COLAGENS DOS ANOS 80: ANARQUISMO, TEATRO DO ABSURDO E DADAÍSMO DA BOCA
DO MONTE!
Fiat Lux (Paulo Melo, 1986).
Outro dia abri algumas caixas
guardadas há vinte, trinta anos, e me deparei com um verdadeiro baú do tempo. A
memória material encerrada nas caixas evocou imediatamente lugares do passado que
há tempos não vinham à lembrança. Encontrei, entre outras coisas, uma pastinha
xadrez com dezenas de colagens
minhas e de um amigo (o querido Max), de meados dos anos 80.
Naquela época, na Santa Maria da
Boca do Monte, tínhamos um “grupo” de amigos que, apesar das divergências
estéticas e dos gostos singulares, compartilhava algumas afinidades: bandas
pós-punk, poesia concreta, rock industrial, literatura marginal, textos anarquistas
e filmes underground. Não era exatamente um grupo. Não havia uma unidade, nem
encontros programados para exercitar a criatividade e criar coletivamente. Era
um punhado de pessoas, dispersas e desgarradas, com múltiplos interesses, que uma
vez ou outra trocava ideias e fazia algumas coisas juntos. O centro do “grupo”
era o Max, um cara inteligente, sensível, criativo e articulado, que reunia à
sua volta pessoas muito diferentes. Além de aglutinador de gentes, Max era um
poeta de elevado calibre, de refinado gosto musical e cinematográfico e um
mestre das colagens. Era uma inspiração para mim. O quarto do Max, num prédio
no centro da cidade, apinhado de livros e discos, era a nossa caverna criativa.
Expressávamo-nos de muitas
maneiras: tínhamos bandinhas de rock, escrevíamos poesia, produzíamos um fanzine anarquista chamado A Vaca e fazíamos colagens de inspiração
surrealista e dadaísta, com recortes de revistas, restos de fotografias, de
jornais e objetos descartáveis.
É difícil, trinta anos depois, falar
de inspiração. Creio que tudo inspirava, mesmo sem ter consciência disso
naquele momento. No meu caso, as maiores inspirações naqueles anos, correndo o
risco de idealizações e de projeções anacrônicas, eram o teatro do absurdo, do
Antonin Artaud, os filmes de David Lynch e de Serge Gainsbourg, os anarquismos
de Bakunin e Kropotkin, as colagens surrealistas de Max Ernest e a
música-manifesto de Jorge Mautner. Não sei bem como misturava essas coisas.
Eram as minhas afinidades eletivas. Ouvia os discos do Mautner até furar e não
largava os textos do Artaud. Nunca fui um bom poeta, como o Max. Me saía melhor
com as colagens. Gostava de juntar imagens descontextualizadas, de universos
distintos, e reuni-las aleatoriamente na forma de uma colagem. Sem pretender
teorizar demais, acho que era esse o sentido das colagens: descontextualizar
imagens, recortadas de jornais e revistas, juntá-las numa outra superfície, num
outro contexto, e construir com elas algum sentido, alguma coerência. Da
maneira como a praticávamos, a colagem era uma técnica e uma forma de
composição com imagens e objetos, extraídos de seus contextos originais, para
criar diferentes percepções do que considerávamos ser a realidade.
O método era simples. Recortar
com as mãos ou com tesoura imagens que por algum motivo chamassem a atenção e
colá-las, associá-las, num outro plano segundo critérios estéticos bastante
flexíveis e a inspiração do momento. Às vezes, adaptando uma “receita” de poesia dadaísta, tirava ao acaso, de olhos
fechados, recortes de revistas de dentro de uma caixa de sapatos e as associava
livremente. O resultado que procurávamos, com o mínimo de intervenção racional,
era uma livre combinação de ideias, sem filtros apriorísticos. Uma poesia do
inconsciente, segundo o jargão surrealista. A colagem do padre na televisão imaginando
uma mulher nua, é um bom exemplo (abaixo). Fechei os olhos, tirei as duas
imagens de dentro da caixa e as relacionei com um balão das histórias em
quadrinhos. As duas imagens, vindas de contextos completamente diferentes,
reunidas ao acaso, e associadas por um truque dos quadrinhos, produziu um
efeito anticlerical, bem ao gosto da crítica anarquista que líamos à época.
Separei uma pequena amostra das
colagens criadas entre 1984 e 1988, recentemente digitalizadas:
achei maravilhoso o relato :)
ResponderExcluirObrigado, Sabrina.
ExcluirOuro...
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