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sexta-feira, 15 de março de 2013

A TRAVESSURA SEMIÓTICA DE RENÉ MAGRITTE E OS LIMITES (?) DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO.



A TRAVESSURA SEMIÓTICA DE RENÉ MAGRITTE E OS LIMITES (?) DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO.

O post não trata de filosofia nem de estética da arte. São rápidos apontamentos de um historiador inspirado em alguns quadros de René Magritte. Nada mais.


Perspicácia (1936).

O olhar fixo e compenetrado do artista para capturar, quem sabe, a forma, o volume e a essência do “objeto” que pretende pintar contrastando com a figura que toma forma na tela é a melhor tradução da expressão “dar asas à imaginação”, com o perdão da obviedade do trocadilho. O que esta diante dos olhos não o satisfaz. O ovo (a realidade diante do pintor) é apenas o motivo, não um objeto a ser fielmente retratado. 

“Perspicácia” é uma reflexão metalinguística sobre o trabalho do artista, sobre a arte de ultrapassar o aparente e trazer a tona o que está oculto. O pintor é um interprete, um semeador de sonhos e de (su)realidades, não um satisfeito retratador de realidades estanques. Seu olhar dirigi-se para o além do ovo, para o vir a ser.  

Magritte joga com a realidade e a imaginação, mas não para opô-las como esferas antagônicas e irredutíveis. O ovo, a realidade a sua frente, é uma possibilidade, não uma certeza, é um ponto de partida, não um fim a ser alcançado/retratado. Eis o sentido de perspicácia. O pintor nos convida a ver a realidade como potência, como movimento, como construção subjetiva, não como um dado objetivo que existe independente das nossas construções linguísticas, estéticas, científicas, religiosas. A perspicácia está em ver a realidade como um estímulo à imaginação, não como prisão da criatividade. É estar aberto para o inesperado. 

O tema de “Perspicácia” é bastante sugestivo para iniciar uma conversa sobre a controvertida relação do historiador com a realidade. Vamos pegar carona na super-realidade de Magritte e ver onde ela nos leva? 

René Magritte é daqueles raros pintores que desconcertam. Figuras e objetos enigmáticos, como rochas pesadas suspensas como se fossem plumas, noite e dia numa mesma cena, figuras reais em contextos oníricos e surreais, são algumas das situações ilusórias criadas pelo pintor, que provocam reflexão.


Império das luzes (1954).

Chapéus de coco, guarda chuvas, pássaros, maças, cachimbos, portas e janelas, enfim, objetos familiares, que normalmente não chamariam nossa atenção, são deslocados dos seus lugares identificáveis e colocados em contextos inesperados. Este (re)manejamento dos objetos era característico do surrealismo. Buscava-se desestabilizar e confundir a percepção, embaralhar os sentidos e confundir a fronteira entre o real e a imaginação. Magritte foi um mestre nesta arte de jogar com objetos e contextos ou de descontextualizar objetos. Queria provocar o estranhamento, o deslocamento dos sentidos, estimular um olhar novo sobre os objetos que nos cercam e sacudir o lugar comum. Queria fazer os objetos gritar. Um simples gesto do dia a dia, como olhar-se no espelho, ganha novos significados: e se o espelho não retribuir o olhar? “O que conta precisamente, nos diz Magritte, é esse instante de pânico e não a explicação.”


Retrato de Edward James (1937)

Objetos reconhecíveis e perfeitamente identificáveis ganham novos e surpreendentes arranjos e adquirem novos significados. Rompe-se o mecanismo usual de significação e de representação. A obviedade e a naturalidade das coisas se desfazem e abre-se o caminho para outras formas de percepção. 


Magritte não era apenas um pintor. Era um pintor-filósofo. Ao invés de paisagens, cenas cotidianas e figuras humanas reconhecíveis, pintava ideias e temas filosóficos. “As férias de Hegel”, por exemplo, de 1958, lança um desafio dialético explorando um objeto comum usado de maneira incomum: um guarda chuva aberto sustentando um copo com água. Deixemos o próprio pintor explicar suas intenções: “Pensava que Hegel teria sido sensível a este objeto que tem duas funções opostas: ao mesmo tempo, não admitir água (repeli-la) e admiti-la (contê-la). Ele teria ficado satisfeito, creio, ou divertido (como se estivesse de férias).Um objeto comum como um guarda chuva, apartado de sua função original, transforma-se num problema filosófico. Magritte relaciona arte e filosofia, numa brincadeira dialética para divertir Hegel.


As férias de Hegel (1958).

“A Traição das Imagens” é uma das pinturas mais significativas de Magritte. De dimensões pequenas, o quadro nos desafia com um enigma aparente. Somos confrontados com um belo e convincente cachimbo, de suaves contornos, ilusionísticamente pintado sobre um fundo neutro que realça a forma realista do desenho.

  
Abaixo do cachimbo, uma legenda escrita com “caligrafia de convento” (Foucault), nega a imagem acima representada: “Ceci n´est pas une pipe”. Um instante de desconcerto. Porque afinal a legenda nega a imagem? Ela a nega ou a afirma de outro modo? 

“A traição das imagens” é de 1928-9. Magritte foi muito censurado pela ousadia do quadro, por pintar uma imagem e em seguida negá-la. Foi mal compreendido. No entanto, se ele tivesse escrito que aquilo era um cachimbo, não estaria sendo totalmente verdadeiro. Anos mais tarde desafiou os críticos: “conseguem enchê-lo?”. Não, não conseguem, porque não é um cachimbo. É “apenas um desenho”, uma representação pictórica. E para quem ainda duvida talvez o mestre lançasse um desafio: tentem colocar fumo no cachimbo, tentem fumar.

Eis a “traição das imagens”, elas nos levam a ver e a crer em algo que não está ali. A travessura semiótica de Magritte nos faz duvidar das nossas percepções das coisas. O cachimbo salienta a distância intransponível e incontornável entre o objeto e sua representação.

O Cachimbo e a História.

O cachimbo de Magritte é o meu motivo. Se o pintor olhou para um ovo e desenhou um pássaro, porque não olhar para o cachimbo e refletir sobre o trabalho do historiador? Trazendo a advertência de Magritte para os domínios da história, diria que a representação/construção do passado é o cachimbo dos historiadores. Reconstruímos o passado de modo convincente, verossímil, desenhamos seus contornos e oferecemos uma imagem perfeitamente legível. Mas não é o passado. O cachimbo impôs-se ao pintor como forma reconhecível, da qual ele não pode esquivar-se. Da mesma forma, o passado impõe-se ao historiador como realidade da qual ele não pode fugir. Mas o que construímos não é o passado. Assim como no cachimbo pintado por Magritte não pode ser colocado fumo, a imagem que o historiador constrói do passado não tem cheiro, não tem espessura, não sua, não sente dor, não pode ser tocada.

Assim como jamais fumaremos no cachimbo de Magritte, porque sua realidade limita-se a tela, jamais sairemos do domínio do texto para alcançar a realidade do passado. A realidade do passado é inalcançável. O contexto do cachimbo é a tela. O contexto do historiador é o texto, ou um conjunto articulado de textos. Em certo sentido, o contexto criado pelo historiador é tão arbitrário quanto o contexto em que Magritte encerrou o seu cachimbo. Os conceitos e categorias do historiador com os quais ele articula o passado não eram conhecidos no passado. As experiências de vida de outras épocas são, portanto, reconstruídas a partir de signos que lhes são estranhos. Dificilmente as pessoas que viveram no passado se reconheceriam nas tramas e narrativas dos historiadores. Mas isso não chega ser um problema. A história é uma ciência do presente e para o presente. As narrativas históricas têm que fazer sentido para nós, leitores do presente, e não para quem viveu no passado e não está mais entre nós.
Sem pretender adentrar mais do que o necessário neste terreno espinhoso, manifesto um esforço de interpretação, coerente com o entendimento que tenho da história, que não estabelece uma diferenciação fundamental entre texto e contexto. Não parto do suposto de que exista uma realidade passada pré-textual a espera de ser revelada por um conjunto de textos que nos chegam do passado. O que comumente chamamos de contexto não diz respeito a um lugar, uma realidade essencial que exista para além dos documentos. Não se trata de negar a existência de uma realidade exterior ao texto. Negá-la é negar o próprio texto que a toma como referente. O que se enfatiza é o tipo de relação que mantemos com o passado. No fundo, é o problema epistemológico da história: o que podemos conhecer no passado que, afinal de contas, esta tão distante de nós? Este passado nos chega por meio de uma complexa rede de textos: memórias, cartas, livros, etc. Não temos acesso ao mundo que existiu para além destes vestígios textuais. Esforçamo-nos para entender e explicar o mundo fora do texto, produzindo outros textos. Mas o texto é a realidade na qual estamos sempre a desembarcar. Não podemos imaginar que o texto nos conduzirá a uma realidade exterior. Eis os limites da História, e a sua sedução. Abandonando a pretensão de abraçar a realidade em si, não abandonamos o desejo de explicação da realidade. Apenas redimensionamos a noção de realidade e o alcance do nosso olhar estrangeiro de quem literalmente lê o passado. Dominic La Capra, que transformou a cômoda realidade histórica num problema, sugeriu incisivamente que a crença da maioria dos historiadores na existência de um contexto como a força causal essencial é tributária de uma tradição metafísica ocidental da busca pelo puro ser. Na mesma linha dos estudos linguísticos e suas relações com a escrita da história, Hayden White desencadeou polêmicas apaixonadas ao questionar as fronteiras tradicionais que separam a história da literatura e da filosofia, e ao sugerir o papel decisivo da linguagem nas descrições dos historiadores da realidade histórica. Robert Darton, num inspiradíssimo ensaio sobre a presunção do historiador de querer brincar de Deus, perguntou com indisfarçável ironia: por mais que os historiadores gostem de metáforas como “escavar nos arquivos”, “quem acredita na descoberta e extração de pepitas de realidade?” O que estes autores questionam é a pretensão dos historiadores de descrever realidades passadas. Mas alto lá. Daí a afirmar que o texto é uma realidade que acaba em si mesma, ou de que o texto é “apenas a prova de si próprio”, vai uma enorme diferença. A contribuição da critica literária e dos estudos linguísticos é um divisor de águas nos estudos históricos. Passado o primeiro impacto desta virada linguística, e os exageros e as adesões apressadas que a acompanhou, o momento atual é de uma reflexão serena. Muito mais do que respostas, ficam as perguntas: afinal, sobre o que versam os historiadores? Estamos presos a uma rede interminável de textos dos quais somos reféns ilustres? Nossa epistemologia resume-se a um eterno exercício textual? Ou temos alguma coisa a dizer sobre o mundo, sobre o passado? Esta discussão não é perda de tempo, como bem sustentou Ginzburg, nem um mero exercício acadêmico entre as trincheiras racionalistas e pós-modernistas. É, antes de tudo, uma busca pelo valor da história, e dos historiadores.

A história não é um produto da imaginação poética, como sugeriu Hayden White, tampouco uma mera construção da linguagem. O conhecimento histórico, embora limitado ao texto, é construído a partir de uma realidade histórica da qual não podemos fugir. Embora nunca nos afastemos da realidade textual, é ela o nosso ponto de contato com a realidade da qual o texto é um produto. Diria até que o texto não é o nosso limite (como o ovo não o foi para Magritte), mas a nossa ilimitada possibilidade de reconstrução do passado. Os textos podem ser lidos, relidos, redescobertos e reinterpretados de diferentes maneiras. É isso que faz da história uma ciência do presente. Ler o passado é um verbo que só se conjuga no presente. O passado como ele foi não pode ser alcançado, embora nos esforcemos para chegar o mais perto possível. É o nosso cachimbo. Nosso belo, verossímil e ilusionístico cachimbo. É a perspicaz “traição” da história. A imaginação do pintor o permitiu driblar o realismo conformista e ver além do ovo. Sem imaginação – o exercício poético-científico de fazer dois tempos que não coexistem dialogarem - o trabalho do historiador se tornaria um registro obituário de realidades passadas. É como se o pintor olhasse para um ovo e pintasse, imaginem!, um ovo. Por isso, quanto mais os historiadores se aproximarem da literatura, da arte e da poesia, maiores serão as chances de quebrarem a casca do ovo disciplinar e usarem perspicazmente a imaginação a seu favor. Brincando um pouco com a ótima frase de Emmanuel Le Roy Ladurie (de que para fazer história é preciso de um pouco de marxismo e o máximo possível de ciência) diria que para escrever história é preciso de um pouco de ciência e o máximo possível de imaginação.


6 comentários:

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  2. Por favor, qual nome da obra em que tem três homens olhando para as luas ??? Obrigado

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  3. Por favor, qual nome da obra em que tem três homens olhando para as luas ??? Obrigado

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  4. Olá Anderson.

    Chama-se "Os mistérios do Horizonte". É de 1955.

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  5. Que texto massa. Você escreve muito bem. Pena que são só palavras, danadinhas arbitrárias. rsrs

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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