A TRAVESSURA SEMIÓTICA DE RENÉ
MAGRITTE E OS LIMITES (?) DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO.
O
post não trata de filosofia nem de estética da arte. São rápidos apontamentos
de um historiador inspirado em alguns quadros de René Magritte. Nada mais.
Perspicácia
(1936).
O
olhar fixo e compenetrado do artista para capturar, quem sabe, a forma, o
volume e a essência do “objeto” que pretende pintar contrastando com a figura
que toma forma na tela é a melhor tradução da expressão “dar asas à imaginação”,
com o perdão da obviedade do trocadilho. O que esta diante dos olhos não o
satisfaz. O ovo (a realidade diante do pintor) é apenas o motivo, não um objeto
a ser fielmente retratado.
“Perspicácia”
é uma reflexão metalinguística sobre o trabalho do artista, sobre a arte de
ultrapassar o aparente e trazer a tona o que está oculto. O pintor é um
interprete, um semeador de sonhos e de (su)realidades, não um satisfeito retratador
de realidades estanques. Seu olhar dirigi-se para o além do ovo, para o vir a
ser.
Magritte
joga com a realidade e a imaginação, mas não para opô-las como esferas antagônicas
e irredutíveis. O ovo, a realidade a sua frente, é uma possibilidade, não uma
certeza, é um ponto de partida, não um fim a ser alcançado/retratado. Eis o sentido de perspicácia. O pintor nos convida a ver
a realidade como potência, como movimento, como construção subjetiva, não como
um dado objetivo que existe independente das nossas construções linguísticas,
estéticas, científicas, religiosas. A perspicácia está em ver a realidade como um
estímulo à imaginação, não como prisão da criatividade. É estar aberto
para o inesperado.
O
tema de “Perspicácia” é bastante sugestivo para iniciar uma conversa sobre a
controvertida relação do historiador com a realidade. Vamos pegar carona na
super-realidade de Magritte e ver onde ela nos leva?
René
Magritte é daqueles raros pintores que desconcertam. Figuras e objetos enigmáticos,
como rochas pesadas suspensas como se fossem plumas, noite e dia numa mesma
cena, figuras reais em contextos oníricos e surreais, são algumas das situações
ilusórias criadas pelo pintor, que provocam reflexão.
Império
das luzes (1954).
Chapéus
de coco, guarda chuvas, pássaros, maças, cachimbos, portas e janelas, enfim, objetos
familiares, que normalmente não chamariam nossa atenção, são deslocados dos
seus lugares identificáveis e colocados em contextos inesperados. Este
(re)manejamento dos objetos era característico do surrealismo. Buscava-se
desestabilizar e confundir a percepção, embaralhar os sentidos e confundir a
fronteira entre o real e a imaginação. Magritte foi um mestre nesta arte de
jogar com objetos e contextos ou de descontextualizar objetos. Queria provocar
o estranhamento, o deslocamento dos sentidos, estimular um olhar novo sobre os
objetos que nos cercam e sacudir o lugar comum. Queria fazer os objetos gritar.
Um simples gesto do dia a dia, como olhar-se no espelho, ganha novos significados:
e se o espelho não retribuir o olhar? “O que conta precisamente, nos diz
Magritte, é esse instante de pânico e não a explicação.”
Retrato
de Edward James (1937)
Objetos
reconhecíveis e perfeitamente identificáveis ganham novos e surpreendentes
arranjos e adquirem novos significados. Rompe-se o mecanismo usual de
significação e de representação. A obviedade e a naturalidade das coisas se
desfazem e abre-se o caminho para outras formas de percepção.
Magritte
não era apenas um pintor. Era um pintor-filósofo. Ao invés de paisagens, cenas cotidianas
e figuras humanas reconhecíveis, pintava ideias e temas filosóficos. “As férias
de Hegel”, por exemplo, de 1958, lança um desafio dialético explorando um
objeto comum usado de maneira incomum: um guarda chuva aberto sustentando um
copo com água. Deixemos o próprio pintor explicar suas intenções: “Pensava que
Hegel teria sido sensível a este objeto que tem duas funções opostas: ao mesmo
tempo, não admitir água (repeli-la) e admiti-la (contê-la). Ele teria ficado
satisfeito, creio, ou divertido (como se estivesse de férias).” Um
objeto comum como um guarda chuva, apartado de sua função original,
transforma-se num problema filosófico. Magritte relaciona arte e filosofia,
numa brincadeira dialética para divertir Hegel.
As
férias de Hegel (1958).
“A
Traição das Imagens” é uma das pinturas mais significativas de Magritte. De
dimensões pequenas, o quadro nos desafia com um enigma aparente. Somos
confrontados com um belo e convincente cachimbo, de suaves contornos,
ilusionísticamente pintado sobre um fundo neutro que realça a forma realista do
desenho.
Abaixo
do cachimbo, uma legenda escrita com “caligrafia de convento” (Foucault), nega
a imagem acima representada: “Ceci n´est pas une pipe”. Um instante de
desconcerto. Porque afinal a legenda nega a imagem? Ela a nega ou a afirma de
outro modo?
“A
traição das imagens” é de 1928-9. Magritte foi muito censurado pela ousadia do
quadro, por pintar uma imagem e em seguida negá-la. Foi mal compreendido. No
entanto, se ele tivesse escrito que aquilo era um cachimbo, não estaria sendo
totalmente verdadeiro. Anos mais tarde desafiou os críticos: “conseguem
enchê-lo?”. Não, não conseguem, porque não é um cachimbo. É “apenas um
desenho”, uma representação pictórica. E para quem ainda duvida talvez o mestre
lançasse um desafio: tentem colocar fumo no cachimbo, tentem fumar.
Eis
a “traição das imagens”, elas nos levam a ver e a crer em algo que não está
ali. A travessura semiótica de Magritte nos faz duvidar das nossas percepções
das coisas. O cachimbo salienta a distância intransponível e incontornável
entre o objeto e sua representação.
O Cachimbo e a História.
O
cachimbo de Magritte é o meu motivo. Se o pintor olhou para um ovo e desenhou
um pássaro, porque não olhar para o cachimbo e refletir sobre o trabalho do
historiador? Trazendo a advertência
de Magritte para os domínios da história, diria que a representação/construção
do passado é o cachimbo dos historiadores. Reconstruímos o passado de modo
convincente, verossímil, desenhamos seus contornos e oferecemos uma imagem
perfeitamente legível. Mas não é o passado. O cachimbo impôs-se ao pintor como
forma reconhecível, da qual ele não pode esquivar-se. Da mesma forma, o passado
impõe-se ao historiador como realidade da qual ele não pode fugir. Mas o que
construímos não é o passado. Assim como no cachimbo pintado por Magritte não
pode ser colocado fumo, a imagem que o historiador constrói do passado não tem
cheiro, não tem espessura, não sua, não sente dor, não pode ser tocada.
Assim
como jamais fumaremos no cachimbo de Magritte, porque sua realidade limita-se a
tela, jamais sairemos do domínio do texto para alcançar a realidade do passado.
A realidade do passado é inalcançável. O contexto do cachimbo é a tela. O contexto
do historiador é o texto, ou um conjunto articulado de textos. Em certo
sentido, o contexto criado pelo historiador é tão arbitrário quanto o contexto
em que Magritte encerrou o seu cachimbo. Os conceitos e categorias do historiador
com os quais ele articula o passado não eram conhecidos no passado. As
experiências de vida de outras épocas são, portanto, reconstruídas a partir de
signos que lhes são estranhos. Dificilmente as pessoas que viveram no passado
se reconheceriam nas tramas e narrativas dos historiadores. Mas
isso não chega ser um problema. A história é uma ciência do presente e para o
presente. As narrativas históricas têm que fazer sentido para nós, leitores do presente, e não para quem
viveu no passado e não está mais entre nós.
Sem
pretender adentrar mais do que o necessário neste terreno espinhoso, manifesto
um esforço de interpretação, coerente com o entendimento que tenho da história,
que não estabelece uma diferenciação fundamental entre texto e contexto. Não
parto do suposto de que exista uma realidade passada pré-textual a espera de
ser revelada por um conjunto de textos que nos chegam do passado. O que
comumente chamamos de contexto não diz respeito a um lugar, uma realidade
essencial que exista para além dos documentos. Não se trata de negar a
existência de uma realidade exterior ao texto. Negá-la é negar o próprio texto
que a toma como referente. O que se enfatiza é o tipo de relação que mantemos
com o passado. No fundo, é o problema epistemológico da história: o que podemos
conhecer no passado que, afinal de contas, esta tão distante de nós? Este
passado nos chega por meio de uma complexa rede de textos: memórias, cartas,
livros, etc. Não temos acesso ao mundo que existiu para além destes vestígios
textuais. Esforçamo-nos para entender e explicar o mundo fora do texto, produzindo
outros textos. Mas o texto é a realidade na qual estamos sempre a desembarcar.
Não podemos imaginar que o texto nos conduzirá a uma realidade exterior. Eis os limites da História, e a sua
sedução. Abandonando a pretensão de abraçar a realidade em si, não abandonamos o
desejo de explicação da realidade. Apenas redimensionamos a noção de realidade
e o alcance do nosso olhar estrangeiro de quem literalmente lê o passado. Dominic
La Capra, que transformou a cômoda realidade histórica num problema,
sugeriu incisivamente que a crença da maioria dos historiadores na existência
de um contexto como a força causal essencial é tributária de uma tradição
metafísica ocidental da busca pelo puro ser. Na mesma linha dos estudos linguísticos
e suas relações com a escrita da história, Hayden White desencadeou polêmicas
apaixonadas ao questionar as fronteiras tradicionais que separam a história da
literatura e da filosofia, e ao sugerir o papel decisivo da linguagem nas
descrições dos historiadores da realidade histórica. Robert Darton, num
inspiradíssimo ensaio sobre a presunção do historiador de querer brincar de
Deus, perguntou com indisfarçável ironia: por mais que os historiadores gostem
de metáforas como “escavar nos arquivos”, “quem acredita na descoberta e
extração de pepitas de realidade?” O que estes autores questionam é a pretensão
dos historiadores de descrever realidades passadas. Mas alto lá. Daí a afirmar
que o texto é uma realidade que acaba em si mesma, ou de que o texto é “apenas
a prova de si próprio”, vai uma enorme diferença. A contribuição da critica
literária e dos estudos linguísticos é um divisor de águas nos estudos
históricos. Passado o primeiro impacto desta virada linguística, e os exageros
e as adesões apressadas que a acompanhou, o momento atual é de uma reflexão
serena. Muito mais do que respostas, ficam as perguntas: afinal, sobre o que
versam os historiadores? Estamos presos a uma rede interminável de textos dos
quais somos reféns ilustres? Nossa epistemologia resume-se a um eterno
exercício textual? Ou temos alguma coisa a dizer sobre o mundo, sobre o
passado? Esta discussão não é perda de tempo, como bem sustentou Ginzburg,
nem um mero exercício acadêmico entre as trincheiras racionalistas e
pós-modernistas. É, antes de tudo, uma busca pelo valor da história, e dos
historiadores.
A
história não é um produto da imaginação poética, como sugeriu Hayden White,
tampouco uma mera construção da linguagem. O conhecimento histórico, embora
limitado ao texto, é construído a partir de uma realidade histórica da qual não
podemos fugir. Embora nunca nos afastemos da realidade textual, é ela o nosso
ponto de contato com a realidade da qual o texto é um produto. Diria até que o
texto não é o nosso limite (como o ovo não o foi para Magritte), mas a nossa ilimitada
possibilidade de reconstrução do passado. Os textos podem ser lidos, relidos,
redescobertos e reinterpretados de diferentes maneiras. É isso que faz da
história uma ciência do presente. Ler o passado é um verbo que só se conjuga no
presente. O passado como ele foi não pode ser alcançado, embora nos esforcemos
para chegar o mais perto possível. É o nosso cachimbo. Nosso belo, verossímil e
ilusionístico cachimbo. É a perspicaz “traição” da história. A imaginação do
pintor o permitiu driblar o realismo conformista e ver além do ovo. Sem
imaginação – o exercício poético-científico de fazer dois tempos que não
coexistem dialogarem - o trabalho do historiador se tornaria um registro obituário
de realidades passadas. É como se o pintor olhasse para um ovo e
pintasse, imaginem!, um ovo. Por isso, quanto mais os historiadores se
aproximarem da literatura, da arte e da poesia, maiores serão as chances de
quebrarem a casca do ovo disciplinar e usarem perspicazmente a imaginação a seu
favor. Brincando um pouco com a ótima frase de Emmanuel Le Roy Ladurie (de que para fazer
história é preciso de um pouco de marxismo e o máximo possível de ciência) diria
que para escrever história é preciso de um pouco de ciência e o máximo possível
de imaginação.
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ResponderExcluirPor favor, qual nome da obra em que tem três homens olhando para as luas ??? Obrigado
ResponderExcluirPor favor, qual nome da obra em que tem três homens olhando para as luas ??? Obrigado
ResponderExcluirOlá Anderson.
ResponderExcluirChama-se "Os mistérios do Horizonte". É de 1955.
Que texto massa. Você escreve muito bem. Pena que são só palavras, danadinhas arbitrárias. rsrs
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