“VÔ
MATÁ ESSE BUGRE”: OS CONFLITOS ENTRE OS XOKLENG
E OS COLONOS NO ALTO VALE DO ITAJAÍ
(Primeira metade do século XX).
Martinho bugreiro e seu grupo.
Os
confrontos entre os colonos de origem
europeia e os grupos Xokleng que
viviam na Serra e no Planalto, na segunda metade do século XIX e primeira
metade do século XX, são a face mais dramática e violenta, e surpreendentemente
menos estudada, da colonização de Santa Catarina. A colonização, da perspectiva
dos colonizadores, por outro lado, é um dos temas prediletos da historiografia
catarinense, especialmente da historiografia de corte mais tradicional. O
relativo desinteresse dos historiadores e antropólogos pelo lado indígena da
colonização, e pelos conflitos entre os dois lados, não deriva, como poderíamos
supor à primeira vista, da escassez de fontes.
Existe um conjunto de documentos nos arquivos públicos em todo o Estado
com registros e relatórios oficiais sobre as populações indígenas e os confrontos
com os colonizadores. Num outro registro, a memória local, preservada nas
lembranças das pessoas mais velhas que viveram aqueles tempos, conserva um
riquíssimo repertório de narrativas sobre as interações, violentas ou
pacíficas, entre os dois lados. Dependendo dos usos que fazemos da memória, ela
tanto pode ser uma fonte auxiliar, e de valor equivalente, dos documentos
oficiais, quanto um contraponto às impressões deixadas pelos agentes públicos
ligados à colonização (refiro-me aos registros dos inspetores, dos diretores de
aldeamentos, os ofícios dos delegados e subdelegados de polícia, etc.).
Em
2009, conversando com antigos moradores de Petrolândia, no Alto Vale do Itajaí,
em busca de informações sobre a colonização da região, ocorrida no começo do
século XX, ouvimos narrativas sobre as relações dos colonos com os Xokleng
(chamados por eles de “bugres”) que nos dão bem a ideia da tensão e da
violência que cercavam o cotidiano daquelas pessoas. Eu estava ajudando Vivian
com as entrevistas, e ouvia atento às passagens narradas pelos moradores mais
velhos sobre os confrontos com os “bugres”. Vivian escrevia uma dissertação
sobre a colonização de Petrolândia e uma das fontes eram as memórias dos
moradores mais antigos. Pelo jeito calmo e atencioso, e os lindos olhos verdes que
inspiram confiança, ela conseguia deixar as pessoas à vontade para responder as
perguntas. A conversa corria solta e as histórias iam espontaneamente
aparecendo, apesar do gravador ligado.
Um
dos entrevistados, que hoje mora no centro de Petrolândia, nos contou, num
boteco de beira de estrada, sobre um episódio ocorrido na localidade de Rio
Engano, em Angelina, que ouvira de sua mãe (Com 80 anos, o senhor fumava e
bebia regularmente naquele boteco). “Era um sábado à tarde”, disse o nosso
narrador, “e saiu um bugre de uns 15 ou 16 anos do mato, ele estava pelado e
sentou numa pedra perto uns 400 metros” das casas dos colonos. “As pessoas que moravam ali uns ficaram com medo, outros
não, nesse meio tempo tinha um atrevido e disse pro outro: vô matá esse bugre
(...)”. Sem mais, “o rapaz pegou um winchester
e atirou no bugre”. “A mamãe disse que eles ficaram com muito medo e disseram
isso vai dar coisa. Falaram que ia se arrepender daquele dia, mas não os bugres
saíram rápido do mato e levaram o bugre morto nas costas de volta pro mato”.
O
assassinato do menino Xokleng, que
deve ter ocorrido na década de 1920, foi contado com tanta naturalidade como se
o alvo do disparo do winchester fosse
uma capivara ou um desses javalis que devoram atualmente as plantações de milho
na região. Ficamos imóveis, nos entreolhamos, e o senhor continuou
tranquilamente sua narrativa como se aquilo não fosse nada, como se o menino
abatido não fosse um ser humano! Não só isso. Aquele senhor tranquilo, educado
e humilde, não manifestava qualquer tipo de julgamento, desconforto ou sentimento
sobre a morte do menino. Era aquilo e pronto. A espontaneidade com que o
sujeito pegou a arma para atirar no menino era a mesma, setenta anos depois, da
do senhor que nos contava a história. Estávamos ali, petrificados, diante da
alteridade do passado, em toda a sua estranheza, personificada naquele senhor.
A
preocupação dos colonos com a morte
do menino era somente em relação a uma possível contraofensiva dos “bugres”. Nada
mais. E não era para menos. Quatorze dias depois do ocorrido, os parentes
voltaram para se vingar. Os moradores das casas próximas haviam saído. “Somente
em uma das casas”, contou-nos o nosso narrador, “ficaram duas crianças que eram
deficientes, que não conversavam, não andavam e tinham mais problemas. E os
bugres vieram e mataram os inocentes. Não sei como eles sabiam que querosene
dava fogo, mas pegaram os galões e colocaram nas casas e (ateavam) fogo.
Queimou as casas, as crianças tudo. Fizeram isso dali e o que matou não tava”.
Temerosos
de novos ataques, as famílias se reuniram e contrataram os serviços do famoso
Martinho Bugreiro (foto ao lado), que morava provavelmente na localidade de Serro Negro, em
Ituporanga. Segundo o nosso narrador: “as famílias ficaram com medo e acharam
que eles iam matar todo mundo. O Martinho Bugreiro foi atrás e os índios foram
fugindo, Leoberto Leal, Imbuia e aqui em cima da Serra a matança foi grande.
Nos criança muito curiosa, queria saber como ele matava. Disse que de noite,
sei lá, diz que esse Martinho Bugreiro era que nem cachorro sentia o cheiro, e
dizia eles estão em tal lugar. Chegaram perto e ele disse tão dançando, fazendo
baile vamos esperar até eles dormir. Tinha um cachorro bem magrinho que viu
eles e ficava latindo, diz que os bugres têm um sono muito forte, quando começa
no sono é difícil acordar, isso é o que dizem (...). Deitaram em carreiro. O
cachorrinho ainda latia e aquele foi o primeiro que passaram o facão, diz que
ele entrava nas barracas e passava o facão e o sangue jorrava, não sobrou
ninguém”.
Histórias
como essa são bem conhecidas no Vale e Alto Vale do Itajaí. Ainda estão vivas
nas memórias dos moradores mais velhos e são repassadas nos círculos
familiares, não com orgulho, mas como algo que faz parte de suas vidas e das
histórias locais. Perguntando com jeito, eles falam. A mesma narrativa, com
ligeiras variações, nos foi contada por duas pessoas em entrevistas diferentes
e em situações distintas.
O
senhor que nos concedeu a entrevista no boteco vem de uma família de imigrantes
alemães que chegou a Santa Catarina no final do século XIX. Sua família, como
tantas outras, atravessou o mar em busca do “paraíso” prometido pela intensa
propaganda promovida pelas companhias de imigração responsáveis por estimular a
imigração para o Brasil, na segunda metade do século XIX. Vendia-se a imagem de
um “paraíso” possível, abundante em terras de boa qualidade e com clima
agradável. Os agentes de propaganda procuravam atrair gente com a promessa de
lhes pagar a viagem oferecendo terras, semente, gado, material de construção,
ferramentas e, também, o gozo de todos os direitos civis, isenção de impostos
por cinco anos e liberdade de crença. Um folheto que circulava em Hamburgo em
meados do século XIX nos dá o tom dessas propagandas e do que era oferecido ao trabalhador
que se dispusesse a abandonar sua pátria e se deslocar para o Brasil:
“Iniciamos agora a viagem para terras
brasileiras,
esteja conosco Senhor, e guie sim,
faça Tu o nosso caminho,
esteja conosco no mar , com Tua mão
paterna,
que chegaremos bem felizes na terra
brasileira.
Deus falou para Abraão: abandona a
tua terra,
e parte para outra que minha mão
forte te indicar.”
Como
Abraão, os imigrantes dirigiam-se a uma “terra prometida” guiados pela mão
certeira de Deus através dos perigos do mar. A promessa era maior que as
eventuais dificuldades e o Imperador os esperava generoso, protetor, de braços abertos a dividir a “terra brasileira”. Mas nem tudo acontecia conforme o que
era prometido pela propaganda. Ao contrário do que se dizia ou se pensava, as
terras não eram desabitadas e não estavam disponíveis. A nova Canaã já era
habitada por grupos indígenas, os cananeus tropicais, que reagiriam à entrada
dos colonos europeus. Os colonos, por sua vez, se armaram para
dar combate aos “bugres” e defender as terras recém adquiridas.
Mas
afinal, quem tinha razão naqueles sangrentos conflitos? (Se é que podemos
nos perguntar isso, quase cem anos depois). Os colonos eram convidados do
Imperador e traziam título de propriedade das terras recém-adquiridas. Os
indígenas viviam há séculos na região e tinham a posse ancestral do território.
Cada um, à sua maneira, poderia reivindicar a legítima permanência nas terras.
Parece então que o problema estava com o governo brasileiro, que não reconhecia
direitos dos povos indígenas sobre parcelas do território e construía a falsa
ideia de um vazio demográfico a ser preenchidos pelos migrantes. Este
desconhecimento ou negligência acarretaria em dramáticos conflitos entre os
habitantes locais e os novos moradores, em disputas pela posse e usufruto das
terras.
Ainda
no século XIX, duas iniciativas, cada uma à sua maneira, encaminhavam uma
solução para o problema, visto como uma ameaça ao sucesso da colonização. Em
1879, o governo provincial criava milícias armadas, comandadas por “bugreiros”,
para dar fim aos indígenas, embora oficialmente a justificativa fosse contatá-los
e conduzi-los a lugares seguros. As ações dos “bugreiros”, usando táticas de
tocaia (como aquela empregada por Martinho Bugreiro à serviço das famílias de Rio
Engano), eram violentas e poupavam, às vezes, apenas algumas mulheres e
crianças. Os sobreviventes dos extermínios eram levados para Blumenau e
Florianópolis, onde eram entregues à adoção, visando a civilização. Contrapondo-se
à política oficial, os frades capuchinhos realizavam incursões nas matas com o
objetivo de catequiza-los. Entre o final do século XIX e início do século XX, verifica-se
uma mudança de postura em relação aos indígenas, embora em cidades como
Blumenau, Lages, Orleans, Joinville e em muitas localidades do Alto Vale, os
“bugreiros” ainda se encontrassem em plena atividade. Em 1906-7 foi fundada, em
Florianópolis, com a autorização do governo estadual, a Liga Patriótica para a
Catequese dos Silvícolas, que advogava um tratamento mais humano aos indígenas
e o fim das matanças. Subjazia à fundação da Liga um ideal de inspiração
positivista que defendia a integração do indígena à comunhão nacional, por meio
da civilização. Em 1910 foi criado o Serviço de Proteção aos Índios (SPI),
também de inspiração positivista. A tese que presidia a criação do SPI era a da
transitoriedade do índio, isto é, a possibilidade de progredir do estágio
natural para a civilização. Isso seria possível graças à perfectibilidade, vista
como a capacidade de melhorar, de se afastar da natureza, de ter o controle de
si próprio e se ajustar à vida civilizada. A política adotada pelo SPI, neste
sentido, visava transformá-los em trabalhadores nacionais.
Os
tempos hoje são outros. Os “bugres” já não são mais caçados por “bugreiros”, à
serviço dos colonos ou das Companhias de Colonização, ou abatidos a tiros de winchester. Antes, eram considerados
“selvagens desalmados” e perigosos. Hoje, são inofensivos e levam uma vida
bastante simples e pacata nas franjas de algumas cidades do planalto
catarinense. O que não quer dizer que a situação tenha melhorado. As populações
foram dramaticamente reduzidas e invisibilizadas. Vivem atualmente em refúgios,
nas reservas indígenas e nas margens das cidades e, geralmente, são vistos com
desconfiança pelas populações locais, que os taxam de sujos, ladrões e
preguiçosos, que vivem às custas do governo.
Meninas Xokleng - Santa Catarina.
A
lembrança da presença dos grupos indígenas na região se resume hoje a uma vaga
e nebulosa toponímia (Ribeirão dos Bugres, Rio dos Bugres), que sobrevive
silenciosamente nos cantos e sombras do “Vale Europeu”. Alguns nomes de cidades
construídas pelos imigrantes, marcadas noutros tempos pelos intensos conflitos,
conservam curiosamente a denominação indígena, como é o caso de Ibirama (“Terra
da Fartura”), de Ituporanga (“Salto Grande”) e de Perimbó (“Buraco”), antigo
nome de Petrolândia.
O
tiro certeiro do winchester ainda
ecoa no Alto vale.
Dos
poucos estudos disponíveis sobre o tema em Santa Catarina, recomendo, além dos
estudos do antropólogo Sílvio Coelho dos Santos, os livros “O Vapor e o
Botoque”, da historiadora Luisa Tombini Wittmann, e o livro “Armas, Pólvora e
Chumbo”, do historiador Almir Antonio de Souza.
Maravilha!
ResponderExcluirÉ muito triste esses relatos! Estou fazendo minha genealogia e as memórias dos mais velhos me informaram que minha triavó é uma "bugre. Foi caçada no mato com 2 tiros pra cima, caiu da arvore e o alemão tirou sua cinta e a amarrou. Se casou com ela. Isso tudo me da muita tristeza. Tomara q um dia possamos reparar o mal q fizemos a outras pessoas !
ResponderExcluirConheço muitas história como esta, Di Lange. E minha avó também era "bugra".
ResponderExcluirEu ouvia relatos assim quando criança, no sul de SC.
ResponderExcluir