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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

PROFESSOR LUDOVICO ENSINA A TEORIA MARXISTA DO IMPERIALISMO NUM CONTEXTO ANTICOMUNISTA.



PROFESSOR LUDOVICO ENSINA A TEORIA MARXISTA DO IMPERIALISMO NUM CONTEXTO ANTICOMUNISTA.

A releitura das histórias em quadrinhos das décadas de 1960 e 1970 nos reserva grandes surpresas. Estava lendo parte da Enciclopédia Disney, de 1973, volume 8, para incrementar uma aula sobre a guerra fria quando me deparei com um episódio que não havia me chamado tanto a atenção quando li pela primeira vez. 

O que poderia haver em comum entre Karl Marx, Rosa Luxemburg, Vladimir Ilyich Ulyanov (Lênin) e o professor Ludovico Von Pato? A resposta parece óbvia: nada. O que poderia unir o mundo dos quadrinhos de Walt Disney e a teoria marxista? A resposta continua a mesma. Ludovico é o estranho no ninho. 

Mas por mais estranho que possa parecer, um acontecimento da indústria do entretenimento os aproximou. Uma palavra vai nos ajudar a descobrir a improvável relação entre Ludovico e a teoria marxista: IMPERIALISMO.

1.      O Imperialismo segundo Lênin (ou não).


Alguns conceitos tornam-se maiores que seus criadores e de tanto circular pelo mundo distanciam-se de suas origens e passam a ter uma existência autônoma. Tornam-se entidades abstratas e desgarradas que vagam pelo mundo das ideias a procura de uma superfície que as acolha. É o caso do conceito de imperialismo desenvolvido por Lênin. Diversos livros, textos e revistas (superfícies acolhedoras) que tratam do tema fazem uso da teoria leninista sem necessariamente reconhecer a paternidade. 

Apesar da noção de imperialismo estar associada ao nome de Lênin, ele pouco contribuiu para o desenvolvimento da teoria. Autores como John Hobson, Rosa Luxemburg e Rudolph Hilferding foram bem mais importantes. As teses de Hilferding sobre os bancos, que de adjuntos do processo produtivo passaram a ocupar o centro do capitalismo, rapidamente ganharam adeptos marxistas de peso e foram aperfeiçoadas por autores como Kautsky, Bukharin e Lênin. Qual era a teoria de Hilferding? Os bancos detinham o controle das fontes de crédito e, por esta razão, tornaram-se capazes de determinar o desenvolvimento industrial e promover fusões e monopólios, sobre os quais exerciam forte domínio. Progressivamente foram ocupando o lugar antes ocupado pelos grandes capitalistas. O capitalismo, antes definido como monopolista, avança então a um novo estágio denominado capitalismo financeiro (“capital controlado pelos bancos e utilizado pelos industriais”). Os bancos buscavam taxas de lucros cada vez mais elevadas sobre o seu capital. A tendência ao declínio das taxas na Europa levou o capital financeiro a procurar no exterior melhores oportunidades para aplicação do capital excedente. Nascia assim o imperialismo.

As ideias de Hilferding tornaram-se a nova ortodoxia no interior do marxismo. Lênin, a despeito das ligeiras críticas a obra, baseou-se quase inteiramente em Hilferding para apresentar a sua análise sobre o fenômeno. Em 1916 publicou “Imperialismo, o estágio mais avançado do capitalismo”. Em poucas linhas sintetizou sua abordagem, que pode ser resumida nos seguintes pontos:

“1. A concentração da produção e do capital desenvolveu-se num grau tão elevado que criou monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica. 2. A fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, com base nesse “capital financeiro”, de uma oligarquia financeira. 3. A exportação de capital, enquanto distinta da exportação de mercadorias, adquire importância excepcional. 4. A formação de consórcios capitalistas monopolistas internacionais que partilham entre si o mundo. 5. A divisão territorial de todo o mundo entre as maiores potências capitalistas está completada.”

A dívida com Hilferding é enorme. Mas porque Lênin tornou-se a grande autoridade quando o assunto é imperialismo, e não Hilferding? Duas linhas argumentativas ajudam a entender:

1.      Se Lênin não foi muito original na elaboração da teoria, ele foi bastante convincente na exposição do tema. Teórico hábil e com raro talento para a síntese e para a polêmica, soube extrair dos outros autores o essencial e formular uma teoria bastante eficaz. O livro de Lênin não tinha o formato e nem a concepção de um tratado científico (Está disponível na net para quem quiser dar uma olhada). O objetivo era prático. Lênin não dissociava a ação da teoria. Visava educar os marxistas para a compreensão do imperialismo e sobre as atitudes teóricas e táticas a serem tomadas em relação ao fenômeno.

2.      Os conflitos no interior do movimento socialista internacional apagaram o brilho de autores como Hilferding e Kautsky, denunciados pela ortodoxia como “direitistas” e “revisionistas”. Suas obras foram deixadas de lado e foram afastadas do centro dos debates. A obra de Lênin ganhou espaço e tornou-se a visão dominante sobre o imperialismo. O sucesso da revolução bolchevique destacaria ainda mais a obra de Lênin. Nas décadas seguintes o tempo apagou a memória dos conflitos e a obra de Lênin se impôs como verdadeira doutrina, como a última palavra a determinar o rumo dos debates mundo a fora.

Com Lênin a teoria do imperialismo deixou de ser uma teoria e transformou-se numa doutrina. A sua tese de que o imperialismo era um estágio necessário do desenvolvimento capitalista transformou-se num oráculo. Hilferding e Kautsky (ligados a social democracia alemã), por exemplo, não concordavam com esta tese. Mas não era um bom momento para enfrentar Lênin teoricamente. As discordâncias, teóricas e políticas, custaram-lhes caro. Atraíram para si os rótulos desqualificadores de “direitistas” e “revisionistas” (Qualquer semelhança com as estratégias atuais de desqualificação da companheirada – se não concorda conosco é direitista - não é mera coincidência, é uma questão de método). Lênin era a última palavra sobre o tema. Outra interpretação que ousasse desviar da doutrina era vista como heresia teórica. Dá desqualificação teórica aos expurgos praticados por Stálin foi um pulo. Bukharin, que teve importante contribuição para a evolução da teoria, foi expurgado e eliminado dos debates. 

Mas eis que quarenta anos depois, onde menos se esperava, surgiu um novo “teórico” do imperialismo. Criado em ambiente liberal, imperialista para alguns, o professor Ludovico, tio do pato Donald, foi beber no marxismo para ensinar aos seus sobrinhos as lições do imperialismo. Se algumas das teses de Hilferding e Kautsky foram vistas como heresias, o que dizer da apropriação da teoria leninista pela Walt Disney?

2.      O Imperialismo segundo Ludovico.



O camarada Lênin não podia imaginar que um dia a sua teoria do imperialismo, inspirada em algumas heresias camaradas, seria utilizada pela corporação de entretenimento Walt Disney para educar o público infanto-juvenil dentro dos valores liberais. E mais, não lhe dariam os créditos.

Isso de fato aconteceu em 1973 na Enciclopédia Disney, voltada para as áreas da história, geologia, astrônoma, botânica. A edição de luxo foi lançada aqui no Brasil também (A obra é rara, mas pode ser encontrada na Estante Virtual ou no Mercado Livre). O lançamento dos produtos Disney no Brasil contava com a parceria da Editora Abril, que desde 1950 havia comprado os diretos para lançar por aqui a revista do Pato Donald. O mercado editorial brasileiro estava em expansão na década de 1970, facilitado pelas políticas públicas e incentivos governamentais e pela evolução das tecnologias de impressão, como o off-set. Até aí, tudo bem. As ligações entre a Editora Abril, a Walt Disney e o regime militar são presumíveis. Mas o uso da teoria marxista do imperialismo numa Enciclopédia norte americana destinada ao público infanto-juvenil, impressa no Brasil em plena ditadura?

Vamos tentar entender. Na edição do Almanaque de 1973, pato Donald, tio Patinhas, Margarida e os sobrinhos Luizinho, Huguinho e Zezinho, viajaram a França em busca de um misterioso frasco, esquecido num antigo campo de batalha da primeira guerra mundial, que conteria um valioso segredo: a fórmula secreta de um inseticida. Tio Patinhas queria a fórmula para desbancar seus concorrentes. Em meio às buscas surge o tema da guerra. O professor Ludovico aproveita o ensejo para compartilhar seus vastos conhecimentos. Diante de um público atento o professor se esforça para explicar as causas da primeira guerra:

“- Por volta de 1870, no Ocidente, com a utilização do petróleo e da energia elétrica, a indústria desenvolveu-se como nunca até então. Foi a chamada Segunda Revolução Industrial. Os países adiantados passaram a produzir muito mais mercadorias do que podiam consumir.
– E aí, então... – ajudou Margarida.
– Aí, os industriais pensaram em vender seus produtos excedentes para outros países civilizados, como vinham fazendo desde o começo da Revolução Industrial. Só que agora a situação era outra. As indústrias haviam se expandido muito em toda Europa e nos Estados Unidos. Cada um daqueles países tinha suas próprias fábricas, e seus estoquezinhos encalhados. Nações como a Alemanha e os Estados Unidos lançavam impostos pesados sobre a importação de produtos estrangeiros, para vender melhor os seus próprios. E havia ainda outro excedente, outra coisa sobrando. Imaginem só o que era?
– O... o... – gaguejou Margarida apanhada de surpresa...
– Capital! Dinheiro! – exclamou Ludovico entusiasmado. – Havia dinheiro sobrando na Europa, graças ao aumento da produção das empresas Os lucros eram enormes. E este capital precisava ser aplicado, senão iria perdendo o valor.”

Professor Ludovico transforma-se num verdadeiro marxista para explicar as causas da guerra. Explora as relações entre a revolução industrial e os excedentes, e arremata com a vital necessidade dos capitalistas de reinvestir o capital em outras áreas do planeta para não perder o valor. Qualquer manual do pensamento marxista estabeleceria estas relações, mas a Enciclopédia Disney? Mas a aula de história fica ainda mais curiosa quando Ludovico aborda os interesses capitalistas - as contradições do capitalismo diria um bom marxista – e o surgimento do imperialismo:

“– Então era isso? – admirou-se Zezinho. – Mas não havia escolas a construir, hospitais, estradas? Não podiam aumentar os salários?
– É claro que havia muita coisa a fazer pelo bem de todos. Mas não eram investimentos rentáveis. Que empresário ia querer se arruinar. Por mais bem intencionado que fosse?
– E que fizeram, então?
– Tanto para vender excedentes, como para investir os capitais a solução foi obter mais territórios na África e na Ásia. Conquistar colônias trazia duas vantagens: elas possuíam ferro, cobre, petróleo, manganês, borracha, açúcar, algodão, tudo que a indústria precisava, nos países adiantados, para manter a produção em larga escala. Por outro lado, aquelas regiões atrasadas poderiam ser obrigadas a comprar todos os excedentes da produção européia; era só forçá-las um pouquinho, submetendo-as à administração européia. Ai elas teriam que comprar, por bem ou por mal. Quem é que resistia ao poder dos europeus, naquela época?
– Interessantíssimo! – exclamou Margarida...
– E o capital a investir? – perguntou Luisinho. – Como é que as colônias entravam nisto?
– Pois esta era a peça mais importante deste novo sistema colonial, que passou a ser conhecido como "imperialismo”. Em primeiro lugar, a própria exploração de minas e plantações nas colônias exigia que fossem construídas estradas de ferro para transportar as mercadorias, e eletricidade, gás, rodovias. etc. E depois, à medida que iam comprando produtos da indústria européia os países coloniais precisavam criar serviços básicos para poder usar esses artigos.
- Quem comprou uma lâmpada elétrica precisa de eletricidade para acendê-la não é isso? - sugeriu Zezinho.
- Exatamente. Aí vinha o industrial europeu, oferecia-se para construir a usina de eletricidade, construía, cobrava a eletricidade e levava o lucro para casa.”

Ludovico parece versado e interado das teorias marxistas sobre o imperialismo. Aparece na sua fala a teoria de Rosa Luxemburg sobre o papel das colônias na absorção dos excedentes europeus combinada as teses de Lênin e de Marx, respectivamente sobre a concorrência e a necessidade de reinvestimento dos lucros para garantir a acumulação de capitais.

Lênin escreveu para educar os marxistas, no contexto da primeira guerra e da revolução bolchevique. Ludovico, com o mesmo espírito prático de Lênin, ensinava para educar seus sobrinhos, no contexto da guerra fria e da luta anticomunista. Mas porque educar os sobrinhos com teses marxistas? Não poderia usar um bom liberal, como Raymond Aron, que tem uma abordagem do imperialismo mais voltada para a política e mais próxima do realismo político norte-americano? E como explicar a Editora Abril bancando uma publicação como esta voltada para um amplo público infantil num contexto político marcado, no Brasil, por um anticomunismo feroz?

Para quem esta levando este texto na esportiva, vamos às especulações? 

1.      Quem escreveu o episódio para a Enciclopédia não tinha noção dos autores nem da trajetória das teorias. Usou um Manuel qualquer sobre a primeira guerra, daqueles que não identificam autores, e adaptou à sua história. Tudo não passou de um tremendo descuido editorial da Disney, fruto da total ignorância sobre as teorias do imperialismo.

2.      O autor da história tinha conhecimento da origem marxista das teorias. Neste caso, como a teoria era de domínio público, usou sem precisar apresentar as referências. Afinal, apesar da origem, a teoria é convincente. De qualquer maneira, uma coisa é certa, a teoria do imperialismo, sobretudo a de Lênin, tornou-se tão popular que se descolou da figura do seu criador. Uma teoria convincente sobre as origens da guerra, de uma guerra distante, cuja filiação marxista não estava clara, que não tem maiores implicações nas relações internacionais da guerra fria, pôde ser usada num veículo de orientação liberal sem aparentar contradição.

Poderia arriscar uma ligação entre a Disney e o engajamento norte americano da luta pela descolonização de Angola, entre 1974 e 76. Mas não seria defensável. Não creio que houvesse, neste momento, um entrelaçamento tão forte e criativo entre a política externa americana e a Disney. E também porque não pretendo transformar Ludovico num agente americano.

E a Editora Abril? Essa eu deixo para a imaginação de vocês...

3.      A Lição de Ludovico.

Se me permitem, diria a que lição mais valiosa de Ludovico não foi para os sobrinhos. Sem ter a intenção o professor nos deu uma grande lição. Por vezes, a teoria se sobrepõe aos fenômenos que procura compreender e se confunde com eles. A teoria leninista deixou de ser uma interpretação possível do fenômeno, entre tantas outras, para se transformar no próprio fenômeno. Este é o momento em que a teoria converte-se em teologia. É mais ou menos o que acontece com um determinado produto e uma marca, quando a marca se confunde com o produto na cabeça dos consumidores. O caso da esponja de aço e a marca Bombril é o melhor exemplo que conheço. Bombril deixou de ser uma marca, Bombril é a própria esponja de aço. O uso da teoria de Lênin na Enciclopédia Disney é revelador. A teoria é de tal forma identificada com o fenômeno que deixou de ser uma teoria. Ludovico pôde dispor dela como quem vai ao supermercado comprar Bombril. A teoria virou mercadoria (no sentido ordinário da expressão).




sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

HANNAH ARENDT EM CUBA.



HANNAH ARENDT EM CUBA.

“Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos mas atraentes”.

Esta é a imagem com a qual Winston Smith se deparou quando adentrou o saguão da Mansão Vitória para fugir do vento que castigava a tarde de abril. Estamos apenas no segundo parágrafo de 1984. Os cartazes espalhados pela cidade, como que a vigiar a vida e o vai e vem dos cidadãos, acompanharão Winston ao longo de toda a narrativa de Orwell. Winston era funcionário do Ministério da Verdade e sua função era falsificar documentos públicos para facilitar a propaganda do governo.

“(...) salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuram os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz rasgado num canto, drapejava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC (socialismo inglês).”

Não havia como fugir dos cartazes e do olhar paternal e autoritário do BIG BROTHER. Eles estavam por toda parte, nos prédios, nas ruas, como que a dizer o caminho a ser seguido. 


Cuba é o país dos cartazes e dos outdoors. A presença das placas modulares nos espaços públicos é onipresente e massacrante. Elas estão por toda parte a exibir a propaganda oficial do governo e a martelar na cabeça dos cubanos o blá blá blá ideológico da revolução. Os outdoors contam a história da revolução e relembram, a cada esquina, os feitos heroicos dos salvadores da pátria. Imagino o efeito disso sobre quem nasce, cresce e envelhece sob esta forma de doutrinação política. Pode levar ao fanatismo (os autômatos), a indignação (os dissidentes) ou a total indiferença (Creio que muita gente já nem vê mais os outdoors. De tão presentes tornaram-se invisíveis).


Não vamos, por favor, comparar a propaganda cubana com a publicidade, igualmente massacrante, com a qual convivemos. São coisas diferentes, embora a propaganda dos regimes totalitários tenha se inspirado, nas suas origens, na publicidade norte americana. Adolf Hitler reconheceu isso no seu livro famoso. Hannah Arendt confirmou. Mas não vamos justificar uma coisa com outra. A publicidade é, em certo sentido, exagerada, mas nós temos escolhas, opções. Podemos inclusive denunciar (No Brasil é só entrar em contato com o CONAR). A propaganda totalitária não admite alternativas, muito menos críticas. Ela martela uma verdade única. É a pedagogia “revolucionária”, no caso dos cartazes e outdoors, entrando pelos olhos.


Mas qual a razão de uma propaganda insistente e onipresente, que lembra diuturnamente aos cubanos a importância da revolução, as artimanhas e a maldade do inimigo e a necessidade de manter a coesão social? Hannah Arendt nos ajuda a entender: “Por existirem em um mundo que não é totalitário, os movimentos totalitários são forçados a recorrer a propaganda. Mas essa propaganda é sempre dirigida a um público de fora, sejam as camadas não-totalitárias da população do próprio país, sejam os países não-totalitários do exterior. (...) Em outras palavras a propaganda é um instrumento do totalitarismo, possivelmente o mais importante, para enfrentar o mundo não-totalitário.”


Cuba não é um regime totalitário como foram o stalinismo e o nazismo. O terror, elemento central na definição do totalitarismo, não está presente em Cuba. É certo que ele foi empregado nos primeiros anos da revolução, com o paredón. Hoje não poderíamos falar em terror, mas numa guerra psicológica, numa pressão sobre os indivíduos por meio de um estado provedor, policial e vigilante. Entretanto, alguns elementos do totalitarismo são visíveis. Cuba é uma sociedade relativamente fechada, governada pelo mesmo grupo há cinquenta anos, que controla o fluxo e o contato com o exterior, que exerce controle sobre os meios de comunicação e a informação, que não admite oposição política e mantém o “povo” sob um regime intensivo de educação política por meio da propaganda oficial. Embora existam eleições e a divisão dos poderes, as instituições são decorativas e ficam à margem do poder de fato. Uma sociedade com estas características (é assim que vejo Cuba) é uma sociedade que, com o devido cuidado, pode ser descrita como totalitária. Os traços mais evidentes do totalitarismo, insisto, estão relacionados justamente a forma e aos temas da propaganda oficial, cuja finalidade é exaltar a figura do líder e engrandecer a obra da revolução.



Hannah Arendt nos ensina que a finalidade da propaganda política é conquistar, dominar e conduzir as “massas”. Claro que precisamos sempre tomar cuidado com estes conceitos, sobretudo se levarmos em consideração o momento em que foram criados. Os conceitos devem ser relativizados, sobretudo a noção de “massa”, usada aqui não para definir uma coletividade, mas para pensar a perspectiva do estado e suas ambições totalitárias. Não vamos jogar as categorias usadas por Hannah sobre Cuba e achar que está tudo resolvido. Não. Hannah é uma companheira de viagem. Observar Cuba com as intuições da filósofa é um livre exercício interpretativo. 

Por meio da propaganda cria-se um mundo a parte, ideal, com sua própria lógica e coerência, que se confronta com o mundo externo. Em comparação com o resto do mundo a propaganda cubana destaca as vantagens de se viver neste paraíso social criado pela revolução.


Os temas recorrentes que destacaria na propaganda cubana são:

Culto à personalidade: Fidel é a alma da propaganda cubana. As referências diretas e indiretas ao chefe dominam a paisagem oficial. Fidel é o líder, o caminho, a verdade, é o espírito invencível da revolução. Sua figura nos cartazes e outdoors impõe-se aos cubanos como o guia infalível que conduz seu povo no caminho da vitória.

O exemplo do Che: Che é o garoto propaganda de Cuba. Ele encarna o exemplo de coragem e lealdade aos princípios, que se espera dos cubanos. Afinal, Che morreu pela causa. É o ideal do revolucionário que deve ser cultivado e imitado. É uma espécie de santo protetor do regime.

O Bloqueio americano: As menções ao bloqueio estão por toda parte. Cuba só não é melhor do que está devido ao famigerado bloqueio. As carências e as deficiências do país são atribuídas a ele. É o perfeito bode expiatório do regime. A insistência da propaganda anti-bloqueio lembra o tempo todo aos cubanos do inimigo cruel que ronda a ilha a espera de uma brecha para destruir a obra da revolução.

Os feitos da revolução: Graças à revolução os cubanos vivem num país sem injustiças sociais, sem miséria e sem analfabetismo (mazelas do mundo capitalista). 

Winston sentiria certa familiaridade se percorresse as ruas de Havana.


De acordo com os estudiosos da propaganda em Cuba, a técnica de comunicação com as “massas” é controlada pelo partido, e visa a edificação do socialismo e a educação do novo homem. Além disso, procura despertar nos cubanos o orgulho pela singularidade do país e das derrotas que impôs ao imperialismo.

O pensamento cubano sobre publicidade e propaganda, embora busque um espaço de reflexão, segue a linha ditada pelo regime. Mirta Muñiz, o grande nome da área em Cuba, escreveu em seu livro “La Publicidad en Cuba: mito y realidad” que a propaganda em seu país deve ser analisada a luz do marxismo-leninismo e observando as condições concretas do sistema social cubano. Esta é a armadura teórica inexpugnável que envolve e dita o conteúdo da propaganda. Mirta já era da área da publicidade antes de 1959. Depois da revolução aderiu ao novo regime. Nos anos 50 trabalhava para a agência internacional McCann-Erickson e fez cursos em Nova York. Como ela mesma diz: “aprendimos de la técnica de los Estados Unidos, pero producíamos cosas muy particulares cubanas”.
O caso de Mirta espelha, de alguma maneira, a trajetória da publicidade e da propaganda em Cuba antes e depois da revolução. Deixemos que ela nos conte:

“En lo que se refiere a la publicidad, su desenvolvimiento en Cuba no ha sido fácil tras el triunfo revolucionario de enero de 1959. Cuando en los años sesenta hubo necesidad de intervenir las agencias de publicidad (yo trabajaba en la transnacional publicitaria McCann-Erickson, relacionada con anuncios como los de la Coca Cola), los escasos renglones de productos y servicios con que contábamos no permitían satisfacer las crecientes demandas de la población. Todo lo que se producía, se consumía. No existía excedente alguno. Por tanto, la publicidad realmente no tenía razón de ser; al igual que tampoco existía mucho espacio para ella.”


Com o “triunfo” da revolução a publicidade foi desaparecendo e, na razão inversa, a propaganda ideológica foi assumindo um papel cada vez mais importante. Mirta justifica isto e aponta qual é, na sua percepção, a finalidade da propaganda:

“A mi entender la propaganda tiene dos grandes objetivos: uno, doctrinario; y otro, político. Para cumplirlos, habría que agruparlos en tres grandes direcciones. Una, la estabilidad política, o lo que es igual: la comunicación en función de la estabilidad política para cumplir un amplio espectro en la vida del país. La otra dirección es el desarrollo económico y social. En una sociedad como la nuestra, cuyo objetivo fundamental es el desarrollo en general, hemos utilizado la comunicación de modo que ella pueda contribuir a que los avances en todos los órdenes sean más rápidos y abarcadores en cualquier rama o sector. Y como último aspecto está la solidaridad. En Cuba constituye una vertiente de la propaganda, que antes del triunfo de la Revolución, era inexistente. Nació durante la década del sesenta del siglo pasado; y a ella se sumaron no sólo políticos, sino también historiadores, periodistas, diseñadores, fotógrafos.”

A publicitária e propagandista é cuidadosa com as palavras. Será que leu Hannah Arendt? Lendo ou não, ela embarcou na revolução, vestiu a camisa do regime, mas busca uma margem de autonomia para pensar a publicidade para além das exigências do socialismo e diferenciar a publicidade da propaganda revolucionária (Tema do livro que está escrevendo: Acciones y contradicciones de un proceso. Propaganda y publicidad en Cuba”. Não sei se já publicou). Tarefa difícil.

De um modo geral, a reflexão sobre a propaganda em Cuba é doutrinária e procura diferenciar a “propaganda revolucionária” – que tem a verdade como princípio fundamental em função de um homem harmônico e integral - da “propaganda imperialista” – que é sinônimo de mentira e manipulação - conforme podemos ler em diversos textos de autores cubanos. A propaganda cubana é revolucionária porque tem como objetivo levar às “massas” as novas ideias e uma nova maneira de pensar, com vistas à construção do socialismo. E também porque combate a ideologia do inimigo em todas as suas manifestações. (Ver “La propaganda política. Surgimiento y desarollo em Cuba”, de Miguel Guzmán Rojas). Bem, Stalin, que tinha seu retrato pregado em toda parte, inclusive em livros de receita de bolo, também considerava a propaganda soviética revolucionária. Eu fico com Hannah Arendt. Sempre que leio suas considerações sobre a propaganda totalitária imediatamente penso em Cuba.

Se um dia for a Cuba, convide Hannah para ir junto. Andar pelas ruas e pelas estradas é uma aula de propaganda ideológica. Na companhia de Hannah, então, torna-se um fascinante exercício de interpretação da relação do regime com o “povo”. Da relação do líder que acredita interpretar os desejos e as necessidades de seu “povo” com o “povo” que vê a imagem do seu líder obsessivamente pregada diante de seus olhos. Fidel acredita que é um país. A propaganda torna isso verdade.