FUNDAÇÃO Fahrenheit PALMARES: O EXPURGO BOLSONARISTA
DO ACERVO DA BIBLIOTECA
O Relatório
bolsonarista sobre a Biblioteca da Fundação Cultural Palmares, assinado por
Sérgio Camargo e Marco Frenette, dirigido a “todas as pessoas de bem” (seja lá
o que isso signifique para eles), é uma coleção de slogans
ultraconservadores, arbitrariedades e aberrações. O texto é revestido de um
espírito messiânico e patriótico (no sentido corrompido destes conceitos), e os
autores parecem imbuídos da missão elevada, a eles conferida pelo próprio Messias,
de purificação da Biblioteca e dos ideais da Fundação, contaminados desde a
origem, sugere o Relatório, pelo esquerdismo militante.
Depois de
uma busca policialesca no acervo da Biblioteca, no estilo distópico Fahrenheit
451, os inquisidores Sério Camargo e Marco Frenette decidiram pelo descarte
de cerca de 300 livros considerados impróprios à Fundação (Mas o expurgo deve
alcançar 9 mil títulos). As obras sequestradas abordam, entre outros temas, educação
sexual, história do banditismo, sexualidade, história do marxismo, estudos do
marxismo revolucionário e de técnicas de guerrilha. As manobras desonestas que fizeram para justificar
o sequestro das obras são de doer. Estudos importantes sobre educação sexual de
jovens e adolescentes foram caracterizados como “sexualização da infância”,
desconsiderando inclusive o contexto em que foram escritos, e um estudo originalíssimo
do Hobsbawm sobre o bandistimo social e rural, que prosperou em algumas partes
do mundo sob a ausência do estado, foi classificado como “bandidolatria”. Para
comprovar o “elogio ao banditismo”, destacam um trecho do livro, recortado
arbitrariamente. Na passagem, o historiador diz que o “banditismo é liberdade,
mas numa sociedade camponesa poucos podem ser livres. A maioria das pessoas
está presa aos grilhões da autoridade e do trabalho, um reforçando o outro”. Os
inquisidores, intelectualmente desonestos, não fazem nenhum esforço para
entender o emprego da noção de liberdade, numa sociedade rural tradicional que
beira a servidão. Estigmatizam os livros com adjetivos desqualificadores, sem o
menor esforço para entendê-los.
A
“interpretação” que fazem das obras, distorcida e mal-intencionada, serve
apenas para justificar suas posturas autoritárias e agradar ao chefe no Planalto.
A ignorância carola dos inquisidores censurou também o livro As Santas
Prostitutas, do antropólogo e tradicionalista gaúcho Antonio Augusto Fagundes,
sobre a devoção popular por santas não canônicas, que o povo decidiu cultuar. E
não poupou nem o passado distante. Sobrou também para a obra Ciranda dos
Libertinos, do Marquês de Sade, julgada como pornografia juvenil e adulta, sem
nenhuma contextualização. O julgamento deles é atemporal, olímpico, perpetrado
por uma moral que não pertence a este mundo.
Os livros
sequestrados da Biblioteca certamente não foram lidos pelos censores. Mapearam
os títulos, folhearam uma página ou outra, já convictos do que representavam, julgaram
e sentenciaram. É uma caça às bruxas, um atentado à memória da Fundação e um
desrespeito brutal à diversidade do conhecimento, comparável ao Index librorum prohibitorum, de
meados do século XVI, e às queimas de livros nos regimes
nazifascistas.
Estudantes
nazistas queimando livros de autores judeus. 10 de maio de 1933, em Berlim.
Ademais, se
lido com atenção, o Relatório não é sobre conteúdo dos livros, é sobre as
mentes perturbadas dos inquisidores. É uma manobra suja para se mostrarem
relevantes e alimentar o ódio ideológico pelo que desconhecem. É uma prestação
de contas para justificar suas nomeações.
O
argumento para encobrir a censura e a liberdade de pensamento, descabível de
todos os pontos de vista, é a divergência dos livros dos propósitos da
Fundação. A função da Fundação, segundo
o Relatório, é a “promoção da cultura negra e a valorização do negro como parte
inseparável do povo brasileiro”. O resto é “desvio da função”. O acervo da
Biblioteca não atendia a esta finalidade, diz o relatório. As obras descartadas
tratam de temas que não interessam à Fundação. Para a professora de História do
Livros, Ana Virgínia Pinheiro, não existe na literatura da Biblioteconomia qualquer
referência aos critérios se seleção adotados pela Fundação para justificar a
exclusão dos livros. O Relatório, alheio dos princípios bibliométricos que
devem orientar a política de desbaste de um acervo, carece de bases técnicas e
científicas.
Não resta
dúvida de que os censores têm um conceito limitadíssimo de Biblioteca e uma
intepretação mais limitada ainda dos propósitos das Fundação. Na verdade, o que
eles querem é uma Biblioteca domesticada, alinhada com as diretrizes do
bolsonarismo e das teses negacionistas do racismo, que tem sua gênese na noção
equivocada de “democracia racial”, que surgiu ainda no século XIX e se projetou
no século XX, e pintou e pinta o Brasil como uma democracia mestiça ou um
paraíso racial.
Numa Biblioteca
como a da Fundação cabem as obras de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes,
cabem todos os autores e obras que de alguma forma trataram do tema da
escravidão e da cultura no Brasil, não importando o espectro político. E por se
tratar de uma Biblioteca, aberta ao público, todos os temas são bem-vindos. A
história da “cultura negra” no Brasil dialoga com uma variedade de temas. Não
se limita à “cultura negra” e a “valorização do negro”.
Se o
presidente da Fundação acha que a biblioteca é “brutalmente parcial”, que tem
apenas uma linha, não descarte o que tem, acrescente o que julgue faltar. O acervo
da Biblioteca é amplo e diversificado porque diferentes grupos e tendências a
abasteceram ao longo dos anos. A Biblioteca não é particular, não é a estante
de livros do Sérgio Camargo. Como toda Biblioteca, ela é cumulativa e diversa.
Ela tem que contemplar os interesses do leitor conservador, do leitor de
esquerda, do leitor.
Recorte
seletivo do acervo da Biblioteca para caracterizar a “dominação marxista”.
Os autores
do Relatório falam em três décadas de “dominação marxista na Fundação”. Bem,
fazer o que se a direita nunca se interessou pela história da escravidão e pela
sorte dos negros e negou a existência de racismo no Brasil, como o próprio
Sérgio Camargo? A Fundação tem uma história que não pode ser apagada, gostem
dela ou não. Criada em 1988, às Vésperas do Centenário da Abolição da escravatura,
foi um marco das lutas do movimento negro no Brasil. A gênese na Fundação
articula-se às lutas históricas do movimento negro contra o racismo e pela
memória dos africanos no Brasil, e boa parte desta história está ligada aos
movimentos de esquerda das décadas 1950, 1960 e 1970, e aos intelectuais negros
progressistas, como Carlos Alves Moura, Lélia González, Abdias do Nascimento, Conceição
Evaristo, Francisco Lucrécio, Hamilton Cardoso (A lista é enorme).
O cidadão que
hoje preside a Fundação, que se define no Facebook como “negro de direita,
contrário ao vitimismo e ao politicamente correto”. O problema não é esse. Ser
de direita ou de esquerda é escolha de cada um. E ser crítico do vitimismo,
quando ele de fato existe, é uma virtude. Não é o caso do Camargo. Na verdade,
a julgar pelas declarações, ele é um polemista barato de rede social, imaturo e
negacionista tóxico. Gosta de se exibir e causar com frases de efeito
agressivas e xingamentos rasteiros. Destaco algumas declarações do seu
vomitório geral.
“No Brasil
de hoje Zumbi seria um bandido ou defensor de bandido, integrante do MST”.
“O
Dia da Consciência Negra "celebra" a escravização de mentes negras
pela esquerda. Precisa ser abolido!”
“Esses filhos da puta da esquerda não admitem negros de
direita. Vou colocar meta aqui para todos os diretores, cada um entregar um
esquerdista. Quem não entregar esquerdista vai sair. É o mínimo que vocês têm
que fazer.”
“Deviam dar
medalha a branco que meter preto militante na cadeia por crime de racismo”.
“Angela Davis é uma comunista
e mocreia assustadora”.
“Se você é africano e acha
que o Brasil é racista, a porta da rua é serventia da casa”.
Como levar a sério e aceitar no comando
da Fundação Palmares um homem que, contra todas as evidências, nega o racismo
no Brasil e defende a ordem escravocrata? Além disso, o sujeito é um macartista
enfurecido que obriga os diretores da Fundação e “entregar um esquerdista”, sob
pena de serem demitidos.
Para Camargo, a “escravidão era um
negócio lucrativo tanto para os africanos que escravizavam, quanto para os
europeus que traficavam escravos”. O sujeito diz isso como se fosse a novidade
das novidades, como se estivesse revelando alguma coisa que mudaria a visão que
temos sobre a escravidão. Qualquer um que tenha lido Joseph Conrad, Manolo
Florentino ou Jacob Gorender, sabe que o tráfico era vantajoso, tanto África
quanto nas Américas, tanto para os traficantes (comércio) quanto para os
régulos africanos (escambo). Os historiadores quando sustentam esta tese,
embora divirjam em alguns pontos, pretendem mostrar que o tráfico durou tanto
tempo justamente porque o comércio era bastante vantajoso nas duas margens do
Atlântico. Mas o que o Camargo pretende? Relativizar a escravidão comprometendo
os próprios africanos com o comércio de gentes? Se ele se dispusesse a ler os
livros e os autores que demoniza talvez não fosse tão leviano nas afirmações.
Sua intenção é expurgar a Fundação de tudo o
que não agrada sua sensibilidade “conservadora e de direita”. Camargo quer que
a Fundação tenha a cara dele. Se comporta como dono. E na condição de novo dono
está fazendo uma faxina para descartar e jogar fora tudo o que julga inadequado.
A faxina começou pela retirada de nomes de Benedita da Silva, Madame Satã,
Marina Silva, Milton Nascimento, Zezé Motta, Gilberto Gil, Elza Soares,
Martinho da Vila (27 no total), homenageados pela Fundação. Pessoas que, quer ele
queira ou não, tiveram e tem um papel importante na Fundação e na história dos
movimentos negros.
A intenção
indisfarçável dos autores do Relatório é apagar (queimar) a história de lutas
da Fundação e sua vinculação ao pensamento progressista brasileiro, e reduzi-la
a um apêndice domesticado do bolsonarismo. Querem uma Fundação com a sua cara.
Ray Douglas Bradbury, numa entrevista à Playboy em 1996, comentando
sobre sua obra Fahrenheit 451, disse que a “ficção científica é uma ótima maneira de fingir que
você está escrevendo sobre o futuro quando, na verdade, você está atacando o
passado recente e o presente.” A “queima” dos livros da Fundação Palmares
conseguiu o feito de reunir no presente o pior dos regimes totalitários do
passado e abreviar o caminho para o futuro distópico, imaginado por Bradbury. No
romance, Guy Montag é um bombeiro, agente do Estado, desviado de sua ocupação
original, cuja única função é procurar e queimar livros.
Sérgio
Camargo, crítico da supressão das liberdades nos regimes comunistas, age do
mesmo modo. Numa atitude totalitária, sequestra livros e os queima,
metaforicamente, no altar do ultraconservadorismo. Sérgio Camargo é o Guy Montag do pesadelo
distópico bolsonarista que rasga e dilacera o tecido social do Brasil.