MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS,
NATUREZA HUMANA E A SORTE LANÇADA NUM CONTAINER.
O
tema das migrações internacionais (ou globais), tanto pela mobilização de
enormes contingentes populacionais quanto pelo lado dantesco das tragédias
humanitárias, está na ordem do dia e ocupa o centro dos debates sobre a
globalização e as tendências políticas de diversos países. Os deslocamentos
humanos, que caracterizam as migrações, entretanto, não são um fenômeno
recente. Desde os tempos antigos registram-se movimentos de pessoas, entre
regiões e lugares, em grandes ou em pequenos grupos. Das narrativas bíblicas
sobre Canaã e o Egito aos movimentos de população da era da globalização, o
fenômeno acompanha e diz muito sobre a trajetória humana. Mas é preciso tomar
cuidado para não embarcar em certos essencialismos.
O
argumento comumente utilizado de que os deslocamentos populacionais sempre
existiram, e derivam de uma tendência da natureza humana, deve ser examinado
com cautela, para não perdermos de vista a dimensão histórica e social do
fenômeno. Buscar uma explicação na natureza humana e enfatizar as continuidades
a-históricas, além de deixar escapar o que de particular as migrações têm em
diferentes contextos, significa despolitizar o debate, naturalizar o impulso à
migração e minimizar as causas que levam contingentes humanos a abandonar seus
locais de origem e reconstruir a vida em outros destinos. Talvez o melhor
caminho, considerando que os fenômenos migratórios atravessam os tempos, seja
historiar as especificidades de cada época e as circunstâncias locais,
regionais e internacionais, que empurram as pessoas para além das suas
fronteiras de origem. Ou seja, na mão contrária da tendência de ver as
migrações como algo decorrente da essência humana, apostemos na descontinuidade
histórica. Ainda que, na maioria das vezes, o sonho de melhorar de vida seja o
impulso decisivo que subjaz ao desejo de migrar, os sentidos que se atribuem à
noção de mudar de vida, em diferentes momentos, são muito diversas, e as
circunstâncias históricas e sociais são radicalmente distintas.
Exercitemos
a historicidade das migrações tomando três exemplos de grupos de pessoas que,
em momentos bastante distintos, se dermos crédito às reconstruções históricas e
mitológicas da trajetória humana, decidiram migrar:
- De Harã à Canaã: Abraão, depois de ouvir o seu deus
(Javé) e selar com ele uma aliança, deixou Harã para trás e partiu com sua
família em busca da terra prometida. Era um enviado de deus. O deslocamento era
amparado pela providência divina. As narrativas proféticas no velho testamento
eram, em boa parte, definidas pelos percursos migratórios. Abraão não seguia um
impulso essencial da natureza humana. Seguia a ordem de um deus.
Um
parêntese: grande parte dos refugiados palestinos, expulsos de suas terras por
aqueles que se julgam herdeiros da aliança que Javé fez (?) com Abraão,
engrossam as fileiras do que chamamos hoje de migrantes ou deslocados globais.
- Da Prússia para o Brasil: Alemães de várias regiões da Prússia
vieram para o Brasil no século XIX, em busca daquilo que o governo brasileiro
prometia nas propagandas para atrair imigrantes. Vinham em busca de terras, da
terra prometida, da nova Canaã. Um folheto que circulava em Hamburgo em meados
do século XIX nos dá o tom dessas propagandas e do que era oferecido ao
trabalhador que se dispusesse a abandonar sua pátria e se deslocar para o Brasil:
“Iniciamos agora a viagem para terras brasileiras, esteja conosco Senhor, e
guie sim, faça Tu o nosso caminho, esteja conosco no mar, com Tua mão paterna,
que chegaremos bem felizes na terra brasileira. Deus falou para Abraão:
abandona a tua terra, e parte para outra que minha mão forte te indicar.”
Como
Abraão, os migrantes (históricos) dirigiam-se a uma “terra prometida” guiados
pela mão certeira de deus através dos perigos do mar.
- Da África e da Ásia para a Europa: Africanos e asiáticos, de
diferentes nacionalidades, que de acordo com certa teologia não descendem do
patriarca mítico, tentam chegar à Europa viajando clandestina e perigosamente
dentro de containers. Em meados de
2016 um grupo 19 de etíopes foi encontrado morto dentro de um container que ia para a Zâmbia. Pareciam
esquecidos pelos deuses e absolutamente desamparados. Em 2014, 35 indianos
foram resgatados em péssimas condições dentro de um container na Inglaterra. Os exemplos se multiplicam facilmente.
Uns
deixavam suas terras e migravam conduzidos pela mão de deus. Migrar era um ato
de fé. Outros atravessavam o mar a bordo de um navio em busca das terras
prometidas. Migrar era a oportunidade de mudar de vida. Os menos afortunados, e
indesejáveis, se amontoam claustrofobicamente no interior de um container. Migrar é uma urgência. E não
há nenhuma garantia.
Deixando
de lado o caso de Abraão, que atendeu ao chamado de Javé, e trocou a região de
origem pela complicadíssima Canaã, concentremo-nos nos alemães e nos africanos
e asiáticos. O que levou milhares de alemães a migrar para o Brasil no século
XIX e o que leva uma família de etíopes a deixar seu país e tentar entrar no
Reino Unido hoje, mesmo considerando que ambas as famílias desejassem melhorar
de vida, são coisas muito diferentes. O contexto internacional e as
adversidades internas enfrentadas pelas famílias são absolutamente distintos,
como também são as expectativas que as movem – incentivos externos, valores,
etc. O sentido mesmo de migração, no século XIX e em boa parte do século XX,
era diferente dos sentidos que hoje atribuímos ao fenômeno, sobretudo se
considerarmos o caráter global e multidirecional dos deslocamentos humanos.
A
vinda dos alemães foi planejada pelo estado receptor e atendeu as demandas do
governo imperial e das províncias. O estado brasileiro viu na figura do
imigrante um meio para a realização dos seus objetivos: os interesses em torno
da substituição dos escravos nas lavouras de café, os interesses fundiários de
valorização da terra e produção de gêneros alimentícios para o abastecimento
das cidades e a política de ocupação territorial no sul do Brasil. Havia,
portanto, um projeto nacional idealizado em torno da figura do imigrante. Uma
intensa propaganda foi posta em ação, no continente de origem, para motiva-los
a migrar e incentivos foram oferecidos para atraí-los. De maneira complementar
às iniciativas públicas, as Companhias e agentes de colonização buscavam atrair
migrantes na Europa, valendo-se também da propaganda, e instalá-los em
colônias, ou recrutá-los nas áreas de colonização mais antigas e instalá-los
nas áreas novas.
Os
alemães foram convidados a migrar. Eram, por isso mesmo, bem-vindos. Vinham
para preencher um suposto “vazio demográfico” e desenvolver a pequena
propriedade produtiva. Além de substituir os escravos, nas regiões onde está
mão-de-obra era fundamental, a vinda dos migrantes europeus representava, por
um lado, a ressignificação do conceito de trabalho, associado até então à
escravidão, e um salto civilizacional para o país. As condições na Europa que
levavam aos deslocamentos populacionais para as Américas combinavam fatores
sociais, econômicos e políticos. A região que posteriormente se tornaria a
Alemanha era constituída por um conjunto de pequenos Estados empobrecidos e
conturbados por uma série de guerras e revoluções, o que levava a uma situação
econômica e política bastante instável e precária.
Os
alemães viajavam de navio e sua chegada ao Brasil era cercada de expectativas
positivas por parte do governo brasileiro. Vinham em busca de terras e de
melhores oportunidades. Além de se tornarem proprietários, nas províncias do
Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, havia, por trás do projeto imigrantista,
o ideal de branqueamento. Os alemães
eram a salvação da lavoura, com o perdão pelo trocadilho. É claro que as coisas
não eram fáceis, a viagem poderia ser bastante complicada e a chegada num país
distante e desconhecido (como de fato se revelou em várias situações) poderia
não ser nada daquilo que se imaginava.
Bem
diferente é a situação dos africanos e asiáticos que tentam entrar ilegalmente
na Europa. Viajam em situações dramáticas, e são obrigados a enfrentar
travessias, como a do mar mediterrâneo, perigosíssimas. Alguns grupos se lançam
na jornada migratória clandestinamente em containers.
Viajam dias e dias confinados, sem ver a luz do dia, e ficam expostos à
fome, a desidratações graves e à hipotermia. Por isso os elevados índices de
mortalidade para quem se arrisca nestas jornadas sinistras. Os containers de lixo que saem diariamente
de Ceuta para Cádiz, por exemplo, são um esconderijo “perfeito”, e
perigosíssimo, para os africanos subsaarianos que desejam atravessar o mediterrâneo
para tentar o sonho europeu. Além do mau cheiro, que pode provocar asfixia, os
migrantes enfrentam o risco de serem esmagados por montanhas de lixo e de serem
triturados no momento de compactação dos resíduos.
A
trajetória da viagem deste perfil de migrante é incerta e a chegada no local de
destino, se isso de fato acontecer, pode virar um pesadelo. Não são bem-vindos,
não foram convidados, são vistos como “cidadãos” de segunda classe, e, embora
ocupem empregos importantes e aqueçam as economias dos países de destino, a sua
presença desperta o ódio de grupos extremistas e intolerantes. Se não forem
deportados, viverão em situação de ilegalidade sabe se lá por quanto tempo.
Em
geral, estes migrantes estão fugindo da fome, dos conflitos regionais, que
assolam o Oriente Médio e regiões da África nos últimos anos, e da ação de
grupos extremistas. As imagens de milhares de pessoas deixando seus lugares de
origem, a pé, apenas com a roupa do corpo, não encontram paralelo na história
das migrações. São migrações forçadas, que obedecem ao imperativo da
sobrevivência.
Por
trás destas tentativas desesperadas de entrar na Europa, principalmente no
Reino Unido, identifica-se, quase sempre, a ação do crime organizado
internacional que atua no tráfico e contrabando de seres humanos, com promessas
de trabalho inexistente. Apolítica restritiva dos estados e ação dos
contrabandistas criam um cenário pavoroso para as migrações contemporâneas. A
presença de crianças nos containers
deixa tudo ainda mais revoltante.
A
comparação dos deslocamentos de alemães para o Brasil e de africanos e
asiáticos para a Europa nos permite tecer considerações sobre dois fluxos
migratórios diferentes que encerram um conjunto de questões específico de cada
época. O ambiente intelectual, e os temas em destaque nos meios científicos e
sociais, por exemplo, são muito sugestivos do imaginário social que cerca as
migrações. Se no século XXI as migrações estão envolvidas pelos debates em
torno dos direitos humanos e pela consolidação do regime internacional dos
refugiados, no século XIX as teorias científicas sobre as raças humanas, que as
hierarquizava segundo valores e critérios europeus, e a filosofia do progresso,
de inspiração positivista, davam a tônica e, em larga medida, tangenciavam os
debates e os projetos sobre as migrações.
Nestas
circunstâncias, parece evidente que os movimentos migratórios tenham sentidos e
significados diferentes, ainda que as pessoas em deslocamento buscassem
melhores condições de vida do que aqueles que tinham no país de origem. Sem
esta percepção histórica das enormes diferenças, mesmo considerando certas
semelhanças, somos levados a crer que as migrações respondem mais a um impulso
da natureza humana, que os impele ao deslocamento, do que aos estímulos e
constrangimentos políticos, sociais, econômicos e ambientais. As migrações são
fenômenos históricos polissêmicos que traduzem as particularidades, as
necessidades de cada época, tanto dos países de imigração quanto dos países de
emigração.
No
século XIX enfrentar a longa travessia do atlântico, cercada de mitos e
dificuldades, na terceira classe do navio, era o grande obstáculo para os
migrantes europeus que decidiam tentar a sorte nas Américas.
No
século XXI o container, estrutura que
aprisiona/esconde humilhantemente as populações indesejáveis da África e do
Oriente Médio e amontoa seres humanos animalescamente, talvez seja uma das
melhores imagens para capturar o lado sombrio e grotesco das migrações
contemporâneas. O container é um
túmulo transfronteiriço, para pessoas enterradas vivas, que flutua
vergonhosamente por águas internacionais, sob as políticas restritivas e
seletivas de Estados coveiros e o silêncio e a indiferença globais.