RETRODIÇÃO: A CRÍTICA DA ADIVINHAÇÃO
RETROSPECTIVA NO CAMPO DA HISTÓRIA EM NIETZSCHE.
Se no mundo quântico,
segundo o físico Kater Murch, o futuro afeta o passado, no campo da história
poderíamos dizer que o presente, visto como o futuro do passado, também afeta o
passado, embora de outra maneira. Nos domínios da física debate-se se o tempo é
real ou uma ilusão e se o futuro do universo pode estar influenciando o presente.
Segundo Murch, “(...) há uma trajetória indo em
um curso para trás e uma trajetória indo para a frente, e, se olharmos as duas
juntas e pesarmos a informação em ambas igualmente, temos algo que chamamos de
uma previsão retrospectiva, ou 'retrodição'”.
As
discussões no campo da física sobre a previsibilidade do passado podem trazer
bons insights aos historiadores sobre
a maneira como reconstruímos as experiências de outros tempos. A
retrodição, espécie de teleologia invertida,
apontada para o passado, é um “vício” metodológico recorrente, e quase
despercebido, entre os historiadores. Foi diagnosticado com precisão e originalidade
pela primeira vez por Nietzsche, no século XIX, embora não com esta denominação.
No Brasil, salvo as notas de José D´Assunção de Barros, o tema é muito pouco
explorado.
O historiador vive uma situação
epistemológica e temporal peculiar. O seu presente é o futuro de muitos
passados ou o seu passado é o futuro de muitos passados. É esta relação delicada
com o tempo, que pode vir a ser uma armadilha, que abre caminho para a prática
da retrodição.
O termo/conceito retrodição, cunhado no campo da física
quântica, na década de 1920, vem sendo empregado na parapsicologia para se
referir a “clarividência retroativa”, isto é, as previsões posteriores aos
acontecimentos. Só muito recentemente o termo vem sendo usado pelos historiadores
para se referir à predição do passado. Resumidamente, o historiador retroditor escreve sobre o passado já
conhecendo o seu futuro. Vivendo no futuro do passado a sua visão é determinada
justamente pelo fato de já conhecer o tempo sobre o qual escreve. Os
acontecimentos são organizados, de maneira mais ou menos linear, levando em
consideração o olhar retrospectivo do historiador. É, sem dúvida, um olhar
privilegiado, mas que pode amarrar a narrativa histórica muito mais à perspectiva
de quem o interpreta do que a dos sujeitos que viveram no passado. Os
acontecimentos passados, na lógica da retrodição,
não passam de peças de uma engrenagem causal que conduzem ao que já é conhecido
por antecipação.
O historiado retroditor, que busca sempre no passado
as causas do presente, tem verdadeira obsessão pelas origens. Identificada a
suposta origem de determinado presente, por vezes chamada de “antecedentes
históricos”, organiza-se os acontecimentos numa cadeia linear e evolutiva até o
presente de onde se partiu. A história passa então a ter um sentido, uma
direção, que geralmente tem a ver com as perspectivas políticas do historiador
e com os debates nos quais ele está imerso.
A meu ver, a retrodição encerra a história num campo
de previsibilidade, vista retrospectivamente, que a transforma num fluxo
contínuo, único e inevitável. É o caso do conceito de “transição”, empregado para
descrever os eventos que, num fluxo linear, marcam o fim de uma época e o
início de outra. A ideia de “transição” sugere que tudo se encaminha e se
destina, se preferirem, para a realização de certo fim histórico. O que se
convencionar chamar de “transição do trabalho escravo para o trabalho livre” no
Brasil é um bom exemplo. A “transição” teria ocorrido entre as décadas de 1850
e 1890. Neste período as relações escravistas de produção foram sendo
progressiva e evolutivamente substituídas por formas de mão-de-obra livre, que
culminariam na abolição completa da escravidão e da adoção regular e
generalizada do trabalhador assalariado. Os acontecimentos registrados após a
aprovação de Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, vista como o ponto de partida da
lenta “transição”, são dispostos numa sequência lógica, quase que numa fórmula
histórica, que conduziria ao desfecho final. A história, assim construída, é
dotada de um sentido e de uma previsibilidade indubitáveis. Sidney Chalhoub, em
“Visões da Liberdade”, embora com outras motivações e interesses, também chamou
a atenção para a noção de “linearidade e de previsibilidade de sentido no
movimento da história” que o conceito de “transição” carrega. Todavia, os
sujeitos que viveram aqueles tempos, ditos de “transição”, sabiam para onde
estavam indo? Sabiam para onde a lógica dos acontecimentos, se é que existe
alguma, os estava conduzindo?
Nos “Fragmentos
Póstumos” de Nietzsche, de 1884/5, encontramos uma crítica aos historiadores
que talvez seja a primeira formulação sobre o tema da teleologia invertida:
“(...) todos os órgãos de animais exerceram originariamente outras funções diferentes daquelas que nos
fizeram chamá-las de “órgãos” e em geral cada coisa teve uma gênese diferente
daquela que a sua utilização final deixa supor. Mostrar o que é nada esclarece
ainda sobre a sua gênese, e a história de uma gênese nada ensina a respeito
dela, mas somente o que existe agora. Os historiadores de todo tipo se enganam
quase todos neste ponto: pois eles partem do dado e olham para trás. Mas o dado
é algo de novo e do qual não se pode absolutamente tirar conclusão: nenhum químico poderia
predizer o que resultaria da síntese
de dois elementos, se ele já não o soubesse.”
Vale lembrar que Johann
Gustav Droysen, um pouco antes de Nietzsche, já alertara brevemente, segundo
José D´Assunção Barros, para o problema da projeção retrospectiva. No seu
manual de história intitulado “Historik”, criticou a linearidade e a busca
ingênua de causas e efeitos. A passagem é breve, mas muito inspiradora para
pensar o tema da retrodição:
“A
pesquisa histórica não tem por ambição explicar, ou seja, não pretende deduzir
do anterior o posterior; os fenômenos necessariamente como efeitos de evoluções
e leis que os regem. Se a necessidade lógica do posterior residisse no
anterior, então existiria, ao invés do mundo ético, um análogo de matéria
eterna e da transformação dos materiais. Se a vida histórica fosse somente uma
nova geração do que é sempre igual, então ela seria sem liberdade e sem
responsabilidade, desprovida de conteúdo ético; ela seria apenas de natureza
orgânica”.
Droysen não admitia que
o presente pudesse ser visto como efeito do passado, ou o passado como causa do
presente. Fosse assim, as ações humanas não passariam de reflexos automáticos obedientes
aos ditames do mundo orgânico. Mas foi com Nietzsche que o tema da retrodição ganhou profundidade. As observações
incisivas que fez da história como predição do passado fazem parte de uma
crítica mais geral às pretensões da história cientifica e às filosofias da
história do seu tempo, reunidas, sobretudo, na “Segunda Consideração Intempestiva”,
de 1873. A crítica à busca pelas origens, expressa na sentença “partem do dado e olham para trás”, é a base do que
chamamos hoje de história genealógica ou de descontinuidade histórica.
Examinemos, inspirados
em Nietzsche, um tema conhecido. Tomemos como exemplo a “Independência do
Brasil”, um clássico da historiografia brasileira e um caso exemplar de retrodição. A ruptura com Portugal em
1822 é vista, em geral, como o ápice de uma série de acontecimentos deflagrados
pela vinda da família real portuguesa para o “Brasil”. O acontecimento é visto,
segundo certa interpretação, como a origem da Independência. A partir deste
marco, os acontecimentos posteriores, desencadeados pela presença da corte no
Rio de Janeiro, são postos numa sequência narrativa, e numa relação de causa e
efeito, que culminará na declaração da independência em setembro de 1822. Da
maneira como os eventos são organizados e dispostos, a independência parecia
ser o destino histórico anunciado em 1808. É como se disséssemos que as coisas
foram desta maneira porque tinham que ser. Logo, a retrodição desautoriza outras possibilidades que pulsavam no
passado e o transforma num via de mão única rumo ao futuro conhecido. Parafraseando
Nietzsche, poderia um historiador predizer
o que resultou dos eventos deflagrados em 1808 se já não soubesse o que se
sucedeu em 1822? Os historiadores “partem
do dado”, a ruptura com Portugal, “e olham para trás”, mais do que deveriam ou
poderiam, em busca dos antecedentes, de uma suposta origem que tenha deflagrado
um conjunto de acontecimentos que evoluiu até a separação em 1822.
Nós, sujeitos do século
XXI, conhecemos os acontecimentos, as supostas conexões entre eles e, desde
Caio Prado Júnior, que organizou uma narrativa desvelando o “processo histórico”
da independência, estabelecemos uma relação indubitável entre a vinda da corte
e a independência. É um exercício de adivinhação retrospectiva. Narrada e
consagrada desta maneira, o encadeamento dos acontecimentos, chamado por alguns
de processo, conduz a um desfecho inevitável.
As pessoas que viveram
entre 1808 e 1822, no entanto, não tinham a clarividência que certa
historiografia, mesmo sem querer, lhes imputa. Não tinham ideia de que o que
estavam vivendo os conduziria à separação com Portugal. Estudos recentes, mais
preocupados com a reconstituição dos acontecimentos, e das percepções dos
sujeitos que viveram aqueles tempos, do que com um processo, visualizado do
futuro, apontam que não existe relação direta entre a vinda da corte e a
declaração de independência. Cecilia Helena de Salles destacou as enormes
alterações ocorridas a parir de 1808, tanto no relacionamento das capitanias do
Brasil com o Reino de Portugal quanto às ligações das diversas regiões
coloniais com a cidade do Rio de Janeiro. Todavia, adverte a historiadora,
“essa constatação não autoriza concluir que essas mudanças em si mesmas
provocaram a Independência e a separação de Portugal”. A declaração de
Independência responde mais imediatamente aos acontecimentos e as lutas sociais
e políticas da década de 1820.
Como não cair na
armadilha da retrodição? José
D´Assunção Barros nos convida a refletir com Julio Aróstegui: “O historiador
deve explicar as situações históricas como se não conhecesse o seu futuro”. Como?
Indo às fontes e desconfiando dos enredos históricos que estabelecem conexões retrospectivas
presumíveis, e arbitrárias, entre acontecimentos (“partem do dado e olham para
trás”).