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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

GEORGE ROMERO E A SECULARIZAÇÃO DOS ZUMBIS.



GEORGE ROMERO E A SECULARIZAÇÃO DOS ZUMBIS.



“O único mito moderno é o dos zumbis.”

(Deleuze e Guatarri).



 As narrativas sobre mortos que retornam à vida povoam o imaginário dos povos desde a antiguidade. Nas mitologias antigas, passando pela literatura romântica, pelo neo gótico europeu e, por fim, chegando ao cinema, os mortos-vivos pontuam a trajetória histórica dos vivos traduzindo suas crenças e sublinhando seus excessos e desmedidas.
Não vou fazer um inventário das narrativas sobre mortos-vivos, muito menos tentar buscar uma origem. São muitas as variações, os nomes e os significados que o fenômeno assumiu em diferentes condições históricas. Os mortos-vivos que nos acostumamos a ver nos filmes nas últimas quatro décadas, tirando o fato de que retornaram da morte, não guardam qualquer semelhança com os congêneres do passado. Não há uma continuidade que possa ser desfiada e percorrida, ligando os zumbis de hoje com os de outros tempos.


Meu interesse concentra-se nos chamados zumbis modernos, isto é, na figura do zumbi construída pelas narrativas cinematográficas da década de 1960. Acompanho os filmes e a trajetória zumbi no cinema, e suas variações fenomenológicas, desde o final da década de 1970. “Night of the Living Dead” marcou minha adolescência e despertou meu interesse pelo que poderíamos chamar de estética e filosofia zumbi. Perdi a conta de quantas vezes revi o filme. E a cada vez que revejo descubro nuances, diálogos ou um ângulo que ainda não tinha percebido. Que grande filme!


Os Zumbis modernos são uma alegoria política. Não é terror pelo terror e as explicações sobre suas possíveis origens não circulam pela esfera do sobrenatural. Desde a década de 1960, estas criaturas assustadoras são usadas no cinema como uma poderosa metáfora crítica originária do mundo anglo-americano para apontar, por um lado, os excessos das sociedades capitalistas e da sociedade de (hiper)consumo e, por outro, chamar a atenção para as lutas por direitos civis. Já se tentou ver nos filmes de zumbi a alienação do proletariado, mas aí já é uma forçada de barra violenta e uma ideologização excessiva dos mortos-vivos. 
George Romero é sem duvida o grande inventor da estética e da temática zumbi como nós a conhecemos hoje. Entretanto, os zumbis despertam a imaginação cinematográfica, pelo menos, desde a década de 1930.

Narrativas Zumbis Antes de 1968.
Os filmes sobre mortos-vivos realizados antes de 1968 tinham duas diferenças básicas em relação aos filmes pós 68: havia uma explicação para o fenômeno e as criaturas não comiam gente. Um breve retorno a estas narrativas anteriores a década de 1960 visa tão somente enfatizar a ruptura promovida pelos filmes de George Romero. 



“White Zombie”, de 1932, dirigido por Victor Halperin, é um dos filmes mais representativos da época. Resumidamente, pessoas eram transformadas em zumbis após ingerirem uma poção mágica manipulada por um feiticeiro vodu. No filme, um casal americano viaja para o Haiti para celebrar o casamento. A noiva (Madeleine) é objeto da cobiça de um homem (Beaumont) que contrata os serviços de um feiticeiro para possuí-la. Bela Lugosi interpreta o feiticeiro Legendre que, com filtros mágicos, reanima os mortos para fazê-los trabalhar na sua fábrica. O feitiço vodu é feito com um cachecol de Madeleine. O plano é matar a moça, reanimá-la e entrega-la a Beaumont. Alguma coisa sai errada e ela volta como uma zumbi, uma “zumbi branca” incapaz de manifestar qualquer tipo de sentimento. As criaturas criadas por Legendre, diferentemente dos assustadores e vorazes zumbis da era Romero, eram corpos dóceis, adormecidos e domesticados, não pela disciplina fabril, mas pelos feitiços do mago. Não ofereciam perigo aos vivos. A representação do zumbi estava associada a uma visão folclórica das religiões afro-caribenhas e os feiticeiros em geral eram haitianos. Em outros casos explorava-se a mitologia egípcia. No filme inglês “O ressuscitado” (“The Ghoul”), dirigido por T. Hays Hunter em 1933, um egiptólogo, interpretado por Boris Karloff, dedica sua vida à busca da chave para a imortalidade. Seu plano não dá certo e ele volta à vida como um zumbi para amaldiçoar aqueles que violaram sua tumba. (Os dois filmes estão disponíveis no youTube). 


“The Serpent and the Raimbow” (“A maldição dos mortos-vivos”), dirigido por Wes Craven em 1988, retomou esta abordagem ao tratar do tema pelo viés da magia e do sobrenatural. Bill Pulman interpreta um antropólogo norte-americano que vai ao Haiti estudar casos de mortos que retornam a vida e se vê envolvido numa trama sinistra de magia vodu. 


Nas décadas de 1950 e 1960 a figura do zumbi foi se afastando da representação mágico-religiosa e assumindo novas feições. O termo zumbi assumiu diferentes significados e passou a designar uma variedade de criaturas ameaçadoras. No seriado americano “Zombies of the Stratophere”, de 1952, os zumbis eram invasores marcianos com traços humanoides. Para viveram mais perto do sol e garantirem a sobrevivência do seu ecossistema, os marcianos pretendiam trocar a órbita de Marte pela da Terra. O plano dos marcianos consistia em usar uma bomba de hidrogênio de Teller-Ulam para afastar a terra para longe do sol. 


Em “Zombies of Mora-Tau”, de 1957, mergulhadores sob o comando de um milionário americano tentam resgatar diamantes nos destroços de um navio afundado na costa africana. Os diamantes, no entanto, são protegidos pela tripulação do velho navio transformada em mortos-vivos para proteger a preciosa carga até que a maldição se desfaça. 



Jerry Warren, no filme “Teenage Zombies” (1959), misturou ficção científica e conspiração internacional. Quatro jovens americanos encontram por acaso uma ilha controlada por um cientista. Patrocinado por agentes estrangeiros o cientista (Dr. Myra) pretendia transformar os Estados Unidos numa nação zumbi. Os garotos são presos em gaiolas e submetidos aos efeitos de drogas hipnóticas. Depois de escaparem recebem como recompensa um prêmio pela descoberta da ilha e encontram-se com o presidente dos Estados Unidos. 

No filme “The Horror of Party Beach”, de 1964, monstros criados a partir do lixo tóxico e lama radioativa, metade peixe metade homem, aterrorizam e ameaçam matar grupos de garotos que se divertem numa festa na praia. 


Apesar da salada de monstros, a designação zumbi apontava para os perigos que cercavam o mundo, e os Estados Unidos, na imaginação cinematográfica americana naquele contexto (Estabelecer algumas conexões entre os zumbis, os esquemas de financiamento dos filmes e a guerra fria oportunizaria ângulos inéditos para estudar aquele período). Alguns especialistas consideram estas variações da figura do zumbi como uma transição para o que se convencionou chamar de zumbi moderno. Não partilho deste ponto de vista. Os mortos-vivos dos anos 30 e 40, os dos anos 50 e 60 e os pós 68 são três formas distintas de representação dos zumbis ligadas as questões políticas, sociais e estéticas das respectivas época. A ideia de uma transição é duplamente infeliz: (a) pulveriza a singularidade dos filmes das décadas de 50 e 60 ao considerá-los simplesmente como passagem entre duas formas definidas de representação; (b) comporta um que de previsibilidade histórica que, francamente, não existia.



A Laicização dos Zumbis.


Coube a George Romero a laicização dos zumbis no cinema e a ruptura com a representação mágico-religiosa. Embora “A Epidemia dos Zumbis” (“Plague of the Zombies”), de 1966, já os mostre de outra maneira, foi “Night of the Living Dead”, dirigido por Romero em 1968 que criou a versão moderna dos zumbis. “A Epidemia de Zumbis”, dirigida pelo inglês John Gilling, foi ambientada num povoado inglês na distante década de 1860. Pela mão de George Romero os mortos-vivos foram trazidos definitivamente para o século XX, e se tornaram uma poderosa arma de crítica social. Os dois filmes seminais fazem parte de um movimento cinematográfico denominado, não sem controvérsias, “splatterpunk”. Foi uma reação, ou uma revolta no meio cinematográfico, contra os filmes de terror tradicionais. 


Vou me deter na trilogia dirigida por Romero e explorar brevemente os aspectos sociais e políticos abordados nos filmes.



1.      Night of the Living Dead.

     Em “A Noite dos Mortos Vivos” (1968), lançado quando a guerra do Vietnã e o racismo dividiam a sociedade norte-americana, Romero dá o papel de protagonista a um ator negro (Duane Jones). A trama gira em torno de um grupo de pessoas que se refugia numa casa de fazenda, na região rural da Pensilvânia, para se proteger de uma multidão de mortos-vivos que inexplicavelmente voltaram a caminhar sobre a terra. Um homem chamado Ben (um negro) lidera o grupo de sobreviventes (todos brancos) contra os zumbis famintos. Ao contrário dos outros, Ben é equilibrado, tem bom discernimento, senso de justiça e voz de liderança. Chega mesmo a bater num branco egoísta e desequilibrado que só pensa em salvar a própria pele. O assassinato injustificado de Ben por um caipira boçal é um tapa na cara da violência racial e, para muitos, uma homenagem a Martin Luther King e Malcom X, líderes do movimento negro assinados na mesma época. Um estudioso da obra de Romero considera que o filme estava conectado com “às realidades contemporâneas e às questões que estavam na ordem do dia em fins da década de 1960: o racismo, o colapso da família nuclear americana e a ressurreição do conservadorismo político” (Bem Hervey). Alguns críticos europeus leram o filme como uma alegoria do ano de 1968 (Eu não chegaria a tanto). O lançamento do filme, considerado subversivo, impactou a sociedade americana. A violência explicita (mortos-vivos devorando pessoas) e o final perturbadoramente apocalíptico criaram embaraços a Romero, que foi acusado de estar ligado a cultos satânicos e atacar os valores religiosos. Algumas produtoras só aceitavam distribuir o filme com o título “Night oh the Flesh Eaters”, excluindo algumas cenas mais violentas e incluindo um final menos pessimista.



“Night of the Living Dead” (que ganhou um remake em 2006) criou o conceito de “apocalipse-zumbi” e modelou a estética do subgênero. O filme desamarrou os mortos-vivos das concepções religiosas, promovendo a secularização dos zumbis, e os transformou em metáforas sanguinolentas para abordar os problemas políticos, os conflitos sociais e a falência do estado e da família tradicional. Os zumbis de Romero são assustadores, mas o verdadeiro perigo reside nas relações crescentemente tensas que vão se estabelecendo entre os sobreviventes. Os conflitos humanos são mais mortais que as mordidas dos mortos-vivos.


Quem acha que filmes de zumbis são carnificinas de mau gosto, precisa rever suas opiniões. “Night of the Living Dead” é um filme político inserido numa narrativa de terror, conectado com as questões políticas e os movimentos pelos direitos civis daquele momento. Não é um filme fácil de ver. Não tem os atrativos dos efeitos especiais dos filmes mais recentes, como “A Guerra Mundial Z”, os atores carregam na dramaticidade e exageram nos gestos (tinham formação mais teatral) e o filme não usa de jogos de sedução e erotismo com o espectador explorando a sensualidade dos atores. É definitivamente um filme de outro mundo, feito para outro público com uma sensibilidade cinematográfica distinta da nossa. Os personagens não são heroicos, são homens e mulheres comuns refugiados numa casa cercada por mortos-vivos, presos a uma situação de desespero e confinamento, lidando com os conflitos que vão surgindo.




2.      Dawn of the Dead.

     “Dawn of the Dead” (“O Despertar dos Mortos”), lançado em 1978, segue uma linha um pouco diferente. A metáfora desta vez é dirigida contra o consumismo. Os efeitos do apocalipse-zumbi assumem proporções bem maiores do que no primeiro filme. A sequência inicial é no pacato subúrbio de Milwaukee, Wisconsin. Uma enfermeira (Sarah Polley) chega em casa depois de um dia duro de trabalho. O casal dorme e na manhã seguinte sobrevém o pesadelo. Uma garotinha do bairro entra na casa da enfermeira (Ana) e, sem mais nem menos, ataca o casal. Ana foge, entra no carro e sai em disparada, deixando para trás o marido zumbi e o bairro mergulhado no pânico e no terror. Ana e um grupo de sobreviventes, reunidos ao acaso, se refugiam num shopping para não serem devorados por zumbis famintos. O mundo que eles conheciam desabou. As pessoas estão por si mesmas. Não há mais leis, famílias, dinheiro, escolas, polícia, lares. Não existe autoridade. Em situações como esta, sugere o filme, os indivíduos se mostram sem os disfarces morais e as máscaras sociais habituais. Ao invés da ética e dos códigos de comportamento, resta a luta a qualquer custo para escapar da morte. Os sobreviventes se organizam como podem para continuar vivos. Depois de se abrigar, e conseguir manter os zumbis do lado de fora, o grupo se entrega aos deleites do templo do consumo e saqueia orgiasticamente as lojas de departamentos. Presos num shopping, com tudo a disposição e sem ninguém para lhes impedir, devoram, num ímpeto consumista, tudo o que está ao seu alcance. Por um momento, esquecem-se do pesadelo. Experimentam momentos daquela felicidade paradoxal (Lipovetsky) que embala os sonhos de consumo, mas que logo se desfaz. Depois das orgias de consumo sobram o tédio, o vazio, as ressacas morais e a presença incômoda do outro. As pessoas que escaparam da morte devoram umas as outras num jogo impiedoso de egoísmos, julgamentos, mesquinharias e falsidade.



O filme é ambientado nas imediações e no interior de um shopping center. Os shoppings tiveram seu alvorecer nos Estados Unidos na década de 1960. Romero recria, a sua maneira, o clima de entusiasmo generalizado e histeria em massa que marcou o surgimento destes espaços. Centenas de zumbis cercam o lugar – que frequentavam antes de morrer – tentando entrar para satisfazer a insaciável fome. Depois de entrar, os mortos-vivos andam de um lado para outro por corredores, galerias e escadarias, e empurram carrinhos carregados de produtos que não vão usar. Emblemático!



3.      Day of the Dead. 

     “Day of the Dead” é o ultimo filme da trilogia “Dead Series”, de Romero. O filme é de 1985. Algum tempo depois dos acontecimentos de “Dawn of the Dead”, os zumbis se espalharam pelo mundo. Nos Estados Unidos apenas uma base subterrânea fortificada nos everglades da Flórida abriga um grupo de cientistas e militares que realizam experiências com mortos-vivos para encontrar a cura para a epidemia. O cientista chefe (Dr. Logan) acredita que os zumbis podem ser treinados por meio de técnicas disciplinares e serem convertidos em criaturas dóceis. Bud não é um zumbi qualquer. Ele é um produto do saber científico e de estratégias disciplinares. Primeiro, ele tem um nome. O nome o individualiza e o distingue das figuras anônimas e indistintas que se arrastam nas hordas anárquicas. Segundo, ele foi escolhido e nomeado pelo Dr. para ser submetido aos experimentos científicos visando dotá-lo de alguma subjetividade para que possa ser disciplinado e controlado. Os laços entre disciplina, subjetividade e controle são evidentes. Os exercícios de repetição e as técnicas de punição e recompensa insistentemente empregados pelo Dr. objetivam domesticar o zumbi e construí-lo como um indivíduo capaz de responder a estímulos e comandos. Controlar Bud significa disciplinar seu apetite irrefreável e fazê-lo sujeitar-se a alguma regra (Recomendo um texto sobre este filme, publicado no blog Ensaios Ababelados).



Os personagens confinados no abrigo militar são simbólicos e representam, não por acaso, as forças armadas, o saber médico-científico e as pessoas comuns. Os militares, sádicos ao extremo, querem simplesmente eliminar os zumbis. Os cientistas, opondo-se à truculência dos soldados, querem estudar as criaturas para encontrar uma forma de controlá-las por meio de experimentos científicos. Os militares, abusivamente autoritários, desprezam as intenções dos cientistas e se impõem pela força. Em meio ao caos as duas forças antagônicas e disciplinares – o poder militar e o saber científico - tentam, cada uma a sua maneira, impor uma ordem, uma disciplina. As massas de zumbis (creio que neste caso o conceito de massa funciona perfeitamente), sem organização, sem direção e sem subjetividade, representam a negação da ordem e dos jogos de poder. Eles são apenas potência primitiva, cujo fim último de sua existência é comer. O (não)ser do zumbi se resume a um apetite incontrolável. As pessoas comuns, no meio do fogo cruzado entre militares e cientistas, desejam apenas continuar vivendo. Presos entre o pesadelo dos mortos-vivos e as disputas entre os vivos, apenas sobrevivem. Os desentendimentos entre os personagens, e as disputas pelo poder e o controle do abrigo, tornam impossível a união pela sobrevivência. 


A utopia disciplinar do Dr. Logan foge do controle. O esforço para reinventar a ordem por meio do saber médico-científico é literalmente devorado pela desordem ontológica que as hordas de zumbis carregam. O poder e o saber que instituíram a ordem do mundo foram subjugados pelo apetite primitivo que não reconhece regras, valores, instituições, e que não atende a nenhum estímulo a não ser o desejo imanente, incontrolável e inconsciente de comer. Potência não normatizável, movida por necessidade pura, o zumbi funciona como o elemento desagregador da sociedade disciplinar. É o mais autêntico monstro do século XX. Um monstro coletivo implacável e indiferente. Uma multidão desmemoriada e destituída de moralidade. Massa amorfa, faminta, anônima e putrefata que se desloca lentamente e vai engolindo o mundo a sua volta. 


George Romero estabeleceu a linguagem, a estética, os clichês e os subtextos críticos deste subgênero de filmes de terror. Os zumbis ganharam aspectos mais verossímeis e mais assustadores e passaram a representar a ameaça imanente à ordem social. O apocalipse-zumbi, a sombria e secular invenção de Romero, é a dissolução da civilização e um retorno à animalidade. Os mortos herdaram a terra, mas não pretendem prestar contas a deus. 


O eixo da narrativa nos três filmes gira em torno de grupos de sobreviventes que se organizam para resistir às hordas famintas de mortos-vivos. Nos três casos a ameaça ao grupo está no próprio grupo. Os zumbis formam um pano de fundo assustador, mas nada que se compare as relações de poder, ao egoísmo e ao oportunismo rasteiro que emergem na dinâmica do convívio entre os membros do grupo. Focando no grupo, ou nas interações que vão se estabelecendo entre os indivíduos, Romero desfere duras críticas à sociedade americana das décadas correspondentes aos três filmes. Como escreveu um crítico norte americano, no mundo de Romero o zumbi, distante de suas raízes haitianas, é muito mais do que uma criatura em busca de intestinos quentes para saciar a fome. O zumbi é uma força para a transformação social.





sábado, 10 de agosto de 2013

GUANTÁNAMO: O Pesadelo kafkiano nos Porões Obscuros da Democracia Norte Americana.



GUANTÁNAMO: O Pesadelo kafkiano nos Porões Obscuros da Democracia Norte Americana.




"Assim, não há possibilidades de engano. As nossas autoridades, até onde eu conheço, e os meus conhecimentos não vão além das categorias mais baixas, não são daquelas que andam atrás das culpas das pessoas, mas, como diz a Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem-nos a nós, os guardas. É assim a Lei. Como poderá haver enganos?"



(Fala do personagem Franz, guarda do presídio do romance “O Processo”, de Franz Kafka).









As notícias que nos chegam com alguma frequência da prisão de Guantánamo são perturbadoras, embora não nos causem surpresa. Os relatos de presos publicados no The New York Times ou os documentos vazados pelo Wikileaks deixam entrever uma realidade brutal e um completo desprezo pelo Estado de Direito, dignos dos piores pesadelos imaginados na ficção Kafkiana. 


Não é nenhuma novidade falar do “realismo” singular e da atualidade de Kafka. Realismo, no sentido estético, que traduz um olhar minucioso e crítico sobre o mundo, e o desejo de mostrar, com imagens deformadas e absurdas, as coisas como elas são (Não confundir com a pretensão conservadora positivista de descrever o mundo como ele realmente é). Numa conversa com um amigo sobre uma exposição de obras cubistas e pós-cubistas de Picasso, Kafka disse que “a arte é um espelho que adianta, como um relógio, não as nossas formas, mas as nossas deformidades”. O “realismo” de Kafka, apontado para as deformidades do mundo e a incomunicabilidade entre as pessoas, é do tipo que comporta a indignação e intervém no sentido de sacudir o conformismo. 


Os personagens kafkianos e as situações inesperadas em que repentina e inexplicavelmente se encontram poderiam ser facilmente identificados com situações dos nossos dias. O homem do campo, da fábula “Diante da Lei”, poderia ser substituído por um aposentado do INSS sem muita dificuldade. Alguns prisioneiros de Guantánamo, do mesmo modo, parecem viver o pesadelo do personagem Josef K, de “O Processo”. No romance, escrito por Kafka em 1914 e publicado postumamente em 1925, o personagem Josef K acorda num belo dia e, sem que lhe exponham os motivos, é levado à prisão e submetido a um intrincado processo por um crime que não lhe é revelado. A individualidade de K fora sequestrada por uma lei impessoal e distante, expressão de uma coletividade anônima e sem rosto. Impotente diante de um poder invisível e hierarquizado, cujas manifestações mais próximas são os guardas da prisão, K vê sua vida se esvair num longo e incompreensível processo.


Quantos prisioneiros em Guantánamo não estão nesta mesma condição? Presos numa malha de poderes invisíveis, são mantidos sem acusação formal, sem direito a um julgamento e a informações, sem saber qual é afinal o seu crime ou do que exatamente estão sendo acusados. Como no romance “O Processo”, o Estado de Direito não existe em Guantánamo. “N´O Processo a ficção básica é a do Estado de Direito” (Luiz Costa Lima). Em Guantánamo a ausência desta situação jurídica é a realidade básica. 




A vaga acusação de terrorismo, em alguns casos sem provas concretas, é tão genérica que de modo algum autoriza a prisão dos supostos suspeitos. Mas o que manda, na ausência do Estado de Direito, é a lógica da suspeição. A suspeição produzida e a delinquência presumível. Foucault, estudando as instituições penais do século XIX, percebeu uma cadeia de discursos sobre a delinquência que identificaria, por um exame das tendências psicológicas dos suspeitos, um criminoso antes mesmo do crime ser cometido. No mundo pós 11 de setembro a lógica da suspeição em ação se anteciparia ao crime e identificaria os suspeitos pelos sobrenomes, pelo país em que vive, pela religião que professa e pelos traços fisionômicos. Um iemenita de passagem pelo Paquistão em 2001, depois de uma temporada no Afeganistão, seria um suspeito em potencial a procura de um crime. Neste caso, meus caros, infelizmente, não estamos no campo da ficção.



Samir Naji al Hasan Moqbel, um iemenita de 35 anos, um dos tantos Josef K de Guantánamo, afirma que está preso há 11 anos: "Eu poderia estar em casa há anos - ninguém seriamente acha que eu sou uma ameaça -, mas eu ainda estou aqui. Há anos os militares disseram que eu era um 'guarda' de Osama bin Laden, mas isso não fazia sentido, como algo tirado de filmes americanos que eu costumava assistir". Vivendo uma típica novela kafkiana da vida real, Moqbel contou, num relato publicado no The New York Times, que  “viajou para o Afeganistão no início dos anos 2000 após ouvir de um amigo de infância que poderia melhorar sua condição de vida no país. Ele diz que descobriu que não havia empregos apenas quando chegou ali, mas que não tinham dinheiro para voltar para casa. Quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão em 2001, ele conseguiu ir para o Paquistão. "Os paquistaneses me prenderam quando eu pedi para ver alguém da embaixada do Iêmen. Eu fui então enviado para Kandahar (no Paquistão), e colocado no primeiro avião para Gitmo (termo que se refere a Guantánamo).” 




Vale lembrar as palavras de Josefina Salomon, porta-voz do Programa de Combate ao Terrorismo da Anistia Internacional: “Guantánamo não faz do mundo um lugar mais seguro e sim um lugar onde qualquer um pode ser pego de sua casa, colocado em um avião, preso em um centro de detenção sem nem ao menos saber do que é acusado e ficar anos sem processo legal”.


A prisão, pelo que podemos ler nos depoimentos dos presos, é um pesadelo kafkiano. Os atormentados personagens fictícios de Kafka encontram em Guantánamo correspondentes do mundo real que nada deixam a desejar. Os prisioneiros do império, assim como os personagens de Kafka, encontram-se impotentes diante de um poder tentacular, arbitrário, labiríntico e atrozmente desumano que lhes sequestra a vida, a dignidade e escarra no Estado de Direito. Um poder que não nomeia claramente o crime, usa e abusa de métodos ultraviolentos para obter as suas “verdades”  e não dá aos sujeitados o direito de defesa. Afinal, em Guantánamo a culpa é indubitável. A vida dos presos encontra-se em suspenso. Estão num limbo jurídico, não são julgados nem libertados. Nem direito a greve de fome eles tem. Os zeladores da prisão injetam alimento por sondas contra a vontade dos presos.


De acordo com o relato de Moqbel, que em março de 2013 se encontrava hospitalizado em decorrência de uma greve de fome, oito homens das Forças de Reação Extrema o amarraram numa cama e o forçaram a se alimentar através de uma sonda: "Eu passei 26 horas neste estado, amarrado a uma cama. Durante este tempo, não me permitiram ir ao banheiro. Eles inseriram um catéter, o que foi doloroso, degradante e desnecessário. Eu não recebi permissão nem para rezar". Esta técnica ambivalente de preservação da vida dos presos, que também funciona como mecanismo de punição e desumanização, lembra a terrível máquina de tortura e extermínio detalhadamente descrita na “Colônia Penal”. 


 Guantánamo é verso e reverso, ao mesmo tempo estranho e familiar, da democracia norte-americana. É o porão da democracia, supondo que este porão, mantido longe da vista, dê sustentação arquitetônica a casa, que esta à vista. Porão/prisão do império, Guantánamo desafia o Direito Internacional, faz pouco caso do Estado de Direito e revela os laços indissociáveis entre democracia, violência e intolerância na história dos Estados Unidos. Produto direto do realismo neoconservador da doutrina Bush, a prisão erguida em território alheio é a melhor tradução da arrogância do império e do desrespeito às leis internacionais, não apenas da administração Bush, mas da forma como os Estados Unidos historicamente conduzem e perseguem seus objetivos no plano internacional.