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segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

AS LIÇÕES DE TÉRSITES: notas sobre o saber memorável (do Aedo) e o poder da linguagem (domínio das Musas) na instituição e conservação da ordem do mundo.

AS LIÇÕES DE TÉRSITES: notas sobre o saber memorável (do Aedo) e o poder da linguagem (domínio das Musas) na instituição e conservação da ordem do mundo.

 Odisseu, Agamêmnon e Térsites.
Canta, ó Musa, a ira de Aquiles, filho de Peleu, que incontáveis males trouxe às hostes dos aqueus (Versos iniciais da Ilíada).
 Mas se porventura via um homem do povo metido numa rixa, batia-lhe com o cetro, repreendendo-o com estas palavras: “Desvairado! Senta-te sossegado e ouve o que dizem outros, melhores que tu! Não passas de um covarde, de um fraco! Não serves para nada, nem na guerra, nem pelo conselho. Não penses que, aqui, nós Aqueus somos todos reis! Não é bom serem todos a mandar. É um que manda; um é o rei, a quem deu o Crônida de retorcidos conselhos o cetro e o direito de legislar, para que decida por todos” (Ilíada, Canto II).

Ilíada, o extraordinário e aristocrático poema épico grego, atribuído a Homero, é um hino à guerra e aos valores da nobreza. O Aedo canta e celebra a moral heroica, a honra (timé), a coragem, a destreza guerreira, os laços de parentesco, a arte de bem falar e faz demorado elogio ao ideal de excelência (areté) dos Basileus (reis), reunidos diante de Ílion (Tróia). Agamêmnon, Ajax, Aquiles, Odisseu, Nestor, Menelau, Diomedes, são alguns dos personagens homéricos que desfilam suas habilidades, militares e oratórias, e esperam uma morte heroica vislumbrando a glória (kléos).
No Canto II, destoando do ethos guerreiro dominante no poema, somos surpreendidos por um homem do povo, um soldado comum chamado Térsites que, em plena assembleia da nobreza, toma ousadamente a palavra e enfrenta Agamêmnon, o rei-comandante em armas dos aqueus. Cansado da guerra, que se arrasta há dez anos, reclama dos espólios tomados dos troianos (bronze e belas mulheres), que ficam sempre com os chefes, e propõe aos aqueus que voltassem para casa (o que pode denotar falta de coragem) e deixassem Agamêmnon em Tróia, por si mesmo, com os despojos, refletindo sobre a utilidade ou não dos soldados. Além da queixa, Térsites condenou o comportamento ganancioso do rei que roubou de Aquiles o prêmio de guerra, a bela Briseida.
A sequência dos acontecimentos é uma verdadeira lição sobre a ética guerreira e o ideal aristocrático cantados na Ilíada. Odisseu, herói épico e excelente conselheiro, reprova duramente a conduta insolente do tagarela Térsites e lhe aplica um humilhante castigo público: uma surra exemplar de cetro, que lhe deixa um indisfarçável vergão nas costas. O soldado, humilhado e machucado, volta ao seu lugar, senta-se trêmulo, enxuga as lágrimas e vira motivo de risos dos expectadores.
O cetro, arma simbólica utilizada para castigar o ousado soldado, merece um pouco mais de atenção. A insígnia tem uma genealogia própria que representa a transmissão do poder no seio da aristocracia (Vidal-Naquet). Tomemos o exemplo de Agamêmnon. No Canto II, em meio a uma tumultuada assembleia, o “poderoso” Atrida se levanta:
“[...] segurando o cetro que com seu esforço fabricara Hefesto. Hefesto deu-o depois a Zeus Crônida soberano, e por sua vez o deu Zeus ao forte Matador de Argos, Hermes soberano, que o deu a Pélope, condutor de cavalos; por sua vez de novo o deu Pélope a Atreu, pastor do povo; e Atreu ao morrer deixou-o a Tiestes dos muitos rebanhos; por sua vez o deixou Tiestes a Agamêmnon para que o detivesse, assim regendo muitas ilhas e toda a região de Argos” (Ilíada, Canto II).

                                                                             Zeus sentado com o raio e o cetro.

Foi com este mesmo cetro, que Agamêmnon lhe emprestou para conter o impulso dos soldados de arrastar as naus para o mar e abandonar a guerra, que Odisseu golpeou o soldado. A genealogia do cetro remonta aos Deuses que, por divina transmissão, o repassa aos Basileus que o empunham com soberana autoridade para o exercício do poder e a distinção das hierarquias. Poder e hierarquias inobservados por Térsites. Os golpes de cetro, vistos desta maneira, têm um caráter pedagógico. A atitude espontânea de Odisseu não foi intempestiva ou irrefletida. Representa, antes, o paternalismo aristocrático do Basileu que repreende duramente o seu subordinado, na frente de todos, reforça o lugar social de cada um e retoma o privilégio do uso da palavra, especialmente naquela situação. Lendo a desventura de Térsites com a lente de Foucault, a surra foi um castigo corretivo, disciplinar. O cetro é um dispositivo de poder aristocrático empunhado exemplarmente para silenciar o inconveniente orador e reestabelecer a ordem.
Térsites é um anti-herói épico (não se enquadrava no esquema de valores subjacente ao ponto de vista narrativo). Ao povo cabia apenas escutar. O uso da palavra, especialmente numa assembleia, era prerrogativa dos nobres. Embora a fala de Térsites fizesse algum sentido, e talvez representasse o ponto de vista da maioria dos soldados, a atitude era inconveniente. Os aqueus andavam ressentidos, rancorosos e com o coração doído, mas foi Térsites que, à sua maneira, soltou o grito contra a ganância e a arrogância de Agamêmnon. Disparou um discurso fulminante, mas pagou um preço alto pela ousadia.
À violência física, soma-se, diríamos hoje, a violência simbólica das palavras empregadas pelo poeta para descrever Térsites, o mais feio entre todos: vesgo, corcunda, de pernas arqueadas, manco, cabeça pontuda e cabelos ralos. Uma ridícula figura, que ninguém levava a sério. A feiura e o aspecto repulsivo do soldado saltam aos olhos, especialmente quando consideramos que a beleza e a virilidade eram atributos admirados e cultivados pela nobreza. Os heróis homéricos cuidavam do corpo e o tratavam com óleos e unguentos. A beleza física era o corolário da moral guerreira (Claude Mossé). O porte físico e o refinamento da armadura e das armas de bronze, a panóplia do guerreiro, distinguiam os heróis dos soldados comuns. “O esplendor que dimana do corpo do herói, vem antes do fulgor do bronze de que se reveste, do faiscar de suas armas, da sua couraça, do seu capacete, da chama que emana dos seus olhos, do irradiante ardor que o consome” (Claude Mossé). A beleza está associada ao valor guerreiro. São belos não porque ostentam uma beleza física notável. São belos porque são fortes, vigorosos, corajosos e admiravelmente revestidos do esplendor do bronze. Térsites, de feiura inigualável, representa a encarnação do completo oposto ao herói homérico.
O modo como Homero se refere à Térsites encerra uma significativa lição. Inspirado pelas Musas, divindades que presidem a linguagem e o conhecimento, o poeta tem o poder de dizer. As palavras escolhidas para descrevê-lo e desacreditá-lo são revestidas de uma autoridade que está além do mundo dos homens. As Musas são o produto da mais importante conjunção mítica. São filhas de Zeus (raiz e fonte do poder) com Mnemósine (memória), e decidem entre o que deve ser revelado e o que vai ser esquecido (origem de todo poder). Elas conferem ao poeta o poder de trazer à lembrança o que merece ser lembrado.
O Aedo articula, portanto, um tipo de poder que lhe é conferido pela Memória, pela palavra cantada (Musas). O canto do Aedo é uma epifania do poder divino que configura o mundo e ilumina as relações de poder entre os mortais.
                                                                                                             Homero
Não passou despercebido por Vidal-Naquet um importante detalhe: o nome do pai de Térsites, em nenhum momento, foi mencionado. Não foi um descuido do poeta (um cultor da Memória). A menção aos antepassados (Aquiles, filho de Peleu), fórmula repetida inúmeras vezes, é um exercício de fixação das linhagens familiares e a afirmação de um passado heroico e honrado dos personagens. As genealogias, demoradamente cantadas, são a celebração e a conservação da memória da aristocracia. O esquecimento, neste caso, é uma manifestação do poder que o canto épico, iluminado pela Memória, impõe. No extraordinário exercício de memorização e declamação dos nomes, dos nobres parentescos (Odisseu, filho de Laerte), entoado pelo Aedo, o pai de Térsites foi esquecido. O poder de lembrar, articulado pela linguagem e pela memória, tem o seu contraponto: o esquecimento. O nome do pai do homem que tomou a palavra e insultou o rei, mesmo sendo ele um conhecido herói eólio (Ágrio), não merece ser lembrado.
A lição de Térstites é sobre um saber que o poeta detém (uma outorga do divino), que lhe autoriza o exercício de um poder, circunscrito pela linguagem, e tutelado pela memória, que nomeia e institui a ordem mundo. Ordem da qual o poeta, criador e criatura, era o intérprete oficial. Térsites desafiou este poder, ameaçou, com ligeira e humana desordem, a duradoura ordem imposta pelo sagrado e foi submetido a uma humilhação à altura da sua ousadia e da ofensa que fez à aristocracia!

De acordo com um dos poemas cíclicos, do Ciclo Troiano (poemas épicos posteriores e complementares à Ilíada e à Odisseia e, segundo Aristóteles, literariamente inferiores), intitulado Etiópida, Térsites, filho de Ágrio, morreu violentamente pelas mãos de Aquiles. Depois de tirar a vida de Pentesiléia, rainha das Amazonas, o filho de Tétis foi às lágrimas contemplando a beleza do corpo sem vida. Térsites teria zombado da ternura do herói e ameaçado furar os olhos da morta. Aquiles tirou-lhe a vida com um único golpe. Uma morte nada gloriosa para o soldado descrito por Homero como “o homem mais feio que veio para Ílion”.

Referências Bibliográficas.
BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. São Paulo: Vozes, 1993.
FINLEY, Moses. O mundo de Ulisses. Lisboa: Editorial Presença, 1982.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1989.
HOMERO. Ilíada; tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2003.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Benvirá, 2010.
MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1984.
TORRANO, Jaa. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1992.

VIDAL-NAQUET. O mundo de Homero. São Paulo: Companhia da Letras, 2002.

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