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terça-feira, 12 de março de 2013

A RAPOSA FAMINTA VAI TOMAR CONTA DO GALINHEIRO. Ou: O deputado que disse que a Aids é o “câncer dos Gays” e que a desgraça dos africanos decorre da “maldição de Noé” foi indicado para presidir a Comissão dos Direitos Humanos e das Minorias.



A RAPOSA FAMINTA VAI TOMAR CONTA DO GALINHEIRO. Ou: O deputado que disse que a Aids é o “câncer dos Gays” e que a desgraça dos africanos decorre da “maldição de Noé” foi indicado para presidir a Comissão dos Direitos Humanos e das Minorias.



Não somos ingênuos. Sabemos que as indicações dos nomes para as diversas comissões do congresso nacional dependem de articulações e de arranjos partidários e dos jogos de interesses que costuram as relações no congresso. Embora saibamos disso e conheçamos a cultura política brasileira, tem coisas que nos pegam de surpresa. E não adianta apontar este ou aquele partido, por isso ou por aquilo. Todos eles fazem parte do jogo e não hesitam em atacar a decência e a dignidade, ou mesmo a vontade que por vezes emerge da sociedade, para defender seus interesses. Se o PSDB e o PMDB apoiaram no nome de Marco Feliciano, o PT bancou o nome de Renan Calheiros. Certo?

O pastor Marcos Feliciano, do PSC (Partido Social Cristão), foi indicado pela maioria do partido para presidir a Comissão de Diretos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. O deputado é conhecido pelas declarações preconceituosas e de mau gosto em relação aos gays ("Nosso medo é só esse: união homossexual não é normal. Não haveria condição de dar sequência à nossa raça. Agora, o que se faz dentro de quatro paredes não me diz respeito."). 

As pérolas do futuro presidente da Comissão dos Direitos Humanos não param por aí. Querem mais duas? “Entre meus inimigos na net (sic), estão: satanistas, homoafetivos, macumbeiros...” e “A podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam (sic) ao ódio, ao crime, a rejeição”. Mais uma para fechar? “A AIDS é o câncer gay.” 

O homem que se declara inimigo dos homoafetivos vai presidir uma Comissão que cuida dos direitos das minorias? Nem entre os evangélicos existe um consenso sobre o nome de Feliciano. A Rede Fale, que congrega cristãos progressistas, manifestou preocupação com a indicação do deputado. 

Afeito a frases de efeito e declarações polêmicas, o pastor surpreendeu em 2011 ao postar no twitter que os africanos são desgraçados porque descendem de ancestral amaldiçoado de Noé. Para sustentar a declaração citou passagens bíblicas sobre Cam, o filho amaldiçoado por Noé e recorreu a Flávio Josefo, historiador e apologista judeu-romano, para mostrar que os africanos realmente descendiam de Cam. O pastor não brinca em serviço. Amparou-se na “autoridade” da bíblia e na “veracidade” da história para detratar os “africanos”. 



Vamos em busca da linhagem discursiva evocada pelo deputado? A quem possa interessar, a passagem bíblica referente à maldição de Cam está em Gênesis 9:22-25. Transcrevo:

“E viu Cam, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos seus irmãos no lado de fora. Então tomaram Sem e Jafé uma capa, e puseram-na sobre ambos os seus ombros, e indo virados para trás, cobriram a nudez do seu pai, e os seus rostos estavam virados, de maneira que não viram a nudez do seu pai. E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera. E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos. E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo. Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por escravo...”.

A maldição de Noé recaiu sobre os filhos de Cam. Canaã, por ser o mais moço, foi diretamente citado, mas a maldição dirigiu-se os quatro filhos: Cuxe, Mizraim, Pute e Canaã (Ver Gênesis 10:6).
Flávio Josefo, a quem possa interessar também, mencionou na obra “Antiguidades Judaicas” a nação de Cuxe, um dos filhos de Cam, que teria se dirigido e reinado sobre a Etiópia. "Para um dos quatro filhos de Cam, o tempo não para toda a mágoa o nome de Cush; para a Etiópia , sobre o qual reinou, são ainda menos Neste dia, tanto por si e por todos os homens na Ásia, etíopes chamados.” (Flávio Josefo).

Estas são as obras e as passagens que Feliciano usou para sustentar suas declarações.  Mas fico com a ligeira impressão de que o pastor foi beber também em outras águas. Águas perigosas para um membro da Assembleia de Deus. Refiro-me ao jesuíta Jorge Benci SJ, um dos mais importantes autores cristãos a relacionar a maldição de Noé com os africanos trazidos para o Brasil. Benci escreveu uma obra publicada no “Brasil” em 1700 intitulada “Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos”. (Tenho uma antiga edição da editora Grijalbo, de 1977). No capítulo em que aconselha os senhores a manterem as escravas bem vestidas, “visto que a servidão e cativeiro teve sua primeira origem do ludíbrio”, lembra da maldição de Noé sobre Cam e toda a sua descendência, que “no sentir de muitos é a mesma geração de pretos que nos servem”. Os escravos da América Portuguesa são assim diretamente ligados à descendência de Cam e, portanto, portadores de uma maldição.

Os negros, segundo Benci, tinham uma particular inclinação para os “vícios”. O próprio Deus lembrou esta singularidade a Amós ao comparar os Hebreus com os Etíopes. Recorrendo a autoridade de São Jerônimo, o jesuíta diz que nas escrituras “se chamam Etíopes não quaisquer pecadores senão os que são tintos com a cor preta de todos os vícios”. 

O reencontro deste povo apartado de Deus, e que carrega na pela a marca do pecado, com o cristianismo viria pela mão dos portugueses, “o povo escolhido entre todas as mais nações para propagar e dilatar a Fé de Jesus Cristo”. A escravidão no Brasil seria uma espécie de purgatório, conforme o padre Vieira, dos africanos. Aqui eles expiariam seus pecados e, quem sabe, se livrariam da antiga maldição. A lenda da maldição de Noé, desde o século XVI, tinha função legitimadora da escravidão africana. A obra de Benci foi publicada com o consentimento dos seus superiores, o que denota ser este, em tese, o entendimento que a igreja tinha sobre o tema. Escrita com o propósito de servir de manual para a educação cristã dos escravos, a obra, que reúne quatro sermões, expressava a pedagogia jesuítica no contexto colonial. A pedagogia corretiva e cristã de Benci articulava três categorias que, em síntese, constituíam as obrigações de um senhor cristão: trabalho, sustento e castigo. A publicação da obra foi um acontecimento da ordem jurídica da escravidão. Influenciou, sete anos depois, as “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, um conjunto de normas religiosas que passou a reger o universo social colonial. A obra de Antonil (Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas), amigo de Benci, publicada em 1711, também foi influenciada pela “Economia Cristã...”. A obra “O Etíope Resgatado Empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado”, escrita na Bahia em 1756 e publicada em Lisboa pelo religioso português Manoel Ribeiro Rocha, também foi diretamente influenciada pelos sermões de Benci. 

“Economia Cristã...” pode ser vista como depositária de uma tradição teológica sobre a maldição de Noé, que pontificava a divisão da humanidade em duas grandes linhagens: a dos semitas e a dos camitas (apartados de deus). Esta interpretação do velho testamento é arbitrária. Em tempos pré-centíficos, dominados pelas especulações teológicas, tinha a sua validade.  Hoje, não se sustenta. Para dizer o mínimo, esta visão desconsidera completamente as descobertas da arqueologia sobre o continente africano e faz tabula rasa sobre os conhecimentos sobre a humanidade acumulados pelo conjunto das ciências. 

Jorge Benci retomou a lenda de Noé num contexto colonial para demonstrar a legitimidade da escravidão, e a necessidade de reformá-la, e construiu um monumento pedagógico e normativo que dali para frente exerceria um papel decisivo na edificação das normas coloniais. A obra de Benci, ancorada no velho testamento e dialogando com a Patrística, a Escolástica, os clássicos greco-romanos, o direito divino e natural, o direito romano e os cânones da Igreja, seria uma pista extraordinária para perseguirmos a matriz discursivo-teológica sobre os usos da narrativa bíblica da maldição de Noé para justificar a escravidão.

Marcos Feliciano também oferece uma saída para os africanos diminuírem o peso da desgraça lançada por Noé: “milhares de africanos têm devotado sua vida a Deus e por isso o peso da maldição tem sido retirado”. Estaria o pastor evangélico buscando argumentos na literatura católica papista? Pouco provável. Mas a provocação é irresistível. O que Feliciano fez foi resgatar o velho argumento teológico da “maldição de Noé”, da tradição judaica e muçulmana, usado pelos jesuítas para justificar a escravidão africana no Brasil, e jogá-lo maldosa e irresponsavelmente no twitter. Os jesuítas, Benci em particular, nos séculos XVI e XVII, estavam imersos numa cultura do debate teológico sobre o tema da escravidão humana. Naquele tempo, anterior a história científica e ao relativismo antropológico, as justificativas econômicas e morais sobre a escravidão andavam de mãos dadas com as preocupações religiosas e pedagógicas em relação aos escravos. A obra de Benci era uma justificativa teológica e moral da escravidão, mas era também uma obra reformista que sugeria normas para o trato cristão dos escravos. Era também uma denúncia dos abusos cometidos pelos senhores de escravos. Coisa bem diferente é, em pleno século XXI, na era dos direitos humanos, um deputado ressuscitar esta antiguidade teológica e apresentá-la como “fato” (“Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato”). A ignorância teológica do pastor/deputado só rivaliza com o seu próprio mau caratismo. 



Ultrapassando, e muito, os limites da decência e do respeito, Marco Feliciano afirmou que a maldição pode ser desfeita com o reencontro com deus. Será que este reencontro se daria na sua igreja, com os “amaldiçoados” portando cartões de crédito?  Será que é por isso, por descobrir o caminho para desfazer a maldição de Noé, que Feliciano foi escolhido pelos seus pares para presidir a Comissão dos Direitos Humanos? Brincadeiras a parte, a nomeação do deputado e pastor parece uma zombaria. Seria mais ou menos como indicar o coronel Marco Antonio Balbi para presidir a Comissão da Verdade.

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