TRADUÇÃO E INVENÇÃO: Ruiz de Montoya, uma ponte semântica entre dois
mundos.
A
tradução é uma espécie de ponte semântica que opera um fluxo de sentidos capaz
de conferir legibilidade àquilo que, a primeira vista, não é dado a ler. Nos encontro culturais entre os europeus e os povos
americanos, a tradução desempenhou um papel central. As
narrativas jesuíticas lançaram uma ponte entre as duas margens do oceano, por
onde as novidades e as estranhezas captadas, e decodificadas, fluíam por meio de
cartas, relações e crônicas. Encapsuladas pela escrita, as informações cruzavam o
atlântico para serem lidas na Europa. Entre
o mundo da oralidade e o mundo da escrita, o suporte tecnológico da tradução era a palavra escrita. As experiências dos missionários nos confins do mundo
cristão chegavam aos leitores europeus devidamente decodificadas. Das fronteiras ao centro da cristandade, a escrita transportava
as experiências, as novidades e as curiosidades, que tanto interessavam aos
leitores externos das cartas jesuíticas. António Ruiz de Montoya, jesuíta e
missionário peruano, autor da “Conquista espititual hecha por los religiosos de
la compañía de Iesus en las provincias del Paraguay, Parana, Uruguay e Tape”
(1639), foi um mestre na arte da tradução e decodificação das culturas
indígenas.
Montoya
(1585-1652) chegou a Assunção, no Paraguai colonial, em 1612. Foi um dos mais
importantes estudiosos do idioma guarani dos tempos coloniais e deixou um
riquíssimo registro linguístico da língua desses povos (“Tesoro de la lengua
guarani”). Antes dele, o franciscano Luiz Bolanõs já realizara estudos
linguísticos na região e deixara um conjunto de anotações, que compunham a base
do sistema gráfico guarani. Montoya se serviu das anotações de Bolanõs, levou-as
adiante e as aperfeiçoou. Os estudos linguísticos de José de Anchieta sobre os
guarani da América portuguesa, publicados em Coimbra em 1595, sob o título de
“Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, inspiraram os
jesuítas, Montoya em particular, da América hispânica. “Tesoro de la lengua
guarani” (1639), elaborado quando Montoya dedicava-se aos trabalhos apostólicos
da redução de Nossa Senhora de Loreto, é o primeiro dicionário da língua
guarani, resultado de quase trinta anos de convivência do missionários com os
guarani (MELIÁ). Todo o trabalho linguístico de Montoya tinha como fim a
conversão dos indígenas ao catolicismo. Além disso, o missionário-linguista foi
um excepcional cronista das experiências apostólicas e reducionais dos jesuítas
no Paraguai. Protagonizou célebres embates contra “índios infiéis” (era assim
que os jesuítas chamavam os índios que se opunham à evangelização),
encomenderos e bandeirantes e foi um incansável defensor das reduções
(CHAMORRO, 2007).
O
missionário jesuíta se construiu no “trato das diferenças culturais”. A missão
o empurrava para o confronto com a alteridade e exigia um (re)conhecimento,
para si próprio e para o seu mundo de origem, deste novo universo que se abria
à evangelização. Um destes confrontos ocorreu numa visita que Ruiz de Montoya,
acompanhado do padre José Cataldino, fez à antiga Redução de Loreto. O
missionário saiu percorrendo a região “á convidar á los índios á que se
redujesen en poblaciones grandes”. Numa dessas “aldeias” conheceu o “grande cacique Taubici”:
“Llegamos á um pueblo cuyo gobernador era un gran cacique,
gran mago y hechicero y familiar amigo do demônio, chamado Taubici, que quiere
decir, diablos en hilera ó hilera de diablos. Era muy cruel y con cualquier
achaque hacia matar índios a su antojo(...)” (Conquista Espiritual, p.45).
Neste
fragmento significativo da narrativa de Montoya surpreendemos o narrador
empenhado em traduzir o outro. Seguro de si e do entendimento que tinha da
língua guarani, o jesuíta não hesitou em traduzir o nome do cacique. Mas
traduzir não se resume a encontrar sinônimos linguísticos ou equivalentes
semânticos. Traduzir é uma maneira de ler a diferença, de enunciá-la. Dizer o
outro, configurá-lo no interior de uma narrativa destinada a ser lida no mundo
de origem do narrador, envolve sempre uma operação de tradução. Esta
operação se dá tanto no nível mais epidérmico, da comunicação entre pessoas, em
que a busca por correspondentes linguísticos caracteriza uma primeira
aproximação e entendimento, quanto no nível mais profundo da interpretação
cultural, dos sistemas de crenças e valores dos povos indígenas.
Mas
traduzir o outro não é transformá-lo no espelho invertido do mesmo?
Mirando o jogo de espelho criado por François Hartog para ler Heródotos,
interrogo as narrativas jesuíticas para visualizar o papel da tradução na
construção da alteridade, na elaboração de uma representação do outro como
suporte para a conquista espiritual. Este princípio heurístico, que permite
compreender e dar sentido ao que num primeiro momento parece incompreensível
denominamos aqui de “retórica da
alteridade, ou seja, uma operação de tradução que visa transportar o
outro ao mesmo - constituindo uma espécie de transportador da diferença.”
Sigamos então as reflexões de Hartog sobre as Histórias de Heródotos e a maneira como ele traduz para
os gregos as diferenças culturais dos não-gregos. A diferença só é percebida e
enunciada a partir do momento em que se reconhece existirem dois termos,
digamos A e B, e que um é diferente do outro. E, “a partir da relação fundamental que a diferença significativa instaura
entre os dois conjuntos, pode-se desenvolver uma retórica da alteridade própria
das narrativas que falam do outro”. O narrador, elo entre os dois
conjuntos, pertence ao grupo A e contará ao seu grupo, as coisas do grupo B. O
problema do narrador então é tornar-se persuasivo, tornar sua narrativa crível,
digerível. É aqui que situamos o problema da tradução. Como dizer o outro de
maneira a ser compreendido pelos destinatários? Para traduzir a diferença, diz
Hartog, o narrador tem a sua disposição “a
figura cômoda da inversão”. Por este mecanismo, o outro se
torna o inverso e não há mais A e B como termos próprios, mas simplesmente A e
o inverso de A. “O princípio da
inversão transcreve a alteridade tornando-a fácil de apreender no mundo em que
se conta (trata-se da mesma coisa, embora invertida).”
Os
jesuítas, mestres da tradução e da inversão, realizarão esta ponte semântica
entre o velho e o novo mundo. O complexo universo narrativo jesuítico cria
cenários, enredos barrocos, constrói personagens e distingue os inimigos e os
aliados. Transforma a confusão e a implausibilidade do universo indígena, e do
espaço que ele habita, numa ordem coerente, descritível e inteligível. Eis o
papel da tradução: tornar legível o que não é dado a ler, dizer o indizível,
nomear o desconhecido para criar um efeito de familiaridade.
Taubici,
na linguagem da conversão, torna-se “diabos em fila”. O nome do cacique não é apreendido pelo que significa entre os
guaranis, mas pelo que representa para a evangelização. Ele é o inverso, o
contrário, o inimigo declarado e devidamente nomeado. À tradução do nome
segue-se a descrição da sua natureza cruel, violenta, diabólica. Traduzir,
neste caso, não é apenas verter do guarani para o espanhol. Traduzir é atribuir
sentidos associados à experiência, é inventar. Taubici, traduzido por Montoya,
torna-se outra coisa. O chefe indígena que lemos na “Conquista Espiritual” é uma invenção do jesuíta. Afirmar isso
não é negar a existência de Taubici, nem a validade da tradução de Montoya. É
inegável, no entanto, que Taubici, entre os guaranis, representava algo muito
diferente. A tradução realiza-se num campo de disputas físicas e simbólicas.
Montoya esta descrevendo o inimigo com os conhecimentos que possui dos
indígenas, mas também com o repertório de significados que a luta de vários
séculos do cristianismo contra as “milícias del abismo” legou aos jesuítas
(Expressão criada pelo jesuíta Pedro Lozano). A tradução, numa situação como
essa, é um ato político de negação.
A
invenção do cacique diabólico pela escrita conquistadora, foi motivada por projetos
políticos e religiosos, e fundada num querer, no logos ocidental, que
percorre o mundo e o ordena a partir de um conjunto de saberes europeu. A
invenção do outro, que no fundo é o exercício de uma dominação e um desejo de
tradução, é um fenômeno de fronteira que visa trazer para o lado de cá o que
está do lado de lá. Demonizar Taubici é domesticar sua natureza
incompreensível. É trazê-lo para o campo de referências do jesuíta e poder
explicá-lo. Podemos dizer, com Michel de Certeau, que se trata, de fato, de uma
“hermenêutica do outro”. Os Jesuítas
transportam para a América o aparelho exegético cristão nascido, neste caso,
dos embates contra as supostas forças satânicas e do espírito de reforma que
contaminou os aliados de Roma na luta contra a heresia protestante. A relação
entre a Europa e o resto do mundo é mediada, assim, por uma atividade
tradutora, que opera uma leitura do outro,
decifrando-o. Os indígenas – homens, mulheres, crianças, velhos, caciques e
pajés – que povoam as cartas e crônicas são personagens idealizados que se
ajustam harmonicamente ou se chocam contra os trabalhos apostólicos. Personagens
que cumprem um papel retórico na estratégia jesuítica que condenava “os vícios e os maus hábitos dos nativos
quando queriam explicar o fracasso de uma determinada ação, e exortavam suas
virtudes e inocência quando queriam demonstrar o sucesso de sua empresa
evangélica” (EISENBERG). Mas esses personagens idealizados não
são signos sem referente, não são criações do nada. São projeções/invenções
jesuíticas elaboradas a partir do encontro/confronto com os indígenas.
A
tradução, a serviço da conquista e da conversão, pode ser caracterizada como
uma operação de redução do universo alheio aos signos religiosos e de
comunicação dos conquistadores. Esta operação resulta amiúde na invenção do
outro, isto é, na construção de sujeitos que flutuam numa região intermediária
entre o que se vê e o que se crê, entre o que se tem e o que deseja.
Felizmente
a escrita, verdadeira cápsula do tempo, registrou as experiências missionárias
que, preservadas do efeito implacável do tempo, chegaram intactas até nós. Estava
agora pensando sobre isso. Lendo uma edição antiga da “Conquista Espiritual”
(em espanhol), do Montoya, que tenho comigo, pensava no privilégio que temos de
ter um registro admirável como esse ao nosso alcance. Por um lado, o impagável
prazer de ler as “aventuras” apostólicas barrocas, quase cinematográficas, das crônicas
de Montoya. Por outro, a possibilidade de desfazermos os equívocos, ainda que
bem intencionados, da tradução cultural e restituirmos ao cacique Taubici o seu
nome.
Referências Bibliográficas.
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EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento
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Uruguay e Tape. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.