, foi pajem do duque Anton Ulrich de Braunschweig,
acompanhando-o em campanhas militares na Rússia. Em 1840 foi promovido ao posto
de tenente. Depois de 12 anos dedicados às armas abandonou o ofício e foi viver
na propriedade rural da família em Bodenwerder, em Hanover. Os hóspedes e
amigos que visitavam a família eram entretidos pelo barão que se deliciava em
contar as suas aventuras nas guerras, nas caçadas e nas extraordinárias
viagens, adornadas com mentiras e exageros extravagantes. Mas o velho Karl o
fazia de tal forma, e com tamanha seriedade e naturalidade, que quem não o
conhecia acreditava. O homem virou uma lenda e suas mentiras extraordinárias
ganharam o mundo. Rudolph Erich Raspe, um bibliotecário de Hanover de péssima
reputação, que levava a vida aos trancos e barrancos, sempre atrás de dinheiro,
foi quem reuniu as narrativas do barão e as transformou em livro. Escreveu as
aventuras do barão muito provavelmente por dinheiro. Outras histórias do Barão
sobre caçadas foram reunidas e apareceram anonimamente em Berlim na revista
Vade Mecum für Lustige Leute entre 1781 e 1783. Novas edições foram surgindo ao
longo dos anos, com novos acréscimos, alguns inspirados na Vera Historia, de Lucian (escritor grego do século II), e sua
narrativa satírica da viagem à lua, nas Voyages Imaginaires, de 1787, nas
memórias do barão de Tott, nos voos de balão de Montgolfier e Blanchard, nas
buscas pelas nascentes do Nilo de James Bruce e na expedição do capitão Phipps
ao polo norte. Como bem disse Ana Goldberger, as narrativas sobre as aventuras
de Munchausen são “uma colcha de retalhos. Raspe é responsável apenas por seu
núcleo inicial, mas esse núcleo é dotado de tal força que os acréscimos não conseguiram
estragar a obra” (As informações sobre as diferentes edições e os acréscimos às
aventuras do barão foram retiradas da apresentação da obra “As Aventuras do
Barão de Munchausen”, de Rudolf Raspe, com ilustrações memoráveis de Gustave
Doré, publicada no Brasil em 2010 pela Iluminuras).
Terry
Gilliam fez uso muito particular das aventuras de Munchausen e não se prendeu
ao núcleo narrativo de Rudolf Raspe. Para criar o seu próprio Barão fez um recorte
seletivo das clássicas aventuras: o desentendimento com sultão de
Constantinopla, uma inacreditável viagem de balão, a viagem à lua, uma
inesperada viagem ao interior de um vulcão, uma fantástica escapada do estômago
de um peixe-mostro e um voo espetacular numa bala de canhão. Nas mãos de
Gilliam as aventuras do Barão de Munchausen receberam um tratamento bastante
original e foram inseridas num contexto discursivo de lutas anti-racionalistas.
Michael Löwy usou, e usou com muita originalidade, diga-se de passagem, a
figura do Barão, particularmente a narrativa em que ele se salva e salva o seu fiel
cavalo Bucéfalos do afogamento erguendo-se das águas de um pântano puxando o
próprio cabelo, como metáfora para desmistificar a objetividade científica
sustentada pelo positivismo (Ver o belo livro de Löwy “As Aventuras de Karl
Marx contra o Barão de Munchausen”). Terry Gilliam fez um caminho diferente e
usou as aventuras do Barão para confrontar o racionalismo e uma de suas versões
mais agudas e exacerbadas que foi o positivismo.
Gilliam,
ex-integrante do grupo inglês Monty Python, é o que em cinema podemos
chamar de “autor”. Seus filmes são inconfundíveis, caros, suntuosos, criam um
mundo à parte e nem sempre atraem o grande público. “As Aventuras do Barão de
Munchausen” é um bom exemplo. O filme custou entre 40 e 46 milhões de dólares e
arrecadou apenas 8 milhões. Foi um fracasso retumbante de público, que contou
com um boicote do estúdio (Columbia) que parecia torcer pelo fracasso do filme
e do diretor. Mas convenhamos, os filmes de Gilliam, este em particular, não
são para o paladar do público que lota as salas de cinema mundo afora para assistir
blockbusters como “Piratas do Caribe".
O
filme é grandioso nos enquadramentos, exuberante na cenografia e contou com a
fotografia impecável do experiente Giusseppe Rotunno, que trabalhou com os
mestres Fellini e Luchino Visconti (Ver a fotografia do incomparável Amarcord).
Rotunno usou filtros e lentes para criar diferentes sensações em diferentes
ambientes (no interior do vulcão usou cores quentes e fortes, no estômago do
monstro que devorou o barão e sua turma criou uma atmosfera gélida para
traduzir o ambiente hostil, etc.). Os efeitos especiais, produzidos à moda
antiga, e as soluções cinematográficas são impagáveis.
Vamos
ao filme?
No
começo do filme, em meio ao cerco fictício dos turcos a cidade (que parece ser
uma cidade mediterrânea), uma Companhia de Teatro itinerante encena as
aventuras do Barão de Munchausen para uma plateia que busca no teatro uma fuga
para os horrores da guerra. Repentinamente, um homem bastante velho invade a
cena e diz ser o verdadeiro Barão. Afirma que é a causa do cerco turco e que
somente ele pode por fim à guerra. Com exceção de uma menina chamada Sally (a
excelente Sarah Polley), que vive nos bastidores do teatro, todos insultam o
velho chamando-o de lunático. Pacientemente, ele pede que todos se acalmem e
escutem o que tem a dizer. O público se acalma e o velho começa sua narrativa. Tudo
começou, há muito tempo, com uma aposta com um Sultão, que o recebeu no seu
palácio. Munchausen provou do melhor vinho da adega do seu anfitrião, aprovou,
mas afirmou que conhecia melhores. Divergências à mesa, propõe-se uma aposta: o
Barão deve, em uma hora, apresentar ao sultão o vinho da rainha da Rússia (a
quem teve a honra de declinar um pedido de casamento). Caso não consiga, o Sultão
terá como prêmio a sua cabeça. Caso vença, poderá levar do tesouro do Sultão
tudo o um homem puder carregar. O problema é que o vinho está na Rússia e eles
em Constantinopla! Nada demais para quem tem como servos/companheiros homens
com extraordinários poderes. Nas suas aventuras Munchausen sempre se fazia
acompanhar de quatro amigos, que possuíam fantásticos recursos: Berthold,
Adolphus, Albrecht e Gustavus. Berthold (interpretado por Eric Idle,
companheiro de Gilliam no Monty Python), rápido como o vento, disparou em
direção à Rússia. Foi uma longa espera. Quando o último grão de areia pipocava
na ampulheta Berthold chega com a valiosa garrafa. Aposta vencida, o Barão
dirige-se com seus amigos para o tesouro do sultão. Adolphus, homem de incomensurável
força, consegue limpar o tesouro e carrega-lo nas costas. Quando o Sultão soube
da tragédia era tarde demais. Desde então ele está à procura do Barão. O cerco à
cidade está explicado. O Barão é causa da guerra. Ou, poderíamos dizer: a
guerra tem causas que a razão desconhece.
À
medida que vai narrando suas aventuras o palco do teatro, como num passe de mágica,
se metamorfoseia no harém do Sultão de Constantinopla. Já não distinguimos mais
as fronteiras entre e a realidade e fantasia. E reside justamente neste ponto a
força do filme de Gilliam. Imaginação e realidade se fundem de tal maneira que
não podemos, ou não conseguimos, vê-las como esferas opostas e irredutíveis.
Depois
de contar sua aventura em Constantinopla, e explicar as causas da guerra, o
velho Barão promete salvar a cidadela. Para isso, precisa encontrar seus velhos
companheiros de aventuras. Elabora um mirabolante plano de fuga para escapar ao
cerco. Pede educadamente que as moças lhe emprestem suas roupas de baixo e constrói
com elas um balão. A menina Sally, a única que de fato acredita no velho, se
esconde no balão e, contra a vontade do Barão, embarca na jornada. Daí para
frente ela vai ser o ponto de contato da dupla com a “realidade”. Ao mesmo
tempo que, como criança, ainda tem um pé na fantasia, e acredita no Barão,
Sally quer salvar a cidade e as pessoas queridas que lá deixou. Ela puxa o
barão para a terra quando ele, deslumbrado com Afrodite ou desiludido com a
humanidade, quer abdicar de vez do mundo.
A
primeira parada da improvável dupla é a lua. Munchausen se lembra de ter
deixado um dos seus companheiros por lá. Sally se mostra reticente, mas a
naturalidade com o barão encara a situação a faz embarcar na fantasia. Na lua
vivem o rei e a rainha. São figuras lunáticas e desmedidas, verdadeiras
caricaturas platônicas. Vivem a eterna oposição do corpo com a alma. A cabeça,
destacável do corpo, busca o conhecimento, as essências. O corpo, por sua vez,
vive preso aos desejos e necessidades físicas. A cabeça almeja o cosmos, o
corpo a impede. As cabeças, eventualmente, se separam dos corpos e se libertam
para voos maiores. Mas uma coceira no nariz as faz lembrar o quão necessárias,
por vezes, são as mãos.
Resgatado o amigo que ficou na lua, o trio parte em
busca do restante da turma. A fuga da lua (o rei da lua, por ciúmes, quer matar
o barão) é simplesmente um desafio munchauseano (acabei de inventar a palavra)
às leis da física e ao conhecimento científico. O trio anda até a ponta de uma
lua minguante e amarra uma corda na pontinha da lua para poder descer. No meio
da descida falta corda. Aí entre em cena a criatividade fantástica do Barão
que, sem opções, corta a parte de cima da corda e amarra embaixo. O plano só dá
errado quando Berthold coloca a ideia do barão em xeque ao duvidar do plano. O trio
despenca e cai no interior de um vulcão. A queda, segundo o Barão, foi
amortecida por correntes de ar quente. No vulcão, representado como uma fábrica
moderna na qual o deus Vulcano (Oliver Reed) explora a mão de obra de gigantes,
eles reencontram Adolphus. Terry Gilliam cria uma sequência antológica ao
reproduzir o nascimento de Afrodite, de Botticelli, no vulcão. A deusa (Uma
Thurman, com 17 anos) emerge nua das águas no interior de uma concha, para o
deslumbre do Barão. Rapidamente estabelece-se uma conexão entre eles (o Barão
era um sedutor irresistível). Quando Vulcano, o enciumado esposo de Afrodite
(Vênus), se dá conta, os dois estão dançando uma valsa a dez metros do chão.
Transtornado, o deus interrompe a valsa e arremessa os “intrusos” por um redemoinho
para fora do vulcão. Inexplicavelmente, o Barão e sua turma acabam sendo jogados
em algum lugar dos mares do sul. Estão agora em alto mar, à deriva. Avistam uma
ilha e nadam em sua direção. A ilha começa a se mover e assume aspecto
aterrorizante. Era um mostro camuflado. O grupo é engolido e lançado nas entranhas
da criatura. Explorando o lugar descobrem que não estão sozinhos. Uma luz no
fim do monstro revela habitantes mais antigos. Para surpresa de Barão os
habitantes do monstro são seus antigos companheiros Albrecht e Gustavus. O
grupo está, enfim, reunido. Festejam o reencontro, sentam-se a volta de uma
mesa improvisada e se entregam a um eterno jogo de cartas. Simbolicamente a
morte também esta sentada à mesa. Sally, sempre ela, lembra ao Barão que eles
precisam salvar a cidade. Se dependesse do Barão aquela seria a sua última e
coerente morada. O mundo da lógica e da ciência o aborrece. O estômago do
monstro, e os velhos amigos reunidos, lhe parecem bem mais convidativos. Mas
Sally insiste. O Barão não resiste aos apelos da menina e decide que chegou a
hora de deixar o monstro. Mas como, todos perguntam? O Barão, claro, tem uma
carta na manga. Tira um pote de rapé do bolso e sopra. O monstro entra em
ebulição, se contorce e, por fim, jorra todos para fora num espirro épico! O
grupo, com exceção do Barão, cai dentro de um bote. (Não me perguntem como. Não
vamos racionalizar as aventuras do velho Munchausen. São como os antigos mitos.
Ou, como diria Vico, são “impossibilidades críveis”). Todos procuram pelo Barão.
De repente ele aparece emergindo do fundo do oceano, puxando o próprio cabelo,
e montado no fiel Bucéfalos. A bordo do pequeno bote partem em direção à
cidadela sitiada pelos turcos. Os amigos do Barão estão velhos e,
aparentemente, perderam os fantásticos poderes. Como enfrentar o poderoso
exército invasor? Num gesto calculado, Munchausen se entrega ao Sultão,
oferecendo a cabeça em troca da libertação da cidade. O gesto é uma encenação.
Os velhos amigos precisam de uma motivação. Quando se dão conta que o Barão vai
ser decapitado os poderes ressurgem e a batalha assume uma dimensão
extraordinária. De posse dos fantásticos poderes o grupo derrota o exército
turco. A cidade está salva.
Do
teatro das batalhas o Barão reaparece no palco do velho teatro. Sally olha para
o velho que acabou de terminar sua narrativa e diz: “isso aconteceu mesmo?” O Barão
olha para a menina e pisca. E anuncia para a plateia que a cidade esta salva. Ninguém
acredita. O Barão exorta as pessoas a se dirigirem aos portões para verem com
os próprios olhos. Abrem-se os portões e, para a surpresa de todos, os turcos
foram derrotados e bateram em retirada.
Os
lugares que o Barão visita, intencionalmente ou não, são lugares ainda não
mapeados e controlados pela razão exploratória e esquadrinhadora. A lua, o
centro da terra (vulcão) e os monstros (fundo do mar) pertencem mais ao reino
da imaginação. Foi nestes lugares que o Barão foi buscar reforços para libertar
a cidade dos turcos e, principalmente, do burocrata lógico que a governa. A
guerra é contra os turcos, mas o grande inimigo do Barão não é o Sultão. A guerra contra os turcos é a moldura que
encerra o confronto entre a imaginação e o racionalismo. O administrador da
cidade (Jonathan Pryce), que a governa cientificamente (que
encarna um proto-ditador científico-positivista), é o arqui-inimigo do Barão. Ele
repudia tudo o que escapa à fúria cartesiana das certezas e das verdades
comprováveis. A guerra para ele, nas palavras do Barão, é um joguinho lógico.
Do
começo ao fim do filme a morte, representada por um esqueleto vestido em trajes
escuros e rotos, portando uma foice, persegue o Barão. A morte representa o
viés totalitário da razão em sua obstinada luta para matar a imaginação. Logo
após libertar a cidade o Barão é atingido por um tiro em meio às celebrações. A
sequência é emblemática. O burocrata lógico, apoiando a arma no ombro da morte,
dispara mortalmente contra o Barão. Essa foi uma de suas muitas mortes. Morto
na realidade governada pelo administrador científico, o Barão renasce no teatro
para terminar sua narrativa sobre o confronto com Sultão de Constantinopla.
Onde termina a fantasia e começa a realidade?
O
Barão de Munchausen (re)criado por Terry Gilliam é a resistência poética ao
absolutismo da lógica. É a fertilidade da imaginação contra o deserto
racionalista. É a libertação da fantasia contra as pretensões totalizantes da
razão. É Vico contra Descartes. É um grito do fundo da fantasia contra a
matematização do mundo. As aventuras do Barão, contadas por Raspe e tantos
outros, são deliciosas e divertidíssimas. Nas mãos de Terry Gilliam essas
aventuras, devidamente selecionadas, foram reunidas numa unidade narrativa,
envolvidas por uma linguagem surrealista e articuladas por um discurso
anti-racionalista. Gilliam sacou a singularidade das narrativas e o vigor das
fantasias, criadas justamente num momento (século XVIII) em que elas eram
rechaçadas, desqualificadas e lançadas no porão escuro das aberrações da “Idade
da Razão”.
“As
Aventuras do Barão de Munchausen” é a celebração da fantasia e um banho de
imaginação na realidade nossa de todos os dias.