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segunda-feira, 9 de maio de 2016

“DIRTY PRETTY THINGS”: UM NECROTÉRIO DE CALOR HUMANO NA FRIA E SUJA LONDRES DA IMIGRAÇÃO ILEGAL.

“DIRTY PRETTY THINGS”: UM NECROTÉRIO DE CALOR HUMANO NA FRIA E SUJA LONDRES DA IMIGRAÇÃO ILEGAL.


Quase vinte anos depois do belíssimo My Beautiful Laudrette (1985), que explora diferentes dimensões do romance entre um garoto punk inglês e um imigrante paquistanês, Stephen Frears revisitou o tema da imigração em Londres com Dirty Pretty Things (Coisas Belas e Sujas -2002). No filme, um médico nigeriano (Okwe), que deixou Lagos por problemas políticos, vive na capital britânica trabalhando de dia como taxista, com uma licença falsa, e de noite como recepcionista de um hotel (O taxi que Okwe dirige não é o emblemático carro preto, oficial de Londres, mas um carro comum de passageiros). Nos poucos momentos de descanso entre as duas jornadas de trabalho, exerce clandestinamente e a contragosto a medicina para socorrer pessoas que, como ele, vivem à margem do sistema de saúde britânico. Se no seu país Okwe era médico, e gozava de certo prestígio, em Londres é um “cidadão” de segunda classe. Divide ilegalmente um apartamento pequeno com Senay, uma imigrante turca, islâmica e casta, que vive driblando os inspetores da imigração, trabalha ilegalmente como faxineira no mesmo hotel e é explorada sexualmente pelos patrões, que também são imigrantes. A lei de imigração do Reino Unido não permite que os empregadores contratem imigrantes em situação irregular (Segundo Mark Harper, ex-ministro da imigração, o trabalho ilegal enfraquece as empresas legítimas e favorece a exploração. Harper, ministro encarregado de aplicar uma politica mais severa de imigração pelo governo conservador de Cameron, renunciou ao cargo, em fevereiro de 2014, depois que veio a público que sua faxineira era uma imigrante ilegal). Os apuros e os constrangimentos dos personagens para escapar da antipática e severa fiscalização, o modo como os agentes de imigração são retratados (vingativos, insensíveis e facilmente enganáveis) e as sutilezas narrativas que criam imediata identificação dos expectadores com os protagonistas, deixam claro que o filme é uma crítica condenatória da política britânica de imigração.

Esqueçam a metrópole charmosa e luminosa dos cartões postais. Seguindo a tradição de Charles Dickens de explorar as partes mais pobres e os cantos escuros de Londres, que constituem, se conectam e, de inúmeras maneiras, dão sentido à totalidade da cidade, Frears ambientou a narrativa fílmica nos bairros menos “nobres”, habitados por imigrantes, prostitutas, trabalhadores e desafortunados em geral. As vidas ordinárias dos emblemáticos personagens do filme se cruzam no hotel Baltic (O nome do hotel é casual ou é uma referência a um dos mais inclementes mares do mundo?).


Num trabalho de rotina no hotel, para resolver um problema de entupimento, Okwe encontra um coração humano largado na latrina do banheiro. A descoberta, que deflagra uma trama policial envolvendo tráfico de órgãos, prostituição e imigração ilegal, é também a imagem icônica no filme: o coração na latrina denuncia o caráter descartável da vida humana. Mais do que isso, a imagem exprime visceralmente a condição do imigrante: ele vale tanto quanto um cocô.

O coração jogado fora é o artifício dramático que revela uma rede suja, criminosa, articulada internacionalmente, que comercializa órgãos humanos e explora a vulnerabilidade e a ilegalidade dos imigrantes. O hotel é a base de operações da rede criminosa. As cirurgias clandestinas e a entrega dos órgãos extraídos acontecem nas dependências do estabelecimento e contam com a cumplicidade ou o silêncio dos funcionários, ilegais na maioria. O gerente do hotel, um sujeito inescrupuloso chamado Juan, é um imigrante legal, bem estabelecido, que comanda a rede, explorando a situação irregular dos imigrantes (É o vilão caricato). Numa ponta da rede estão os clientes, compradores de órgãos. O caráter internacional da organização fica explicito quando ficamos sabendo que um dos compradores é da Arábia Saudita. Na outra ponta, estão os imigrantes dispostos a trocar um rim por um passaporte falso. Entre os clientes endinheirados e os imigrantes desesperados, articula-se uma zona intermediária especializada na receptação e na falsificação de documentos (os falsificadores de passaportes, por exemplo, são libaneses).

Esse lado sujo e perverso da imigração ilegal tem o seu oposto. Entre os imigrantes que não se envolvem com a prática criminosa, e lutam para manter a dignidade sem precisar mutilar o corpo, constitui-se uma rede de amizades e solidariedade que os ajuda a enfrentar a dura condição que a ilegalidade impõe.

As redes migratórias, vistas como um conjunto de laços pessoais e sociais que conectam pessoas, são fundamentais na articulação dos processos migratórios. Os laços, que podem ser de natureza étnica, familiar, de amizade ou de experiência de trabalho, engendram formas de solidariedade que constituem e mantém as redes ativas. A rede à qual Okwe está conectado em Londres é formada por laços de amizade (o amigo chinês) e de trabalho (Senay). A rede criminosa articula-se num espectro completamente diferente. Ao invés da solidariedade e da ajuda, ela se constitui como rede de exploração da condição do imigrante (exploração sexual, do trabalho e da vulnerabilidade social). O jogo de oposições é convincente, mas exageradamente esquemático.  Para demonstrar quase que didaticamente a vulnerabilidade e a exploração do imigrante, a construção cinematográfica do contraste entre as redes e entre os personagens que as constituem beira a caricatura. A fragilidade e a castidade tocantes de Senay e as virtudes encantadoras de Okwe, comparados com a total falta de escrúpulos e a sordidez cartunesca dos antagonistas, descamba para um maniqueísmo que simplifica demasiadamente a complexa teia de relações que tece o universo da imigração.


Nesse universo sombrio, frio, sujo e criminoso, de precarização da vida, o único lugar onde Okwe encontra algum conforto e um pouco de calor humano é, paradoxalmente, no necrotério de um hospital. No imaginário popular, o necrotério é um lugar frio, triste, lúgubre, associado à perda de pessoas queridas. Na cultura cinematográfica, invariavelmente, os necrotérios são de dar arrepios. São lugares assustadores, explorados nos filmes de terror para provocar o medo e arrancar calafrios das plateias. Isso sem falar nas incontáveis narrativas de fantasmas e assombrações que circulam por ai envolvendo necrotérios. No filme de Frears o paradoxo é apenas aparente. Naquele lugar supostamente frio e sem vida, trabalha Guo Yi, um imigrante chinês amigo de Okwe. É ali que o médico nigeriano vai, nas poucas horas vagas, para ter com quem conversar, conseguir remédios para os seus pacientes do submundo, jogar xadrez e, numa hora de aperto, ter uma cama quente para dormir. De lugar da morte, o necrotério se converte num refúgio seguro, onde o protagonista encontra abrigo, calor humano e compaixão. O necrotério afetivo de Frears contrasta com o mundo dos vivos, com a indiferença e a frieza das relações humanas e com a invisibilidade social do imigrante (Num diálogo relâmpago com um inglês – um dos raros que aparece no filme – Okwe exprime breve e eloquentemente a condição de invisibilidade. O inglês pergunta: “Como é que eu nunca te vi?” Okwe responde: “Por que vocês nunca nos veem. Nós dirigimos seus táxis, limpamos seus quartos e chupamos seus paus”). A invisibilidade dos imigrantes, sugere o filme, é determinada pelas profissões que ocupam, pela classe, pela etnia e pelo status legal. Os imigrantes só não são invisíveis para os oficias da imigração, os únicos ingleses que os enxergam e realmente prestam atenção às suas vidas.

No necrotério, os mortos, independente da cor, da condição social e da nacionalidade, são tratados com deferência e dignidade. Guo Yi encomenda os corpos respeitosamente, observando a religião e os ritos fúnebres de cada um. Uma linda lição de respeito à diferença e cuidado com o próximo, mesmo morto, numa sociedade que trata os imigrantes como seres descartáveis.

Tem um coração humano entupindo as artérias da política de imigração britânica!




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