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segunda-feira, 27 de maio de 2013

MADURO VESTE FARDA: A Nova Roupa do Presidente e a Aliança Operário-Militar na Venezuela.



MADURO VESTE FARDA: A Nova Roupa do Presidente e a Aliança Operário-Militar na Venezuela.






A notícia da criação de milícias operárias pelo presidente Nicolás Maduro, de roupa nova, não me surpreendeu. Não mesmo. Era esperado. Será que surpreendeu àqueles que até ontem sustentavam que havia democracia e respeito à liberdade de opinião na Venezuela? Pois bem, a peculiar democracia chavista desfila agora orgulhosa pelas ruas a política da intimidação, da força, das armas e das fardas. Ela, enfim, mostra a sua cara. Devidamente fardada a “revolução” marcha. Ela não anda nem progride, ela marcha. Marcha na (de)cadência previsível e no som uníssono das botas que martelam o chão e esmagam a espontaneidade. A “revolução” marcha com cara amarrada e olhos de fúria. A terrível classe média (que Marilena Chauí odeia) e as oligarquias venezuelanas não podem interromper a marcha vitoriosa da “revolução”. As milícias vão cuidar para que isso não aconteça. Tem um “santo” olhando por elas. Elas marcham vigilantes. Escutem as botas pisando o chão.....  é a música da “revolução”. Escutem o ruído das armas.... é o som do reino da justiça que se aproxima. Escutem... escutem...



 O opressivo som das botas silencia a salsa e o merengue. O jogo dos quadris endurece e a cintura perde toda flexibilidade. O tom marcial se impõe. A dança vira marcha. As milícias entram em cena. O uniforme encobre e esconde o ser humano, o trabalhador, e faz nascer o soldado bolivariano. Mulheres e homens metidos provisória e improvisadamente em roupas de soldados e marchando pelas ruas para silenciar as vozes dissonantes: o que de bom pode resultar disso? Existem outros caminhos, outros meios, outras escolhas. Já vimos algo semelhante acontecer em outros lugares e contextos, tanto a direita quanto a esquerda. E o balanço sempre foi trágico.



Eu aproveito para citar novamente um grande filme: O Ovo da Serpente. Só não vê quem não quer. As milícias existem na Venezuela desde 2005. Chávez deixou um efetivo de cerca de 130 mil milicianos. Maduro apenas vai reforçar e ampliar o poder de intimidação daquilo que já existia. Como podem existir a reflexão crítica, o livre pensamento e a liberdade de expressão num ambiente vigiado e monitorado por milícias armadas? As milícias bolivarianas marchando enfileiradas pelas ruas com suas cores e símbolos, empinando bandeiras e entoando hinos de guerra é um verdadeiro espetáculo fascista. A organização dos “trabalhadores” em milícias – a Milícia Nacional Bolivariana – ligadas ao exército e controladas pelo estado é do tipo fascista. Desconfio que a sacada de Benjamin sobre a “estetização da vida política” nos regimes fascistas, adaptada com cuidado à Venezuela bolivariana, daria ótimos insights. 











O objetivo das “milícias operárias”, segundo Maduro, "é fortalecer a aliança operário-militar". Num discurso na Universidade Bolivariana de Trabalhadores Jesús Rivero o presidente afirmou que com as milícias a classe trabalhadora vai ser mais respeitada: “Serão ainda mais respeitados se as milícias tiverem trezentos mil, um milhão, dois milhões de trabalhadores e trabalhadoras uniformizados e armados, preparados para a defesa da soberania e da revolução.” 


As armas impõe respeito ou intimidam? Respeito e medo são coisas bem diferentes, presidente. Não se conquista respeito com armas. Os traficantes não impõe respeito nos lugares dominados pelo tráfico, se me permitem oferecer uma analogia. Eles metem medo nas pessoas. Será que o passo seguinte da “revolução bolivariana” é “vencer” pelo medo? Quem vai discordar de centenas de milhares de “trabalhadores” armados? Fico imaginando os abusos que as tais milícias armadas, soltas pelas ruas, com o apoio do presidente, defendendo a “soberania” e a “revolução”, não vão praticar. É assustador.




Mas o que mais me chamou a atenção nisso tudo foi a repentina mudança de visual de Maduro.  O presidente apareceu vestindo discreto traje militar. Discreto porque não exibe medalhas nem distinções. Não tinham percebido? É preciso ficar atento aos detalhes, amigos. Um crítico de arte italiano chamado Giovanni Morelli já dizia que o segredo está nos detalhes mais negligenciáveis. Vamos explorar o método, ainda que rapidamente, e interrogar o detalhe que passou despercebido? Chávez era militar, a farda fazia sentido. Mas Maduro era maquinista. Nunca foi militar. O que ele está fazendo de uniforme militar?  A mudança de roupa deve estar sinalizando para os novos rumos da “revolução”. Fidel trocou as fardas pelos uniformes adidas. Maduro, no caminho inverso, trocou os uniformes pela farda. Metamorfoses revolucionárias! Uma roupa para cada estação. Os uniformes adidas de Fidel combinam com as mudanças que lentamente estão acontecendo em Cuba. Seria o outono da revolução? O comandante relaxou, guardou as fardas, despiu-se da estética da guerra fria e assumiu um ar menos guerrilheiro. Maduro parece que abandonou os ternos alinhados e os abrigos esportivos e optou por um estilo mais combativo, mais afinado com a aliança recém-celebrada. Roupas reforçadas para tempos difíceis. É isso, se as roupas querem dizer alguma coisa, vamos ler Maduro. O uniforme militar traduz a aliança militar-operária que ele pretende consolidar e comandar. Tem que estar vestido a caráter. Traduz também a militarização da sociedade venezuelana. Maduro assumiu a farda e com ela o viés ainda mais autoritário da “revolução”. Não basta ser autoritário, tem que parecer. Tem que vestir a roupa e assumir de vez a estética fascista bolivariana. Falta o quepe, comandante. Botas também cairiam bem. Botas são imponentes. Ajudam na construção de uma imagem mais austera. A boina vermelha, em certas ocasiões, também é aconselhável. Lembraria o ex-comandante. 



As fotos das milícias bolivarianas lembram as mobilizações militares da Coréia do Norte. Não acham? Lá na terra de Kim Jong-un reina a escassez e abundam as armas. É a lógica “inevitável” dos totalitarismos?



O papel higiênico esta em falta na Venezuela, mas armas para serem empunhadas por uma multidão não vão faltar. É esta a solução revolucionária? Falta papel, mas sobram armas? Não tem nada de revolucionário em armar os “trabalhadores” para defender a dita “revolução”. A atitude revela o desespero e a insensatez de um presidente lutando para defender o seu mandato. A “revolução” é o álibi perfeito. Justifica tudo. Mas o que se podia esperar de um presidente que alguns dias antes da criação das milícias operárias tentou amedrontar os beneficiados por um projeto de habitação iniciado por Chávez, declarando que sabia inclusive a identidade dos compatriotas que não haviam votado nele? Se não viu problemas em intimidar a população pobre, imagine o que é capaz de fazer com os seus adversários políticos.




sábado, 25 de maio de 2013

O ÓDIO DE CLASSE: A CLASSE MÉDIA SEGUNDO MARILENA CHAUÍ.



O ÓDIO DE CLASSE: A CLASSE MÉDIA SEGUNDO MARILENA CHAUÍ.

Num discurso proferido no lançamento do livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma”, organizado por Emir Sader, Marilena Chauí arrancou aplausos da plateia ao expressar o “ódio” que sente pela classe média brasileira. Advirto que o que vocês vão ler possui conteúdo simbolicamente violento. É impróprio para não iniciados.

“É porque eu odeio a classe média. A classe média é um atraso de vida. A classe média é a estupidez. É o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante, arrogante, terrorista. É uma coisa fora do comum a classe média (…) A classe média é a uma abominação política porque ela é fascista. Ela é uma abominação ética porque ela é violenta. E ela é uma abominação cognitiva porque ela é ignorante”.

Prestem atenção nos adjetivos: abominável, fascista, terrorista, ignorante petulante, arrogante, reacionária, atrasada. Vindo de uma filósofa, de quem se espera um cuidado com o uso das palavras, não perece ter sido um descuido. As palavras foram escolhidas a dedo. É realmente um caso de violência simbólica explicita.

De quem ou do que exatamente Marilena esta falando? Se for do SEGMENTO ultraconservador da classe média, responsável pelos movimentos “2.000.000 - Dois Milhões e Brasileiros Unidos pelo Brasil”, “Endireita Brasil”, e outros do mesmo naipe, diria que, deixando o “ódio” e o “abominável” de lado, concordo com ela. Cito um dos posts recentes no facebook de um destes movimentos da ultradiretita:

(O post faz referência a um vídeo gravado em 2009 na Amazônia em que Dilma destaca a importância da “revolução cubana” no contexto americano, durante as celebrações dos 50 anos da revolução. Na abertura do vídeo o lema deles – “FORA PT” – e uma música de suspense que cria a expectativa de algo abominável que vai ser dito. E o que Dilma diz? O que todo mundo já sabe sobre a revolução. É frustrante até mesmo para os seguidores do movimento. Dilma foi muito econômica com as palavras e com os elogios).

Leiam o post:

“Dilma declarando seu amor pela revolução cubana em 1959, seu amor pelo comunismo de Cuba”: 

“Ela foi membro ativo das organizações terroristas comunistas que pegaram em armas para combater o regime militar, e impor uma ditadura comunista no Brasil, esses grupos terroristas assassinaram 119 brasileiros pela causa da ditadura comunista, além de sequestrar autoridades, sequestrar aviões, assaltar bancos e lojas comerciais e até roubaram o cofre de Adhemar de Barros, então governador de SP onde haviam milhões de dólares... tudo pela causa da ditadura comunista. Os militares à pedido do povo na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em 19/03/1964, deram contra golpe na implantação da ditadura comunista no Brasil que estava sendo concretizado com João Goulart, vice presidente que assumiu com a renúncia do então presidente Jânio Quadros.” (“
2.000.000 Milhões e Brasileiros Unidos pelo Brasil”).

Leram? É isso mesmo. Eles pretendem ser hoje o que a TFP foi na década de 1960. Dilma é o Jango deles. Além de atentarem contra a língua portuguesa, atentam contra a democracia. O movimento, criado aparentemente para protestar contra a corrupção no Brasil, é, na verdade, um movimento contra o PT e contra o que chamam de “golpe comunista”, que estaria em curso no Brasil. Num outro post, que não vou reproduzir, um sujeito afirma que os médicos cubanos que viriam para o Brasil são na verdade guerrilheiros disfarçados. O movimento é patético e pratica um tipo previsível e rasteiro de terrorismo psicológico. Mas o que me interesse neste momento não é o movimento. O “ódio” de classe da filósofa de classe média Marilena Chauí chama mais a minha atenção. O movimento “2.000.000” é bobo e irrelevante, é uma manifestação estúpida de uma pequena parte da classe média (mas é bom ficarmos atentos). O ódio da filósofa, cultivado, teoricamente sofisticado e agora publicamente conhecido, deve ser observado com mais cuidado.  Ela elevou o ódio a um patamar perigoso e explosivo. O ódio é o caminho que leva à intolerância e ao obscurantismo político, não ao esclarecimento. Bobear daqui a pouco eles criam o Ministério do Ódio, para canalizar o nobre sentimento e instrumentalizá-lo politicamente, e para fazer dobradinha com o Ministério da Verdade (Não sou contra o Ministério nem contra o que ele está fazendo, só não gosto do nome).

Não é preciso ser filósofo nem sociólogo para saber que a classe média não é um bloco homogêneo que pensa, age e se comporta da mesma forma e que se movimenta na mesma direção. Marilena generaliza, presta um desserviço sociológico e confunde mais do que esclarece. Sabemos que segmentos da classe média paulistana, gaúcha, catarinense, etc, votam no PT. Sabemos que Marilena se refere principalmente à classe média paulistana, que essa briga vem de longe e blá blá blá. Ainda assim a generalização é grosseira. O que poderíamos denominar como classe média é uma coisa tão grande, diversa e heterogênea que exige abordagem mais cautelosa e informada e menos palanqueira.

Parece mesmo que Chauí abdicou da filosofia e da reflexão para se entregar sem pudores à militância político-partidária. A filosofia lamenta. A militância partidária não perde nem ganha. Marilena não está fazendo a diferença. 

A oposição fundamental de classes, da filosofia da história clássica marxista, adquiriu, no Brasil, um arranjo inédito e um novo e inesperado motor: o ódio. O ódio de classes. Os intelectuais “progressistas” de classe média, como Marilena, odeiam a classe média não intelectual e conservadora. 

A filósofa elitista e autoritária, que entrega generosamente seus dotes intelectuais à causa popular, não sem antes reabilitar Paulo Maluf, declarou seu ódio e nomeou o abominável. A plateia aplaudiu, as redes sociais “curtiram” e o ódio subiu mais um degrau na escalada da intolerância no Brasil. Bravo, Marilena.

♪♫ “...mas o ódio cega e você não percebe....mas o ódio cegaaa” ♪♫

segunda-feira, 20 de maio de 2013

CARTA DE KROPOTKIN À LENIN: Da Revolução à Ditadura de um Partido.




CARTA DE KROPOTKIN À LENIN: Da Revolução à Ditadura de um Partido.




A crítica anarquista, a despeito do romantismo revolucionário e de certa ingenuidade política (o que sempre me pareceu ser o charme dos anarquistas), sempre foi das mais lúcidas e honestas. A integridade, a firmeza de caráter e o antiautoritarismo de homens como Kropotkin (e aqui no Brasil o inesquecível Edgard Leuenroth) representam um contraponto necessário que sublinha e acentua os desvios e os abusos praticados em nome do socialismo e do comunismo ao longo do século XX e neste começo do século XXI. O legado é inestimável. Vou dar uma pequena amostra.


Depois da vitória dos bolcheviques Piotr Alexeyevich Kropotkin retornou entusiasmado à Rússia, em meados de 1917. Estava motivado e inebriado pelos acontecimentos. Lenin tentou uma aproximação a fim de convertê-lo à causa bolchevique. O prestígio de Kropotkin era enorme na Rússia. Mas o entusiasmo logo se transformou em manifesta desconfiança. Passou a criticar duramente a postura totalitária e os métodos bolcheviques, acusando-os de estar construindo uma ditadura sob o comando de Lenin, sem se importar com o próprio povo, que era mais revolucionário que os próprios bolcheviques. No começo de 1919 os dois se reuniram em Moscou e Kropotkin defendeu as cooperativas, que estavam sendo atacadas pelos bolcheviques. O tom da reunião foi ameno, mas a partir daquele momento as críticas foram se tornando cada vez mais duras. Numa das cartas à Lenin, Kropotkin disse sem meias palavras: “Lenin não se compara a nenhuma figura revolucionária da história. Revolucionários tinham ideais, Lenin não tem nada. Lenin, suas ações concretas são completamente contrárias às ideias que você finge sustentar”. Não há dúvidas de que o pragmatismo glacial e as escolhas de Lenin assustavam o experiente e ressabiado anarquista. Em certo sentido entendo as escolhas de Lenin (além de admirá-lo como vigoroso teórico), e esforço-me para compreendê-las naquele contexto. Mas Kropotkin, que também viveu aqueles tempos turbulentos, é a crítica contemporânea, escrita no calor da hora, ao caminho que Lenin decidiu trilhar. Por mais que eu me esforce para entender Lenin, devo admitir, minha consciência histórica sobre o que se convencionou chamar de “revolução russa”, deve muito mais a Kropotkin. A desconfiança do velho anarquista em relação aos pretensos guias da vontade popular orienta, em grande medida, a leitura que faço dos caminhos de certa esquerda latino-americana hoje.



Kropotkin morreu alguns meses depois, em 8 de fevereiro de 1921. O governo bolchevique, que sempre tentou usar a seu favor a popularidade e a credibilidade do velho e autêntico REVOLUCIONÁRIO, ofereceu um funeral oficial. Felizmente a família e amigos libertários recusaram a duvidosa oferta. Uma multidão de trabalhadores, estudantes, camponeses, soldados e admiradores foram espontaneamente até a casa onde Kropotkin estava sendo velado. Escolas fecharam as portas e a multidão acompanhou o cortejo até a estação de trem, de onde o corpo foi transportado para Moscou. Na capital uma multidão de mais de cem mil pessoas recebeu o corpo e o acompanhou por oito quilômetros até o cemitério Novodévichi, ao som da Sinfonia Patética, de Tchaikovsky. Vários amigos e correligionários tomaram a palavra para homenagear Kropotkin, e Aarón Barón (anarquista que foi posto em liberdade provisória), último a falar, protestou contra as prisões arbitrárias e as torturas contra os revolucionários que faziam oposição aos bolcheviques (Prisões arbitrárias e torturas não acontecem apenas na prisão de Guantánamo). Para muitos historiadores do anarquismo o funeral de Kropotkin foi a última grande manifestação libertária na URSS. A máquina bolchevique de triturar não permitiria mais manifestações como esta. Recomendo que pesquisem sobre a figura “dramática e dostoievskiana” (George Woodcock) de Nestor Makhno, líder anarquista rural que enfrentou a ferocidade do “exército vermelho”. Só depois de vencer Makhno e as forças anarquistas é que os bolcheviques conseguiram “adaptar o mundo camponês ao estado marxista” na Ucrânia (Woodcock).





Oradores e amigos no funeral de Kropotkin.












Multidão acompanhando o funeral.







Na carta endereçada ao líder da revolução, reproduzida abaixo, Kropotkin sugere que o camarada Lenin saia do seu gabinete, deixe os livros um pouco de lado e vá conhecer os anseios, os desejos e as necessidades do “povo”. Uma revolução não poder ser concebida à revelia do “povo”. Uma revolução concebida apenas na teoria pode se converter em fantasmagoria. Neste caso, o “povo”, em nome do qual se opera a mudança, torna-se um colossal estorvo, e a revolução se volta contra ele. A revolução, como ideal, não enche barriga. Ela pode ser o alimento do espírito para os intelectuais, mas não é o trigo que alegra a mesa do “povo”. 

As palavras dirigidas à Lenin em 1920 revelaram a força da intuição e a aguda observação do velho anarquista. Nas décadas seguintes o partido se transformaria num mostro tentacular e devorador da própria revolução: a versão bolchevique do Saturno de Goya. A revolução devoraria seus filhos e maltrataria o “povo”, em nome do “povo”. Lenin já estava morto, Kropotkin também. Mas antes de morrer Lenin foi alertado. 

Mas afinal, o que Kropotkin teria a dizer a nós, homens e mulheres do século XXI, que ainda acreditamos que o mundo pode ser melhor (embora por caminhos diferentes)? Além do alerta do perigo do autoritarismo que ronda a ideia de revolução, um recado para os “revolucionários” latino-americanos: o “povo” é de verdade. “Povo” não é “massa”. “Povo” não é discurso. Revolução não é um brinquedinho temporário da classe média universitária nem um capricho de uma elite intelectual que se refugiou preguiçosamente no mundo das ideias. Deixem a teoria e a soberba um pouco de lado e afinem os ouvidos. Ouçam o que o “povo” tem a dizer. Pode soar estranho, conservador até, mas se não for assim, o ideal da revolução vai seguir sua marcha surda e indiferente, iluminada por uma teoria descolada do mundo real que atribui um papel ao “povo” que ele teimosamente se recusa a cumprir.

As palavras e o alerta de Kropotkin ecoam em “nuestra América” (sempre as voltas com a “revolución”), os métodos bolcheviques também. Kropotkin, revolucionário genuíno e crítico implacável do autoritarismo, é um excelente companheiro de viagem pela história das revoluções sul-americanas e seus desdobramentos contemporâneos. O velho anarquista sabia das coisas.

A Carta.

“Vivendo no centro de Moscou, você não pode conhecer a verdadeira situação do país. Teria de deslocar-se às províncias, manter estreitos vínculos com as pessoas, compartilhar seus desejos, trabalhos e calamidades; com os esfomeados – adultos e crianças – suportar os inconvenientes sem fim que impedem a obtenção de provisão para um mísero lampião … E as conclusões a que chegaria, poderiam ser resumidas numa só: a necessidade de abrir caminho para condições de vida mais normais. Se não o fizermos, esta situação nos conduzirá a uma sangrenta catástrofe. Nem as locomotivas dos aliados, nem a exportação de trigo, algodão, cobre, linho ou outros materiais dos quais temos enormes necessidades poderão salvar a população.

Em vez disso fica uma verdade: ainda que a ditadura de um partido constituísse um meio útil para combater o regime capitalista – o que duvido muito - , esta mesma ditadura seria totalmente nociva para a criação de uma ordem socialista. O trabalho, necessariamente, tem de constituir-se na base das forças locais, mas até agora, isto não ocorre nem é estimulado por nenhum lado. Em seu lugar se encontram, a todo instante, individualidades que desconhecem a vida real e cometem os maiores erros, ocasionando a morte de milhares de pessoas e arruinando regiões inteiras. Sem a participação das forças locais, sem o trabalho construtivo de baixo para cima, executado pelos trabalhadores e todos os cidadãos, a edificação de uma nova vida é impossível.

Uma obra semelhante poderia ser empreendida pelos sovietes, pelos conselhos locais. Mas a Rússia, devo enfatizar, é uma república soviética apenas no nome. A influência e o poder dos homens do partido, que são frequentemente estranhos ao comunismo – os devotos da ideia estão sobretudo instalados aí no centro – têm aniquilado a influência verdadeira e a força daquelas instituições que muito prometiam: os sovietes. Repito: não há mais sovietes na Rússia, mas somente comitês do partido que fazem e desfazem. E as suas organizações padecem de todos os males do funcionalismo.
Para sair da desordem atual a Rússia deve retomar o espírito criador das forças locais que, asseguro, são as únicas capazes de multiplicar os fatores de uma nova vida. Quando antes se compreender isto, melhor! As pessoas se disporão a aceitar mais facilmente as novas formas de organização social. Entretanto, se a situação atual se prolongar, a mesma palavra socialismo se converterá numa maldição, como ocorreu na França com a ideia igualitária durante os quarenta anos que seguiram ao governo dos jacobinos.”

Piotr Kropotkin – Dimitrov, 04 de março de 1920