“DIRTY PRETTY THINGS”: UM NECROTÉRIO DE CALOR HUMANO NA FRIA E
SUJA LONDRES DA IMIGRAÇÃO ILEGAL.
Quase
vinte anos depois do belíssimo My
Beautiful Laudrette (1985), que explora diferentes dimensões do romance
entre um garoto punk inglês e um imigrante paquistanês, Stephen Frears
revisitou o tema da imigração em Londres com Dirty Pretty Things (Coisas Belas e Sujas -2002). No filme, um
médico nigeriano (Okwe), que deixou Lagos por problemas políticos, vive na
capital britânica trabalhando de dia como taxista, com uma licença falsa, e de
noite como recepcionista de um hotel (O taxi que Okwe dirige não é o
emblemático carro preto, oficial de Londres, mas um carro comum de passageiros).
Nos poucos momentos de descanso entre as duas jornadas de trabalho, exerce
clandestinamente e a contragosto a medicina para socorrer pessoas que, como
ele, vivem à margem do sistema de saúde britânico. Se no seu país Okwe era
médico, e gozava de certo prestígio, em Londres é um “cidadão” de segunda
classe. Divide ilegalmente um apartamento pequeno com Senay, uma imigrante
turca, islâmica e casta, que vive driblando os inspetores da imigração,
trabalha ilegalmente como faxineira no mesmo hotel e é explorada sexualmente
pelos patrões, que também são imigrantes. A lei de imigração do Reino Unido não
permite que os empregadores contratem imigrantes em situação irregular (Segundo
Mark Harper, ex-ministro da imigração, o trabalho ilegal enfraquece as empresas
legítimas e favorece a exploração. Harper, ministro encarregado de aplicar uma
politica mais severa de imigração pelo governo conservador de Cameron,
renunciou ao cargo, em fevereiro de 2014, depois que veio a público que sua
faxineira era uma imigrante ilegal). Os apuros e os constrangimentos dos personagens
para escapar da antipática e severa fiscalização, o modo como os agentes de
imigração são retratados (vingativos, insensíveis e facilmente enganáveis) e as
sutilezas narrativas que criam imediata identificação dos expectadores com os protagonistas,
deixam claro que o filme é uma crítica condenatória da política britânica de imigração.
Esqueçam a metrópole charmosa e luminosa
dos cartões postais. Seguindo a tradição de Charles Dickens de explorar as
partes mais pobres e os cantos escuros de Londres, que constituem, se conectam e,
de inúmeras maneiras, dão sentido à totalidade da cidade, Frears ambientou a
narrativa fílmica nos bairros menos “nobres”, habitados por imigrantes, prostitutas,
trabalhadores e desafortunados em geral. As vidas ordinárias dos emblemáticos personagens do
filme se cruzam no hotel Baltic (O
nome do hotel é casual ou é uma referência a um dos mais inclementes mares do
mundo?).
Num
trabalho de rotina no hotel, para resolver um problema de entupimento, Okwe
encontra um coração humano largado na latrina do banheiro. A descoberta, que
deflagra uma trama policial envolvendo tráfico de órgãos, prostituição e
imigração ilegal, é também a imagem icônica no filme: o coração na latrina denuncia
o caráter descartável da vida humana. Mais do que isso, a imagem exprime visceralmente
a condição do imigrante: ele vale tanto quanto um cocô.
O
coração jogado fora é o artifício dramático que revela uma rede suja,
criminosa, articulada internacionalmente, que comercializa órgãos humanos e
explora a vulnerabilidade e a ilegalidade dos imigrantes. O hotel é a base de
operações da rede criminosa. As cirurgias clandestinas e a entrega dos órgãos
extraídos acontecem nas dependências do estabelecimento e contam com a
cumplicidade ou o silêncio dos funcionários, ilegais na maioria. O gerente do
hotel, um sujeito inescrupuloso chamado Juan, é um imigrante legal, bem estabelecido,
que comanda a rede, explorando a situação irregular dos imigrantes (É o vilão
caricato). Numa ponta da rede estão os clientes, compradores de órgãos. O
caráter internacional da organização fica explicito quando ficamos sabendo que
um dos compradores é da Arábia Saudita. Na outra ponta, estão os imigrantes dispostos
a trocar um rim por um passaporte falso. Entre os clientes endinheirados e os
imigrantes desesperados, articula-se uma zona intermediária especializada na
receptação e na falsificação de documentos (os falsificadores de passaportes,
por exemplo, são libaneses).
Esse
lado sujo e perverso da imigração ilegal tem o seu oposto. Entre os imigrantes
que não se envolvem com a prática criminosa, e lutam para manter a dignidade
sem precisar mutilar o corpo, constitui-se uma rede de amizades e solidariedade
que os ajuda a enfrentar a dura condição que a ilegalidade impõe.
As
redes migratórias, vistas como um conjunto de laços pessoais e sociais que
conectam pessoas, são fundamentais na articulação dos processos migratórios. Os
laços, que podem ser de natureza étnica, familiar, de amizade ou de experiência
de trabalho, engendram formas de solidariedade que constituem e mantém as redes
ativas. A rede à qual Okwe está conectado em Londres é formada por laços de
amizade (o amigo chinês) e de trabalho (Senay). A rede criminosa articula-se
num espectro completamente diferente. Ao invés da solidariedade e da ajuda, ela
se constitui como rede de exploração da condição do imigrante (exploração sexual,
do trabalho e da vulnerabilidade social). O jogo de oposições é convincente,
mas exageradamente esquemático. Para demonstrar
quase que didaticamente a vulnerabilidade e a exploração do imigrante, a
construção cinematográfica do contraste entre as redes e entre os personagens
que as constituem beira a caricatura. A fragilidade e a castidade tocantes de
Senay e as virtudes encantadoras de Okwe, comparados com a total falta de
escrúpulos e a sordidez cartunesca dos antagonistas, descamba para um
maniqueísmo que simplifica demasiadamente a complexa teia de relações que tece
o universo da imigração.
Nesse universo
sombrio, frio, sujo e criminoso, de precarização da vida, o único lugar onde
Okwe encontra algum conforto e um pouco de calor humano é, paradoxalmente, no
necrotério de um hospital. No imaginário popular, o necrotério é um lugar frio,
triste, lúgubre, associado à perda de pessoas queridas. Na cultura cinematográfica,
invariavelmente, os necrotérios são de dar arrepios. São lugares assustadores,
explorados nos filmes de terror para provocar o medo e arrancar calafrios das
plateias. Isso sem falar nas incontáveis narrativas de fantasmas e assombrações
que circulam por ai envolvendo necrotérios. No filme de Frears o paradoxo é apenas
aparente. Naquele lugar supostamente frio e sem vida, trabalha Guo Yi, um
imigrante chinês amigo de Okwe. É ali que o médico nigeriano vai, nas poucas
horas vagas, para ter com quem conversar, conseguir remédios para os seus
pacientes do submundo, jogar xadrez e, numa hora de aperto, ter uma cama quente
para dormir. De lugar da morte, o necrotério se converte num refúgio seguro,
onde o protagonista encontra abrigo, calor humano e compaixão. O necrotério
afetivo de Frears contrasta com o mundo dos vivos, com a indiferença e a frieza
das relações humanas e com a invisibilidade social do imigrante (Num diálogo
relâmpago com um inglês – um dos raros que aparece no filme – Okwe exprime
breve e eloquentemente a condição de invisibilidade. O inglês pergunta: “Como é que eu nunca te vi?” Okwe responde: “Por que
vocês nunca nos veem. Nós dirigimos seus táxis, limpamos seus quartos e
chupamos seus paus”). A invisibilidade dos imigrantes, sugere o filme, é
determinada pelas profissões que ocupam, pela classe, pela etnia e pelo status
legal. Os
imigrantes só não são invisíveis para os oficias da imigração, os únicos
ingleses que os enxergam e realmente prestam atenção às suas vidas.
No
necrotério, os mortos, independente da cor, da condição social e da
nacionalidade, são tratados com deferência e dignidade. Guo Yi encomenda os
corpos respeitosamente, observando a religião e os ritos fúnebres de cada um.
Uma linda lição de respeito à diferença e cuidado com o próximo, mesmo morto, numa
sociedade que trata os imigrantes como seres descartáveis.
Tem
um coração humano entupindo as artérias da política de imigração britânica!
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