Jorge Mautner derramou “Lágrimas
Negras” no Parque de Coqueiros.
“A arte, para
mim, é para transformar o mundo. Sempre!”
(Jorge Mautner).
Jorge Mautner, o maior
de todos os Jorges, o poeta do Kaos e do amor que não sente vergonha e não pede
desculpas, desabou em Coqueiros, no início da noite de domingo. Chorou no final
da musica Lágrimas Negras, enquanto cantava: “Belezas são coisas acesas por
dentro. Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento. Lágrimas negras saem,
caem, dói.” As poucas pessoas que estavam lá, debaixo de chuva, assistiram a um
show inesquecível, com as canções clássicas, as declamações, o “ufanismo”
singularmente modernista (se o mundo não se abrasileirar, ele vira nazista), e
uma homenagem linda ao excelente e originalíssimo violonista (instrumentista) Nelson
Jacobina, falecido ano passado. Nelson, disse Mautner, estava com metástase e
sobreviveu por inacreditáveis quatro longos anos. No palco aguentava shows de
duas horas e meia, e as dores misteriosamente sumiam. Nelson foi parceiro de
Mautner por quarenta anos. As lágrimas foram pelo amigo. Lágrimas nossas. Jorge
não chorou sozinho.
Jorge Mautner é único,
e incomparável. Embora não cante bem, e o violino, que o acompanha sempre, seja
sofrível, ele é um dos artistas mais originas da música brasileira. Composições
geniais como Vampiro, Maracatu Atômico, Orquídea Negra, Árvore da Vida, a
Bandeira do Meu Partido, entre tantas outras, correm à margem da MPB desde 1958.
Alguns discos, como Bomba de Estrela, Para Iluminar a Cidade, O Filho Predileto
de Xangô, Antimaldito, O Ser da Tempestade, Estilhaços de Paixão e Árvore da
Vida são seminais e estão, em minha opinião, entre os mais importantes da MPB.
No entanto, Mautner é desconhecido do grande público. Tom Zé também.
Mautner é um filósofo
interrompido, caótico e iluminado. É de uma pureza tocante e um coração que não
cabe dentro do peito. Como não gostar desse cara?!! Deste liquidificador que mistura
Jesus de Nazaré com Nietzsche, o candomblé com o ateísmo de Hannah Arendt, o
existencialismo com Ismael Silva, Maiakovski com marchinha de carnaval e cita
José Bonifácio no meio do show (sem parecer pedante ou inconveniente). Só ele
consegue isso. Só ele consegue homenagear, como fez em Coqueiros, Pancho Villa,
Benito Juarez, Zapata e Hugo Chávez, e isso não soar estranho, forçado. É um
apaixonado pela “cultura brasileira”, pelo “amálgama” singular que criamos historicamente
(José Bonifácio, diz Mautner, foi o primeiro a reconhecer a grandeza das nossas
misturas). Foi uma espécie de prototropicalista, que misturou samba com rock
quando ninguém fazia isso, e depois um tropicalista de viés que nunca
frequentou a estrada principal da MPB. Mautner é um modernista incorrigível, um
socialista carnavalizado, um cavalheiro do kaos a espalhar “estilhaços de
paixão”. No palco fala tanto quanto canta, mas fala do seu jeito. Não esperem
dele um discurso organizado, centrado, linear. Despreocupadamente, emenda uma
frase na outra, mistura temas, fala por atalhos, não termina uma ideia e já
apresenta outra. E assim ele nos leva a um precipício de emoções e nos conduz
pelos caminhos ambíguos de sua mente labiríntica, com o seu raciocínio quântico
e suas elucubrações improváveis. As frases vão saindo de improviso, meio
desconexas, com sacadas geniais, e no fim, para quem se dispôs a ouvi-lo, elas
fazem sentido.
Mautner era filho de um
judeu austríaco e uma católica. A família fugiu no nazismo e veio parar no
Brasil, onde Mautner nasceu em 1941 (Daí o título do documentário "Jorge
Mautner, o filho do holocausto", dirigido por Pedro Bial e Heitor
D´Alincourt). Sua mãe estava grávida de oito meses quando fugiram para o
Brasil. “Quase toda a família de minha mãe (e do pai) foi executada. Tudo o que
escrevi, compus e senti, diz Mautner, gira e girará em torno disso.”
Jorge Mautner gosta de
contar episódios de sua vida, de sua mitologia particular, e transformá-los em
motivos para os seus voos filosóficos. Reza a lenda que entrou de furão no
festival de Woodstock, quando a entrada ainda era cobrada. Conta-nos, por
exemplo, que teve uma babá negra, chamada Lúcia, filha de santo no candomblé, até
os sete anos. Com ela aprendeu as primeiras lições de vida. “Um dia, nos conta
Mautner, Lúcia disse para mim: ‘meu filho, seus pais vieram de um país onde tem
muita gente má. Mas pode ficar tranquilo que aqui a gente gosta de você e nós
vamos lhe tratar bem, viu?’” Um dia, passeando com Lúcia nos jardins do Palácio
do Catete, o presidente Getúlio Vargas se aproximou dele e puxou conversa.
Perguntou de onde ele era. Jorge Mautner respondeu: “Eu sou brasileiro, mas
meus pais, coitadinhos, eles são estrangeiros.” O Brasil, generoso, como ele
gosta de dizer, o recebeu e ele passou a fazer parte desse amálgama de culturas
e povos. Tornar-se-ia, prematuramente, a expressão artístico-filosófica dessa
“mistura”.
Em 1962 entrou para o
Partido Comunista, foi preso durante a ditadura e aconselhado a moderar o tom.
Foi para os Estados Unidos, depois para Londres onde encontrou Caetano Veloso e
iniciaram uma parceria que dura até hoje. Uma das últimas músicas composta
pelos dois foi Tarado. Procurem. Vale a pena ouvir. Mautner escreveu vários
livros e dirigiu um filme (Demiurgo, de 1970).
Aos quinze anos publicou seu primeiro livro – Deus da Chuva e da Morte –
que ainda pode ser encontrado a net para compra. Transcrevo um fragmento:
"Ouvir rock, ver a
chuva, beijar uns lábios, deitar com uma ou outra carne na cama e sentir o
sexo. Depois de horas e horas de pensamento e desistência e ridículo e
paradoxos e uma vontade louca de viver! Mas o sono me puxando poderosamente.
Então eu ouço Rock e olho a chuva e penso no sexo. Depois tudo se mistura
porque na verdade tudo existe misturado: o sexo, o Rock, a chuva e então eu
durmo. Eu durmo e durmo e sonho em ritmo de rock e vejo a chuva no sonho e o
sexo se sobressaindo em todos os lugares. Sonhos agitados nos quais existe algo
que eu esqueci de citar. Algo que balança que nem uma bandeirinha vermelha em
meio à chuva, ao sexo e ao Rock. É a infância. Será que o Rock, a chuva e o
sexo não passam de infância e que só a infância presente existia? Só a infância
presente existe! Lembre-se disto: só a infância presente existe!"
Está com 72 anos,
completados no último 17 de janeiro, e sobe no palco com uma disposição
admirável. Eu acompanho a trajetória de Mautner
nos palcos desde os anos 80. No show de domingo ela demonstrou o mesmo vigor, e
a mesma paixão, de trinta anos atrás. O público, como sempre, era reduzido,
mas, como sempre, cantou do começo ao fim todas as canções: “Atrás do
arranha-céu tem o céu, tem o céu. E depois tem outro céu sem estrelas. Em cima
do guarda-chuva tem a chuva, tem a chuva. Que tem gotas tão lindas que até dá
vontade de comê-las” (Maracatu Atômico).
Se
tem alguém que vive verdadeiramente de acordo com a máxima de Paulo Leminski
(“distraídos venceremos”), esse alguém é Jorge Mautner. Um artista sem
artifícios, sem máscaras. Um vampiro tropical, romântico “tardio” e
generoso, que canta o amor com sangue e flor: “Você é uma loucura em minha
vida. Você é uma navalha para os meus olhos. Você é o estandarte da agonia. Que
tem a lua e o sol do meio-dia” (Vampiro).
Eu adoro esse cara.
Só mesmo Jorge Mautner,
o profeta do absurdo, para me fazer sair de casa num domingo chuvoso, com capa e guarda chuva, atravessar a ponte e ficar a céu aberto assistindo um show!
"Nos demais todo
mundo sabe o coração tem moradia certa, fica bem aqui, no meio do peito... mas
comigo a anatomia ficou louca. Sou todo coração...” (Poema de Maiakovski citado
na música Perspectiva).
“Vejam a chuva e o Sol
Um são raios a outra são águas
Uma é samba o outro é rock n roll
Mas ambos tem as mesmas mágoas”
Jorge Mautner